Fora do tempo e fora de si

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 3 de dezembro de 2000

Numa época em que a guerrilha comunista domina um país vizinho e no Brasil um partido marxista-leninista com serviço secreto privado e uma bela retaguarda armada está em vias de chegar ao poder, qualquer resistência ao comunismo é, surpreendentemente, acusada de estar “fora de moda”. Ressoando aos ouvidos de um povo que tem um terrível complexo de atraso, essa acusação tem imediato efeito paralisante. Preso em flagrante delito de pedofilia, um brasileiro não sentiria tanta vergonha quanto ao ser denunciado como “demodé” ou “ultrapassado”.

Mas a acusação tem ainda uma nuance mais sutil: ela insinua que o anticomunismo está ultrapassado porque seu inimigo não existe mais; combater o comunismo é lutar contra fantasmas do tempo da guerra fria. A ditadura comunista que oprime um bilhão e trezentos milhões de chineses, vietnamitas e tibetanos não existe, Fidel Castro não existe, os guerrilheiros da Colômbia não existem, Chavez não existe e a revolução camponesa do MST também não existe: nós é que, por sermos retrógrados e desinformados, resistimos às suas agressões como se eles existissem. Se fôssemos pessoas modernas, consentiríamos em que essas criaturas da nossa imaginação, caso não pudessem provar sua inexistência, ao menos decretassem a nossa, suprimindo-nos do rol dos existentes. Aí estaríamos na moda. Mais que socialistas, seríamos socialites.

O problema é que a crença na inexistência do comunismo é coisa ainda mais antiga do que a guerra fria. O comunismo jamais gostou de admitir que existe. Na década de 20 a OGPU (antepassada da KGB) já pagava a escritores exilados para que escrevessem livros demonstrando que o comunismo na Rússia tinha acabado. Mao Tsé-tung foi apresentado em comunicados oficiais do Kremlin como um inofensivo “socialista cristão”, Fidel Castro como um progressista democrático estilo americano. Depois de 1917, ninguém no mundo fez jamais uma revolução comunista anunciando que era uma revolução comunista. Se querem ter idéia do tremendo investimento que o comunismo tem feito, em dinheiro e esforço, para provar que não existe, leiam “New Lies for Old”, de Anatoliy Golitsyn (Atlanta, Clarion House, 1990). O autor é um ex-agente da KGB que testemunhou pessoalmente algumas dessas gigantescas operações de desinformação.

De outro lado, também é errado imaginar que o anticomunismo é coisa de museu. Arquivos históricos não são museus: são depósitos de bombas. Desde a abertura dos arquivos da KGB, o anticomunismo tornou-se o grande assunto nos círculos acadêmicos civilizados. Ela mostrou que tudo aquilo que nos anos 60 nós, jovens militantes, rejeitávamos como mentiras sórdidas do imperialismo, era pura verdade. Acreditávamos que os Rosenbergs tinham sido vítimas de um complô: os arquivos da KGB mostraram que eram mesmo espiões. Acreditávamos que os artistas demitidos de Hollywood eram inocentes perseguidos por discriminação ideológica: os documentos mostraram que cada um deles era um colaborador recrutado pela KGB. Acreditávamos que o “ouro de Moscou” era um mito criado pela CIA: hoje sabemos que bilhões de dólares saíram do Kremlin para financiar revoluções, golpes de Estado e assassinatos políticos. Acreditávamos que os planos comunistas de domínio mundial eram pura invencionice do Pentágono: hoje temos as provas de que eram uma realidade. Agora, que cartas, contracheques, ordens de serviço e memorandos estão à disposição de quem queira conferi-los nos arquivos de Moscou, já não podemos refugiar-nos sob a desculpa de sermos “inocentes úteis”. Como resumiu o historiador John Lewis Gaddis no título de um recente best seller sobre a história do anticomunismo, “We Now Know”: agora sabemos. Sabemos que, hoje, acreditar em comunistas seria inocência perversa. Sabemos? Quem “sabemos”? No Brasil ninguém sabe. Excetuando as buscas de William Waack, das quais a suposta vítima de discriminação ideológica, Olga Benário, emergiu como comprovada espiã do serviço secreto militar soviético, nenhum brasileiro quis saber nada, e o que se vem descobrindo no mundo continua excluído da nossa imprensa e das nossas livrarias, graças ao esforço de devotados vigilantes. Por isso ainda há quem diga que ser anticomunista no ano 2000 está tão fora de época quanto estava dez anos atrás. Nem mesmo em meras questões de moda é prudente acreditar nessa gente. Por isso é preciso também rejeitar com veemência a mentira de que essas excursões de militantes petistas a Cuba, das quais a mais recente levou a Havana 220 deles em companhia do sr. Luís Ignácio Lula da Silva, são meras viagens de saudosismo. A revolução continental da qual o eterno candidato se proclama eterno apaixonado não é coisa do passado. Neste mesmo momento, prisioneiros sofrem tortura e fome nos campos de concentração montados pelas FARC com o apoio de Cuba e sob os aplausos do PT, enquanto o sr. Lula pretende que acreditemos que seus contatos com o alto escalão cubano são apenas festinhas de sessentões nostálgicos. Para acreditar nisso a gente tem de estar não apenas fora do tempo: tem de estar fora de si.

Passado e futuro

Olavo de Carvalho


Época, 2 de dezembro de 2000

O primeiro está desfigurado pela falsificação histórica; o segundo, por anúncios de vingança

Em 1964, uma revolução comunista estava em marcha no Brasil, sob orientação direta do governo soviético, recebida no começo do ano por Luís Carlos Prestes em Moscou. Os arquivos da KGB confirmam isso de maneira irrespondível. A revolução foi detida por um movimento militar apoiado na maior mobilização popular de toda a nossa História (800 mil pessoas nas ruas, duas décadas antes das Diretas Já). Total de mortos na operação: dois.

Os vencidos, inconformados, buscaram apoio na ditadura cubana, que lhes deu dinheiro e treinamento para a ação armada, e desencadearam uma campanha de terror, matando a tiros e bombas vários colaboradores grandes e pequenos do novo regime e pelo menos um de seus próprios militantes, executado à simples suspeita de “fraquejar”.

O governo reagiu instalando um regime policial que, além de fazer vítimas em combate, consentiu na tortura e na morte de prisioneiros, à imitação dos terroristas que chegaram a assassinar a coronhadas um homem amarrado. No placar final, os comunistas mataram aproximadamente 200 pessoas; os militares, 300. A diferença não é tão grande que justifique tratar os primeiros como anjos, os segundos como demônios.

Em favor dos militares, resta um fato. Não há, na História do mundo, outro exemplo de revolução armada, num país de cerca de 100 milhões de habitantes, que fosse abortada com menos derramamento de sangue. Desafio qualquer pessoa a impugnar, com números e provas, essa afirmação. Em Cuba, com população dez vezes menor, a simples repressão a opositores desarmados levou à morte 17 mil dissidentes. Ditadura é ditadura, mas nivelar a brasileira e a cubana é mais que demagogia: é empulhação.

Não obstante, a violência do extinto regime repercute na mídia até hoje, em ondas cada vez mais volumosas à medida que o tempo passa, com periódicas efusões de tinta e lágrimas em louvor dos comunistas mortos, enquanto as 200 vítimas que eles mataram têm de repousar quietas e esquecidas na lata de lixo da História, o lugar reservado aos que se opõem aos desígnios da Providência revolucionária. Nos 15 anos que se seguiram ao fim da ditadura, elas jamais foram manchete, enquanto seus algozes o são pelo menos de três em três meses, sob variados pretextos, incansavelmente, sem contar filmes, programas de TV e menções chorosas nos livros didáticos.

Mas, se na imprensa qualquer referência àquelas vítimas tem sido em geral excluída das páginas noticiosas, só timidamente vazando através de colunas de opinião, cochichá-la na internet não é menos proibido. Um único e modesto site devotado a documentar os crimes cometidos pelos comunistas no Brasil, www.ternuma.com.br, tão logo apareceu foi imediatamente submetido a um bombardeio de ameaças dissuasórias, das quais cito duas por falta de espaço para mais. A primeira anuncia: “Vocês não perdem por esperar. Os novos tempos da revolução… virão à tona, fazendo com que paguem com a vida… A rebelião começará nos quartéis e os comandantes cairão diante da ira do povo”. Sublinhando a promessa de rebelião militar, a segunda assegura: “Como prova o grande camarada Lamarca, muitos militares estão a nosso lado… A Ditadura do Proletariado lhes (sic) espera!” Eis no que deu ajudar os comunistas a esconder seu passado: agora eles querem suprimir nosso futuro.

O futuro da boçalidade

Olavo de Carvalho


O Globo, 2 de dezembro de 2000

Um topos, ou “lugar-comum”, é um trecho da memória coletiva onde estão guardados certos argumentos estereotipados, de credibilidade garantida por mera associação de idéias, independentemente do exame do assunto. Muitos lugares-comuns formam-se espontaneamente, pela experiência social acumulada. Outros são criados propositadamente pela repetição de slogans, que se tornam lugares-comuns quando, esquecida a sua origem artificial, se impregnam na mentalidade geral como verdades auto-evidentes.

Os lugares-comuns não são um simples amontoado, mas organizam-se num sistema, que pode ser analisado e descrito mais ou menos como se faz com um complexo em psicanálise, e cujo conhecimento permite prever com razoável margem de acerto as reações do público a determinadas idéias ou palavras. Contando com essas respostas padronizadas, o argumentador pode fazer aceitar ou rejeitar certas opiniões sem o mínimo exame, de modo que, à simples menção das palavras pertinentes, a catalogação mental se faz automaticamente e o julgamento vem pronto como fast food. A impressão de certeza inabalável é então inversamente proporcional ao conhecimento do assunto, e o sentimento de estar opinando com plena liberdade é diretamente proporcional à quota de obediente automatismo com que um idiota repete o que lhe ditaram.

É claro que para isso é preciso começar o adestramento bem cedo. Daí a insistência de Antônio Gramsci na importância da escola primária. Também é preciso que algumas crenças sejam inoculadas sem palavras, através de imagens ou gestos, de modo que não possam ser examinadas pela inteligência reflexiva sem um penoso esforço de concentração que poucas pessoas se dispõem a fazer. Assim é possível consolidar reações tão padronizadas e repetitivas que, em certas circunstâncias, um simples muxoxo ou sorriso irônico funciona como se fosse a mais probante das demonstrações matemáticas.

Se as pessoas soubessem a que ponto se humilham e se rebaixam no instante mesmo em que orgulhosamente crêem exercer sua liberdade, elas não atenderiam com tanta presteza ao convite de dizer o que pensam, ou o que pensam pensar. É por amor a esse tipo de liberdade barata que os jovens, sobretudo, se dispõem a servir aos revolucionários que os lisonjeiam.

Para desgraçar de vez este país, a esquerda triunfante não precisa nem instaurar aqui um regime cubano. Basta-lhe fazer o que já fez: reduzir milhões de jovens brasileiros a uma apatetada boçalidade, a um analfabetismo funcional no qual as palavras que lêem repercutem em seus cérebros como estimulações pavlovianas, despertando reações emocionais à sua simples audição, de modo direto e sem passar pela referência à realidade externa.

Há quatro décadas a tropa de choque acantonada nas escolas programa esses meninos para ler e raciocinar como cães que salivam ou rosnam ante meros signos, pela repercussão imediata dos sons na memória afetiva, sem a menor capacidade ou interesse de saber se correspondem a alguma coisa no mundo.

Um deles ouve, por exemplo, a palavra “virtude”. Pouco importa o contexto. Instantaneamente produz-se em sua rede neuronal a cadeia associativa: virtude-moral-catolicismo-conservadorismo-repressão-ditadura-racismo-genocídio. E o bicho já sai gritando: É a direita! Mata! Esfola! “Al paredón!”

De maneira oposta e complementar, se ouve a palavra “social”, começa a salivar de gozo, arrastado pelo atrativo mágico das imagens: social-socialismo-justiça-igualdade-liberdade-sexo-e-cocaína-de-graça-oba!

Não estou exagerando em nada. É exatamente assim, por blocos e engramas consolidados, que uma juventude estupidificada lê e pensa. Essa gente nem precisa do socialismo: já vive nele, já se deixou reduzir à escravidão mental mais abjeta, já reage com horror e asco ante a mais leve tentativa de reconduzi-la à razão, repelindo-a como a uma ameaça de estupro. Tal é a obra educacional daqueles que, trinta anos atrás, posavam como a encarnação das luzes ante o obscurantismo cujo monopólio atribuíam ao governo militar.

Milhares de seitas pseudomísticas, armadas de técnicas de programação neurolingüistica e lavagem cerebral, não obtiveram esse resultado. Ele foi obra de educadores pagos pelo Ministério da Educação, imbuídos da convicção sublime de serem libertadores e civilizadores. O mal que isso fez ao país já é irreparável. Supondo-se que todos esses adestradores de papagaios fossem demitidos hoje mesmo, e se inaugurasse um programa nacional de resgate das inteligências, trinta ou quarenta anos se passariam antes que uma média razoável de compreensão verbal pudesse ser restaurada. Duas gerações ficariam pelo caminho, intelectualmente inutilizadas para todo o sempre.

É em parte por estar conscientes disso que esses mesmos educadores são os primeiros a advogar a liberação das drogas. Eles sabem que o lindo Estado assistencial com que sonham necessitará largar na ociosidade uma boa parcela da população, danificada, incapacitada, sonsa. Para que não interfira na máquina produtiva, será preciso tirá-la do espaço social, removê-la para os mundos lúdicos e fictícios onde o preço do ingresso é um grama de pó. Na sociedade futura, a recompensa daqueles que consentiram em ser idiotizados para fazer número na militância já está garantida: cafungadas e picos de graça, sob os auspícios do governo, e liberdade para transar nas vias públicas, sob a proteção da polícia, ante um público tão indiferente quanto à visão banal de uma orgia de cães em torno de um poste.

Mas não é precisamente isso o que desejam? Não é essa a essência do ideal socialista que anima seus corações?