Em busca da justiça

Olavo de Carvalho

O Globo, 11 de agosto de 2001

Malgrado as dificuldades e limitações que terá de enfrentar, o julgamento dos guerrilheiros do Khmer Vermelho, que o governo do Camboja e as Nações Unidas anunciam para este ano, pode ser o primeiro passo para uma tomada universal de consciência de que os colaboradores de regimes comunistas são culpados de crimes contra a humanidade, exatamente no sentido e na medida que o foram os nazistas condenados pelo Tribunal de Nuremberg.

Um quarto de século atrás, poucas semanas antes da queda de Saigon, o grupo liderado por Pol Pot tomava o poder no vizinho Camboja e, em nome da nova cultura socialista, iniciava o massacre dos recalcitrantes e desajustados, chegando em poucos anos à cifra de dois milhões de mortos.

Esses crimes, cometidos por cambojanos contra seus próprios compatriotas desarmados, em tempo de paz, suscitaram imensuravelmente menos revolta e gritaria internacional do que os bombardeios americanos no Vietnã ou do que as mortes de três mil esquerdistas chilenos ocorridas em ambiente de guerra civil.

Um dos obstáculos temíveis que o julgamento do clã Pol Pot encontrará pela frente é, sem dúvida, a má vontade da mídia internacional cúmplice. Desde que, no começo dos anos 90, o dissidente Vladimir Bukovski trouxe dos Arquivos de Moscou as provas de que praticamente toda a imprensa social-democrática européia tinha sido financiada pela KGB na década anterior — suscitando imediatamente a eclosão da Operação Mãos Limpas, com que uma organizada elite de juízes comunistas desviou a atenção do público para casos de corrupção doméstica — ninguém mais tem o direito de imaginar que prestigiosos jornais de centro-esquerda, na Itália, na França ou na Alemanha, são fontes fidedignas de informação. A participação ativa de um deles naquele grotesco ritual de beatificação das Farcs que foi o Fórum Social Mundial de Porto Alegre assinala toda a diferença que existe entre jornalismo e propaganda.

A desproporção monstruosa entre a espetacular campanha mundial anti-Pinochet e o modestíssimo destaque que se vem dando ao julgamento do Khmer Vermelho não é coincidência: é, no mínimo, um esforço consciente para varrer para baixo do tapete as culpas dos colaboradores europeus do genocídio cambojano.

Nada está mais longe da mentalidade atual dos remanescentes esquerdistas no mundo do que a hipótese de assumirem, mesmo em pensamento, a mais mínima parcela de culpa por todo o mal que ajudaram a fazer. Mesmo quando reconhecem o horror da ditadura socialista construída na URSS, na China, em Cuba, não se sentem culpados, mas vítimas. A desilusão que tiveram com seus sonhos de juventude lhes parece um sofrimento incomparavelmente mais digno de piedade do que aquele que, em nome desses sonhos, eles e seus cúmplices impuseram a um quarto da população do globo terrestre. Que são, de fato, cem milhões de mortos e muitas centenas de milhões de pessoas reduzidas ao trabalho escravo, perto da humilhação de alguns grupos de intelectuaizinhos obrigados a reconhecer, se tanto, pequenos erros de estratégia na realização de seus lindos projetos sociais?

Quando digo que há algo de anormal, de doente, de sociopático na mentalidade de comunistas, socialistas e esquerdistas em geral, é a isso que me refiro: é a essa incapacidade radical que cada um deles tem de julgar-se a si próprio pelos mesmos padrões com que julga os outros. É a essa completa e profunda falta do senso de igualdade nos apóstolos da igualdade. É a esse total e soberano desprezo pelo Segundo Mandamento.

Graças à universalidade desse fenômeno, o julgamento do Khmer Vermelho não somente se arrisca a ser bastante amortecido pela mídia mundial, mas ainda a ter de contentar-se com enviar ao banco dos réus apenas uma parte dos líderes conhecidos desse movimento criminoso, pois vários remanescentes dele ocupam posições de destaque na sociedade cambojana atual, e dificilmente as autoridades judiciárias terão a coragem ou os meios de mexer com eles — sobretudo com Ieng Sary, cunhado do falecido Pol Pot e ex-ministro das Relações Exteriores. Para que o tivessem, seria preciso muito mais apoio internacional do que aquele com que poderão contar.

Em todo caso, o julgamento é um começo. Antes punir somente alguns culpados do que premiar a todos. Qualquer passo, mesmo modesto, que se dê no sentido de estabelecer a equiparação legal de todos os crimes de genocídio serve para aproximar a humanidade da cura da esquizofrenia moral que a acometeu desde que, com a aliança entre Roosevelt e Stalin, socialistas e comunistas adquiriram o direito de ser nazistas com boa consciência.

Recentemente, na Romênia, o ex-ministro das Relações Exteriores, o filósofo e meu querido amigo Andrei Pleshu, descobriu um fato que o atirou ao fundo da maior depressão: o mais respeitado líder democrático do país e ex-grão-mestre da Maçonaria, o senador Dan Lazarescu, tinha sido, em segredo, colaborador da polícia secreta comunista; seus relatórios haviam enviado à prisão não somente vários de seus companheiros maçons (a Maçonaria romena era inimiga declarada do regime), mas também diversos membros de outras facções dissidentes.

Cortando na própria carne — pois Lazarescu era pessoa de sua estima e admiração — Pleshu divulgou a descoberta. Lazarescu foi expulso do Senado e da Maçonaria, aos oitenta e tantos anos. A Romênia estava mortalmente triste mas muito mais saudável. Há muitos outros parceiros do ditador Ceaucescu espalhados na alta sociedade romena. Mas o desmascaramento de um só dentre eles ajuda, pelo menos, a impedir que a força do esquecimento transforme, por decurso de prazo, a injustiça em justiça.

Distúrbios da Mente

Pedro Paulo Rocha
pedroprocha@netpar.com.br

10 de agosto de 2001

         Ao se defrontar com o problema de transcender a própria individualidade, o homem, que criou um meio social progressivamente complexo, tornou-se uma vítima potencial do tremendo estresse gerado por esta complexidade. A Religião e a Filosofia, com enorme diversidade, reflexos de suas respectivas culturas, espelham a busca da solução desta questão. O medo do desconhecido e a necessidade de dar sentido ao mundo que nos cerca levaram o homem a fundar diversos sistemas de crenças, cerimônias e cultos, quase sempre centrados na figura de um ente supremo, que o ajuda na busca da compreensão do significado último de sua própria natureza. Mitos, superstições ou ritos mágicos que as sociedades primitivas teceram em torno de uma existência sobrenatural, inatingível pela razão, já nas primeiras formas de religião, se alicerçaram na crença num ser superior e no desejo de comunhão com ele. O fato é que, quanto mais o ser humano se separa do mundo natural e desfaz os laços que o ligam à natureza, mais intensa se torna a sua necessidade de encontrar meios de fugir aos dilemas que o progresso lhe traz.

         Não só a pressão cada vez mais insuportável do meio social, como a influência de fatores ambientais, genéticos, viróticos, efeito de drogas, etc. deflagram distúrbios de comportamento que vêm sendo um motivo de preocupação crescente. Levantamentos da OMS reportam que os índices de incapacitação por distúrbios mentais chegam a 10% e revelam uma tendência a aumentar.

         A idéia de que a insanidade era rara entre os povos primitivos e que tende a aumentar na proporção em que o processo civilizatório se desenvolve, apareceu inicialmente no século XIX. Importantes psiquiatras daquela época defenderam a idéia de que há uma relação íntima entre civilização e saúde mental. A noção do “bom selvagem” proposta por Rousseau, filósofo francês do século XVIII, era predominante.

         O naturalista alemão, Alexander Von Humbold, em sua viagem pelo interior América, se disse surpreso com a ausência de doentes mentais entre os selvagens. Um médico, responsável pelas reservas dos Cherokees, registrou que, entre os 20 mil índios, nunca havia visto ou mesmo ouvido casos de insanidade. O capitão Wilkes, comandante da Expedição Exploratória Americana, também relatou que, durante a sua viagem pelos mares do sul, não encontrou nenhum caso de loucura entre os povos daquela região.

         Contudo, curiosamente, os autores, não fizeram qualquer referência às suas limitações lingüísticas e à dificuldade de entender os valores e costumes dos povos estudados. Os pesquisadores deste período não dominavam seus idiomas e ainda menos seus valores culturais. Assim, se manifestavam a respeito dos comportamentos visíveis e externos, destes povos, sem ouvi-los e conhecer seus sofrimentos subjetivos. Além disto, devido as condições precárias de atendimento psiquiátrico, apenas os casos mais graves, predominantemente de agressividade, recebiam alguma atenção.

         Durante o curso do século XIX, simultaneamente com o colonialismo, os colonizadores começaram a descobrir doenças mentais que atingiam povos primitivos, como Amok, entre os nativos de Java; Koro, entre os chineses; Myriath, na Siberia; Piblokto entre os esquimós, etc. Nesta época surgiu também o interesse do alguns psiquiatras europeus em demonstrar que doenças clássicas conhecidas, como a esquizofrenia, eram universais e não apenas limitadas, geograficamente, à Europa. O grande psiquiatra alemão Emil Kraepelin foi um dos primeiros a fazer repetidas viagens ao Oriente e a examinar pacientes mentais entre os povos primitivos, inclusive na ilha de Java. Em decorrência, a idéia de ausência de doenças mentais entre os povos primitivos não se sustentou.

         De fato, a doença mental acompanha o homem desde os seus primórdios. Histórias antigas relatam os impulsos homicidas do rei Saul, ou a insensatez de Nabucodonosor, que “comia grama como os bois e deixava que o orvalho das nuvens molhasse o seu corpo até que crescesse o cabelo como as penas da águia e suas unhas como as garras dos pássaros”. Arqueólogos encontraram crânios trepanados, em locais tão dispersos como o Vale do Nilo, no Egito, e as sepulturas dos Incas, no Peru, que denotam a tentativa das antigas civilizações de desvendar o cérebro humano.

         Cerca de quatro séculos antes de Cristo, o médico grego Hipócritas, (460 a 370 AC), considerado o pai da medicina, procurou livrar o estudo das doenças mentais do posicionamento místico e filosófico, colocando-o no contexto das enfermidades em geral. No terceiro século depois de Cristo, Galen, um grego, também responsabilizou o cérebro pela ocorrência de distúrbios psíquicos. Foram porém tentativas isoladas, pois “A Psiquiatria, quase que no momento em que nasceu do útero da Medicina, nos tempos de Hipócrates, foi raptada e carregada para a estranha casa da teologia e para os policrômicos jardins da filosofia abstrata” (* Zilboorg & G.W.Henry – A History of Medical Psychology – 1941) A conceituação da doença mental como uma forma de possessão, dominou durante a idade média e perdurou por muitos séculos.

         A demonologia considerava que Satanás podia se apoderar do corpo de uma pessoa e exercer sobre ela total controle. Com a hegemonia do catolicismo, na Europa, a possessão passou a ser interpretada como uma oposição à igreja e a Deus. A teologia reconhecia dois tipos de possessão. No primeiro tipo, a suposta vítima era possuída contra a sua vontade, como um castigo divino pelos pecados cometidos. No outro, a pessoa teria feito um pacto voluntário com o diabo. Esses eram os bruxos. Além do diabo, que também era denominado Satã, Lúcifer ou outros títulos, como Príncipe das Trevas ou simplesmente demônio, os cristãos medievais acreditavam haver grande número de maus espíritos, que auxiliavam o Diabo, em sua obra do mal.

         Em 1484 o Papa Innocêncio VIII redigiu uma bula papal, na qual advertia o clero, exigindo “que não se deixasse pedra sobre pedra, na caça aos bruxos”. O livro Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas), escrito por dois monges dominicanos, em 1486, por determinação daquele Papa, e reimpresso 14 vezes, apresentava detalhada descrição dos processos para se reconhecer os feitiços. Muitas das características descritas são as mesmas dos sintomas de inúmeros distúrbios mentais, hoje conhecidos e catalogados. Os infelizes, assim identificados, eram torturados até a morte, disto não escapando nem crianças ou anciões. “Entre 1450 e 1750, mais de 100 mil pessoas, a maioria mulher, foram julgadas por tribunais eclesiásticos, em diferentes partes da Europa, pela suposta prática de magia maléfica e adoração do Diabo”. Milhares de desgraçados, pereceram sob as mais terríveis torturas, em nome de Deus e da Religião.

         O julgamento era conseqüência de uma acusação formal. Caso houvesse alguma dúvida, o tribunal apelaria a Deus para que fornecesse alguma prova. O modo mais comum era o ordálio, ao qual o acusado tinha que se submeter, para provar sua inocência. Consistia em testes, como carregar um ferro em brasa, a certa distância e, se não fosse culpado, ter miraculosamente curada a carne queimada, ou ainda ser jogado em um reservatório de água e considerado inocente somente se afundasse. A alternativa era a desumana tortura, descrita em muitos documentos da época.

         O mais famoso crítico da caça às bruxas, foi Johann Weyer, médico do humanista duque de Cleves. Nos seus livros ele tentou mostrar que as mulheres ignorantes que confessavam a prática de bruxaria eram “pobres, miseráveis, velhas, decadentes e melancólicas mulheres, vítimas de delírios”. Usando seus conhecimentos médicos, alegava que o suposto malefícia das bruxas podiam ser explicados por causas naturais médicas e que, na verdade, eram doentes mentais. Por lhe faltar uma teoria filosófica e teológica abrangente sobre os poderes do Diabo, os tratados de Weyer foram incapazes de resistir aos ataques que lhe foram atirados. Sua posição foi rejeitada pelo poder eclesiástico que preferia acreditar que a bruxaria era real e que as bruxas deveriam ser duramente julgadas e castigadas, para a salvação de suas almas.

         Por ocasião do século XVII a caça às bruxas se estendeu também às colônias do Novo Mundo. Salém, em Massachussets, tornou-se o famigerado centro de perseguição. Houve, por exemplo, médicos que “apresentaram importantes provas científicas da culpa das feiticeiras” (* S.J.Fox – Science and Justice) Centenas de pessoas foram presas, 19 enforcadas e uma esmagada até a morte. Deutch (1949) transcreve as declarações de uma empregada de uma família de Boston, prestadas no processo aberto contra ela, em 1688, “por ter enfeitiçado os filhos do seu patrão”.

         “Quando lhe foi perguntado pelos Juizes, se alguém a havia ajudado, ela respondeu que isto era certo, mas então ela olhou no ar, com jeito descarado, e acrescentou que agora ele foi embora” (pg. 34).

         Evidentemente a mulher sofria de alucinações. Um comportamento como esse, que vem a ser um sintoma claro de esquizofrenia, no século XVII foi considerado como prova definitiva de possessão demoníaca.

         Durante a Renascença, a idéia de que os doentes mentais fossem possuídos pelos demônios, começou a ser contestada. Johan Weyer foi o primeiro médico a se interessar pelos distúrbios mentais, sendo considerado por alguns como o fundador da psiquiatria. O primeiro livro abordando problemas mentais, “A Anatomia da Melancolia” foi publicado em 1621.

         Ao longo de todos os tempos, a história das doenças mentais foi sempre uma tenebrosa história de crueldades, inconsciência e desumanidade! Só há relativamente pouco tempo a humanidade começou a se libertar de uma pesada carga de superstições e preconceitos. Faz ainda muito pouco tempo que despertamos de tão inconcebível pesadelo. Apesar de todos os pesares, diante de tão tétrico quadro, poder-se-ia concluir que, comparativamente, a situação já não é tão desesperadora e conseguimos avançar bastante e atingir um nível razoável de conhecimento neuro-psiquiátrico.

         Contudo, nessa nossa visão pretensiosa, talvez sejamos encarados pelas gerações futuras, como igualmente retrógrados e ignorantes. O que nos dá o direito de, agora, nos presumirmos donos da verdade?

Extraído de A Psicanálise no Divã, a ser lançado em breve.

O que os gaúchos dizem de Cuba

I

CUBA VIRA TEMA DE CAMPANHA DO PPB

CINCO MILITANTES DA SIGLA VISITARAM A ILHA DE FIDEL POR CINCO DIAS

Zero Hora, Porto Alegre (RS), 9 de agosto de 2001

Com o lema “A Juventude do PPB Adverte: Não Deixe o Rio Grande Virar Cuba” estampado nas camisetas, cinco integrantes do partido retornaram sexta-feira a Porto Alegre, trazendo na bagagem documentos, gravações e fotos do que consideram a verdadeira imagem da ilha.

Durante a viagem, os progressistas abriram a bandeira do Rio Grande do Sul na Praça da Revolução, em frente à sede do governo de Fidel Castro, sob os olhares atentos dos policiais de Havana.

O plano de responder ao hasteamento da bandeira de Cuba no Palácio Piratini, no dia da posse de Olívio Dutra, em 1999, segundo os jovens, não pôde ser concretizado da forma como imaginavam.

– Queríamos subir na torre do palácio do governo e hastear a bandeira lá em cima, mas os guardas nos barraram. O jeito foi abrir a bandeira na praça mesmo, com medo de os policiais nos prenderem – relata José Henrique Westphalen, 21 anos, coordenador da comitiva.

A viagem de cinco dias não cumpriu o roteiro original. José Henrique Westphalen, Luciano Anziliero, Marcelo Demolinier, Rogério Soliman e Sílvio Comanduli não conseguiram conhecer as universidades cubanas, em férias, nem os hospitais, porque não tinham autorização do governo. Apesar disso, trouxeram relatos de cubanos sobre a educação e a saúde no país de Fidel.

– As crianças estão desestimuladas com o estudo. Eles passam anos estudando medicina para receber um salário de US$ 7 depois de formados. E, mesmo que haja atendimento médico gratuito para todo mundo, os remédios receitados nunca são encontrados nas farmácias do governo – diz Westphalen.

A comitiva passou quatro dias em Havana, no Hotel Saint Jones, um estabelecimento três estrelas localizado no bairro El Vedado. As construções malconservadas do início do século passado, onde casas de uma só peça servem de moradia para famílias de até nove pessoas, surpreenderam os visitantes.

– Sei que, em alguns lugares do Brasil, a situação é parecida. Só que aqui a gente pode mudar de vida, estudando. Lá, não – compara Westphalen.

Depois de pagar US$ 56 por pessoa, os progressistas conseguiram rumar para Varadero, balneário paradisíaco onde os nativos só podem entrar com autorização oficial.

– Lá é outro mundo. Muitos dólares, carros importados, grande investimento estrangeiro em hotéis de luxo. Os cubanos que vivem em Varadero nunca saíram de lá. E os que encontramos em Havana nunca conheceram a praia.

Os progressistas gravaram conversas em bares do Malecón – avenida à beira-mar em Havana –, regadas a cervejas oferecidas aos cubanos, tiraram fotografias em preto-e-branco dos prédios antigos e compraram uma libreta por US$ 5 de um rapaz que pedia dinheiro aos turistas. No documento, o governo cubano marca a quantidade de alimentos e outros produtos distribuídos à população.

– Quem não tem a libreta fica sem comida – diz Westphalen.

No terceiro dia em Havana, os cinco jovens já queriam retornar a Porto Alegre e começar uma campanha pelo Interior para denunciar o que acham que o PT pode fazer com o Estado. Para a comitiva, as posições do partido no Rio Grande do Sul são semelhantes ao modelo de governo da ilha. 

A FÉ CONTRA A MISÉRIA

Percival Puggina, arquiteto

Correio do Povo, Porto Alegre, 26 de julho de 2001

Acabo de retornar de Cuba, onde passei sete dias. Esperava encontrar um povo homogeneamente pobre e o encontrei tão carente quanto se pode ser quando o salário da população ativa oscila entre 7 e 25 dólares. Os cortiços que dominam a área de Habana Vieja denotam miséria e apenas o fortíssimo policiamento ostensivo concede tranqüilidade aos turistas. A antiga libreta – após a saída dos russos, suspendendo três décadas de patrocínio – está reduzida a uma ração mensal de arroz, feijão, açúcar, leite em pó, meio quilo de carne de porco e quatro ovos. O resto há que buscar “en la calIe” com dólares. E os estrangeiros, fonte mais provável desses dólares, são permanentemente assediados por supostos guias turísticos, [agenciadores de prostitutas] e uma verdadeira multidão de prostitutas.

Há um rígido controle do Estado sobre a vida dos cidadãos. Em cada quarteirão opera um Comitê de Defesa da Revolução, cujo responsável, conforme me informou alguém, “conoce hasta el color del calzoncillo de mi padre”. Os cubanos não se podem hospedar em hotéis destinados a turistas nem freqüentar os melhores locais a estes reservados, não podem ter TV a cabo nem acessar a Internet. Os jornais – Granma e Juventud Rebelde – só contam boas notícias do regime e o que ocorre de ruim no resto do mundo.

Tive curiosidade de saber porque, com tais salários, nem todos vivem como os que habitam os cortiços que se espalham pela cidade. E fui informado de que a diferença se deve ao fato de que há famílias cubanas com fé e outras sem fé. “Todo seria mucho peor si no hubiera tanta gente com fe”, arrematou meu interlocutor com olhar matreiro. Sorri sem entender, e ele indagou:

— Sabés lo que es fe? Fe es la sigla local para ‘familiar en los Estados Unidos’…

CUBA, O INFERNO NO PARAÍSO

Juremir Machado da Silva

Correio do Povo, Porto Alegre (RS), 4 de março de 2001

Na crônica da semana passada, tentei, pela milésima vez, aderir ao comunismo. Usei todos os chavões que conhecia para justificar o projeto cubano. Não deu certo. Depois de 11 dias na ilha de Fidel Castro, entreguei de novos os pontos.

O problema do socialismo é sempre o real. Está certo que as utopias são virtuais, o não-lugar, mas tanto problema com a realidade inviabiliza qualquer adesão. Volto chocado: Cuba é uma favela no paraíso caribenho.

Não fiquei trancando no mundo cinco estrelas do hotel Habana Libre. Fui para a rua. Vi, ouvi e me estarreci. Em 42 anos, Fidel construiu o inferno ao alcance de todos. Em Cuba, até os médicos são miseráveis. Ninguém pode queixar-se de discriminação. É ainda pior. Os cubanos gostam de uma fórmula cristalina: ‘Cuba tem 11 milhões de habitantes e 5 milhões de policiais’. Um policial pode ganhar até quatro vezes mais do que um médico, cujo salário anda em torno de 15 dólares mensais. José, professor de História, e Marcela, sua companheira, moram num cortiço, no Centro de Havana, com mais dez pessoas (em outros chega a 30). Não há mais água encanada. Calorosos e necessitados de tudo, querem ser ouvidos. José tem o dom da síntese: ‘Cuba é uma prisão, um cárcere especial. Aqui já se nasce prisioneiro. E a pena é perpétua. Não podemos viajar e somos vigiados em permanência. Tenho uma vida tripla: nas aulas, minto para os alunos. Faço a apologia da revolução. Fora, sei que vivo um pesadelo. Alívio é arranjar dólares com turistas’. José e Marcela, Ariel e Julia, Paco e Adelaida, entre tantos com quem falamos,pedem tudo: sabão, roupas, livros, dinheiro, papel higiênico, absorventes. Como não podem entrar sozinhos nos hotéis de luxo que dominam Havana, quando convidados por turistas, não perdem tempo: enchem os bolsos de envelopes de açúcar. O sistema de livreta, pelo qual os cubanos recebem do governo uma espécie de cesta básica, garante comida para uma semana. Depois, cada um que se vire. Carne é um produto impensável.

José e Marcela, ainda assim, quiseram mostrar a casa e servir um almoço de domingo: arroz, feijão e alguns pedaços de fígado de boi. Uma festa. Culpa do embargo norte-americano? Resultado da queda do Leste Europeu? José não vacila: ‘Para quem tem dólares não há embargo. A crise do Leste trouxe um agravamento da situação econômica. Mas, se Cuba é uma ditadura, isso nada tem a ver com o bloqueio’. Cuba tem quatro classes sociais: os altos funcionários do Estado, confortavelmente instalados em Miramar; os militares e os policiais; os empregados de hotel (que recebem gorjetas em dólar); e o povo. ‘Para ter um emprego num hotel é preciso ser filho de papai, ser protegido de um grande, ter influência’, explica Ricardo, engenheiro que virou mecânico e gostaria de ser mensageiro nos hotéis luxuosos de redes internacionais.

Certa noite, numa roda de novos amigos, brinco que,quando visito um país problemático, o regime cai logo depois da minha saída. Respondem em uníssono:

Vamos te expulsar daqui agora mesmo’. Pergunto por que não se rebelam, não protestam, não matam Fidel? Explicam que foram educados para o medo, vivem num Estado totalitário, não têm um líder de oposição e não saberiam atacar com pedras, à moda palestina. Prometem, no embalo das piadas, substituir todas as fotos de Che Guevara espalhadas pela ilha por uma minha se eu assassinar Fidel para eles.

Quero explicações, definições, mais luz. Resumem: ‘Cuba é uma ditadura’. Peço demonstrações: ‘Aqui não existem eleições. A democracia participativa, direta, popular, é um fachada para a manipulação. Não temos campanhas eleitorais, só temos um partido, um jornal, dois canais de televisão, de propaganda, e, se fizéssemos um discurso em praça pública para criticar o governo, seríamos presos na hora’.

Ricardo Alarcón aparece na televisão para dizer que o sistema eleitoral de Cuba é o mais democrático do mundo. Os telespectadores riem: ‘É o braço direito da ditadura. O partido indica o candidato a delegado de um distrito; cabe aos moradores do lugar confirmá-lo; a partir daí, o povo não interfere em mais nada. Os delegados confirmam os deputados; estes, o Conselho de Estado; que consagra Fidel’.Mas e a educação e a saúde para todos? Ariel explica: ‘Temos alfabetização e profissionalização para todos, não educação. Somos formados para ler a versão oficial, não para a liberdade.

A educação só existe para a consciência crítica, à qual não temos direito. O sistema de saúde é bom e garante que vivamos mais tempo para a submissão’.José mostra-me as prostitutas, dá os preços e diz que ninguém as condena:’Estão ajudando as famílias a sobreviver’. Por uma de 15 anos, estudante e bonita, 80 dólares. Quatro velhas negras olham uma televisão em preto e branco, cuja imagem não se fixa. Tentam ver ‘Força de um Desejo’. Uma delas justifica: ‘Só temos a macumba (santería) e as novelas como alento. Fidel já nos tirou tudo.Tomara que nos deixe as novelas brasileiras’. Antes da partida,José exige que eu me comprometa a ter coragem de, ao chegar ao Brasil, contar a verdade que me ensinaram: em Cuba só há ‘rumvoltados’.

E-mail: juremir@pucrs.br