Pedro Paulo Rocha
pedroprocha@netpar.com.br

10 de agosto de 2001

         Ao se defrontar com o problema de transcender a própria individualidade, o homem, que criou um meio social progressivamente complexo, tornou-se uma vítima potencial do tremendo estresse gerado por esta complexidade. A Religião e a Filosofia, com enorme diversidade, reflexos de suas respectivas culturas, espelham a busca da solução desta questão. O medo do desconhecido e a necessidade de dar sentido ao mundo que nos cerca levaram o homem a fundar diversos sistemas de crenças, cerimônias e cultos, quase sempre centrados na figura de um ente supremo, que o ajuda na busca da compreensão do significado último de sua própria natureza. Mitos, superstições ou ritos mágicos que as sociedades primitivas teceram em torno de uma existência sobrenatural, inatingível pela razão, já nas primeiras formas de religião, se alicerçaram na crença num ser superior e no desejo de comunhão com ele. O fato é que, quanto mais o ser humano se separa do mundo natural e desfaz os laços que o ligam à natureza, mais intensa se torna a sua necessidade de encontrar meios de fugir aos dilemas que o progresso lhe traz.

         Não só a pressão cada vez mais insuportável do meio social, como a influência de fatores ambientais, genéticos, viróticos, efeito de drogas, etc. deflagram distúrbios de comportamento que vêm sendo um motivo de preocupação crescente. Levantamentos da OMS reportam que os índices de incapacitação por distúrbios mentais chegam a 10% e revelam uma tendência a aumentar.

         A idéia de que a insanidade era rara entre os povos primitivos e que tende a aumentar na proporção em que o processo civilizatório se desenvolve, apareceu inicialmente no século XIX. Importantes psiquiatras daquela época defenderam a idéia de que há uma relação íntima entre civilização e saúde mental. A noção do “bom selvagem” proposta por Rousseau, filósofo francês do século XVIII, era predominante.

         O naturalista alemão, Alexander Von Humbold, em sua viagem pelo interior América, se disse surpreso com a ausência de doentes mentais entre os selvagens. Um médico, responsável pelas reservas dos Cherokees, registrou que, entre os 20 mil índios, nunca havia visto ou mesmo ouvido casos de insanidade. O capitão Wilkes, comandante da Expedição Exploratória Americana, também relatou que, durante a sua viagem pelos mares do sul, não encontrou nenhum caso de loucura entre os povos daquela região.

         Contudo, curiosamente, os autores, não fizeram qualquer referência às suas limitações lingüísticas e à dificuldade de entender os valores e costumes dos povos estudados. Os pesquisadores deste período não dominavam seus idiomas e ainda menos seus valores culturais. Assim, se manifestavam a respeito dos comportamentos visíveis e externos, destes povos, sem ouvi-los e conhecer seus sofrimentos subjetivos. Além disto, devido as condições precárias de atendimento psiquiátrico, apenas os casos mais graves, predominantemente de agressividade, recebiam alguma atenção.

         Durante o curso do século XIX, simultaneamente com o colonialismo, os colonizadores começaram a descobrir doenças mentais que atingiam povos primitivos, como Amok, entre os nativos de Java; Koro, entre os chineses; Myriath, na Siberia; Piblokto entre os esquimós, etc. Nesta época surgiu também o interesse do alguns psiquiatras europeus em demonstrar que doenças clássicas conhecidas, como a esquizofrenia, eram universais e não apenas limitadas, geograficamente, à Europa. O grande psiquiatra alemão Emil Kraepelin foi um dos primeiros a fazer repetidas viagens ao Oriente e a examinar pacientes mentais entre os povos primitivos, inclusive na ilha de Java. Em decorrência, a idéia de ausência de doenças mentais entre os povos primitivos não se sustentou.

         De fato, a doença mental acompanha o homem desde os seus primórdios. Histórias antigas relatam os impulsos homicidas do rei Saul, ou a insensatez de Nabucodonosor, que “comia grama como os bois e deixava que o orvalho das nuvens molhasse o seu corpo até que crescesse o cabelo como as penas da águia e suas unhas como as garras dos pássaros”. Arqueólogos encontraram crânios trepanados, em locais tão dispersos como o Vale do Nilo, no Egito, e as sepulturas dos Incas, no Peru, que denotam a tentativa das antigas civilizações de desvendar o cérebro humano.

         Cerca de quatro séculos antes de Cristo, o médico grego Hipócritas, (460 a 370 AC), considerado o pai da medicina, procurou livrar o estudo das doenças mentais do posicionamento místico e filosófico, colocando-o no contexto das enfermidades em geral. No terceiro século depois de Cristo, Galen, um grego, também responsabilizou o cérebro pela ocorrência de distúrbios psíquicos. Foram porém tentativas isoladas, pois “A Psiquiatria, quase que no momento em que nasceu do útero da Medicina, nos tempos de Hipócrates, foi raptada e carregada para a estranha casa da teologia e para os policrômicos jardins da filosofia abstrata” (* Zilboorg & G.W.Henry – A History of Medical Psychology – 1941) A conceituação da doença mental como uma forma de possessão, dominou durante a idade média e perdurou por muitos séculos.

         A demonologia considerava que Satanás podia se apoderar do corpo de uma pessoa e exercer sobre ela total controle. Com a hegemonia do catolicismo, na Europa, a possessão passou a ser interpretada como uma oposição à igreja e a Deus. A teologia reconhecia dois tipos de possessão. No primeiro tipo, a suposta vítima era possuída contra a sua vontade, como um castigo divino pelos pecados cometidos. No outro, a pessoa teria feito um pacto voluntário com o diabo. Esses eram os bruxos. Além do diabo, que também era denominado Satã, Lúcifer ou outros títulos, como Príncipe das Trevas ou simplesmente demônio, os cristãos medievais acreditavam haver grande número de maus espíritos, que auxiliavam o Diabo, em sua obra do mal.

         Em 1484 o Papa Innocêncio VIII redigiu uma bula papal, na qual advertia o clero, exigindo “que não se deixasse pedra sobre pedra, na caça aos bruxos”. O livro Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas), escrito por dois monges dominicanos, em 1486, por determinação daquele Papa, e reimpresso 14 vezes, apresentava detalhada descrição dos processos para se reconhecer os feitiços. Muitas das características descritas são as mesmas dos sintomas de inúmeros distúrbios mentais, hoje conhecidos e catalogados. Os infelizes, assim identificados, eram torturados até a morte, disto não escapando nem crianças ou anciões. “Entre 1450 e 1750, mais de 100 mil pessoas, a maioria mulher, foram julgadas por tribunais eclesiásticos, em diferentes partes da Europa, pela suposta prática de magia maléfica e adoração do Diabo”. Milhares de desgraçados, pereceram sob as mais terríveis torturas, em nome de Deus e da Religião.

         O julgamento era conseqüência de uma acusação formal. Caso houvesse alguma dúvida, o tribunal apelaria a Deus para que fornecesse alguma prova. O modo mais comum era o ordálio, ao qual o acusado tinha que se submeter, para provar sua inocência. Consistia em testes, como carregar um ferro em brasa, a certa distância e, se não fosse culpado, ter miraculosamente curada a carne queimada, ou ainda ser jogado em um reservatório de água e considerado inocente somente se afundasse. A alternativa era a desumana tortura, descrita em muitos documentos da época.

         O mais famoso crítico da caça às bruxas, foi Johann Weyer, médico do humanista duque de Cleves. Nos seus livros ele tentou mostrar que as mulheres ignorantes que confessavam a prática de bruxaria eram “pobres, miseráveis, velhas, decadentes e melancólicas mulheres, vítimas de delírios”. Usando seus conhecimentos médicos, alegava que o suposto malefícia das bruxas podiam ser explicados por causas naturais médicas e que, na verdade, eram doentes mentais. Por lhe faltar uma teoria filosófica e teológica abrangente sobre os poderes do Diabo, os tratados de Weyer foram incapazes de resistir aos ataques que lhe foram atirados. Sua posição foi rejeitada pelo poder eclesiástico que preferia acreditar que a bruxaria era real e que as bruxas deveriam ser duramente julgadas e castigadas, para a salvação de suas almas.

         Por ocasião do século XVII a caça às bruxas se estendeu também às colônias do Novo Mundo. Salém, em Massachussets, tornou-se o famigerado centro de perseguição. Houve, por exemplo, médicos que “apresentaram importantes provas científicas da culpa das feiticeiras” (* S.J.Fox – Science and Justice) Centenas de pessoas foram presas, 19 enforcadas e uma esmagada até a morte. Deutch (1949) transcreve as declarações de uma empregada de uma família de Boston, prestadas no processo aberto contra ela, em 1688, “por ter enfeitiçado os filhos do seu patrão”.

         “Quando lhe foi perguntado pelos Juizes, se alguém a havia ajudado, ela respondeu que isto era certo, mas então ela olhou no ar, com jeito descarado, e acrescentou que agora ele foi embora” (pg. 34).

         Evidentemente a mulher sofria de alucinações. Um comportamento como esse, que vem a ser um sintoma claro de esquizofrenia, no século XVII foi considerado como prova definitiva de possessão demoníaca.

         Durante a Renascença, a idéia de que os doentes mentais fossem possuídos pelos demônios, começou a ser contestada. Johan Weyer foi o primeiro médico a se interessar pelos distúrbios mentais, sendo considerado por alguns como o fundador da psiquiatria. O primeiro livro abordando problemas mentais, “A Anatomia da Melancolia” foi publicado em 1621.

         Ao longo de todos os tempos, a história das doenças mentais foi sempre uma tenebrosa história de crueldades, inconsciência e desumanidade! Só há relativamente pouco tempo a humanidade começou a se libertar de uma pesada carga de superstições e preconceitos. Faz ainda muito pouco tempo que despertamos de tão inconcebível pesadelo. Apesar de todos os pesares, diante de tão tétrico quadro, poder-se-ia concluir que, comparativamente, a situação já não é tão desesperadora e conseguimos avançar bastante e atingir um nível razoável de conhecimento neuro-psiquiátrico.

         Contudo, nessa nossa visão pretensiosa, talvez sejamos encarados pelas gerações futuras, como igualmente retrógrados e ignorantes. O que nos dá o direito de, agora, nos presumirmos donos da verdade?

Extraído de A Psicanálise no Divã, a ser lançado em breve.

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