Convite à falsificação

A tese de que a filosofia ensina a pensar criticamente parte da falsa imagem do filósofo como alguém afastado dos assuntos humanos.

Gonçalo Armijos Palacios
Filósofo, professor da Universidade Federal de Goiás.

Opção (Goiânia), 4 nov. 2001

O veto presidencial do projeto de introdução da filosofia no ensino médio deve levar-nos a algumas reflexões necessárias. Em primeiro lugar: deve ou não a filosofia ser ministrada para adolescentes? A resposta positiva costuma vir com uma justificação: a filosofia deve ser ensinada aos jovens porque ela ensina a pensar criticamente.

A filosofia, lamentavelmente, é uma das disciplinas menos compreendidas, tanto pelo leigo como por quem diz que a conhece. A lógica, costuma-se dizer, ensina a pensar e a filosofia ensina a pensar criticamente. Das duas afirmações, a primeira é absurda e a segunda é falsa. Para ensinar lógica precisamos, obviamente, que quem vai aprender tenha um mínimo de capacidade intelectual e, portanto, que já saiba pensar. Não digo isto de uma perspectiva exterior à lógica. Estudei lógica formal e lógica matemática e ministrei aulas de lógica formal, lógica informal e lógica matemática. E nunca me passou pela cabeça a peregrina idéia de que ia ensinar a pensar àqueles que estavam na minha frente, pois eles, precisamente, tinham as condições de entender o que eu ia dizer. A lógica formal não ensina a pensar, ensina as formas em que nós, os humanos, costumamos pensar, tanto quando raciocinamos corretamente quando o fazemos incorretamente. A lógica matemática ensina processos mais complexos de demonstração que jamais um indivíduo emprega ou chegaria a empregar no seu dia-a-dia.

Passemos à suposta característica de a filosofia ensinar a pensar criticamente. Esta afirmação parte daquela falsa imagem do filósofo como de alguém tão afastado dos assuntos humanos que não teria esse apego que as pessoas comuns têm por aquilo em que acreditam. Assim, dois filósofos, argumentando racionalmente, chegariam às conclusões mais lógicas e, portanto, à verdade — mesmo que esta verdade contradiga posicionamentos anteriores. Nada mais afastado da verdade. É só dar uma olhada rápida na filosofia para ver que não é assim. Os filósofos dificilmente se afastam das teorias que defendem. E isto pela simples razão de serem poderosas as razões que os levaram a defender suas teorias. Para citar um único exemplo: todas as evidências do mundo não foram suficientes para convencer Zenão de que o movimento existe! Zenão fincou pé e defendeu a tese de Parmênides com os mais sofisticados paralogismos. Cadê a atitude crítica? Não há nada que indique que Zenão abandonou suas posições.

Deixemos de lado a tese falsa de que a filosofia ensina a pensar criticamente para perguntar se o mesmo é exigido de alguma outra disciplina. A física ensina a pensar criticamente? A matemática? A biologia? O que a física, a matemática e a biologia ensinam não é mais do que os resultados aos quais físicos, matemáticos e biólogos chegaram. O papel dos professores de física, matemática e biologia deveria ser o de ensinar aos alunos não só os resultados finais aos quais os cientistas chegaram, mas como eles chegaram aos resultados que obtiveram. De maneira análoga, se alguma coisa os professores de filosofia poderiam mostrar aos alunos é como os filósofos chegaram aos seus. Isso mostraria aos alunos quão diferentes foram as motivações, os problemas e os métodos usados pelos vários cientistas e filósofos. Mostraria, entre outras coisas, como cientistas e filósofos divergem e se opõem. Poria em claro, não a inexistente unidade temática, problemática e metodológica na ciência e na filosofia, mas sua pluralidade e diversidade. Mostraria, já na filosofia, que dificilmente encontraremos dois filósofos que concordem sobre o que é a própria filosofia.

Quando cursei o segundo grau tive matérias filosóficas, ética e lógica, assim como filosofia. Penso que foi muito bom para mim ter tido, já naquela idade, contato com alguns dos infindáveis problemas e enfoques filosóficos. E quero frisar: infindáveis. São tantos os problemas e tão diversos os enfoques que mesmo o mais erudito os desconhece. É por isso que a filosofia é inesgotável e aberta, apesar de todas as definições com que obstinadamente muitos a querem desvirtuar. Mas tive a sorte de não ter sido patrulhado ideologicamente e meu professor não seguia um manual de filosofia escrito para oligofrênicos.

Posso estar enganado, mas uma das conseqüências da ditadura militar foi ter empurrado os intelectuais a abraçar o marxismo. Poderiam ter sido motivados a ler Marx, mas sempre é mais fácil ler os manuais de divulgação. E muito me temo que é a pior das vulgarizações e deformações do pensamento de Marx que circula por aí em assembléias, artigos e manuais. Conheço a história da filosofia não por ouvir falar, mas pela leitura das fontes. E fiquei espantado quando li um dos manuais que aparentemente é o mais usado no ensino médio.

Trata-se do texto Convite à Filosofia (São Paulo : Ática, 1995) de uma das mas conhecidas figuras da academia filosófica brasileira, Marilena Chaui. O manual é um eivado de afirmações, umas inexatas, outras falsas, muitas completamente descontextualizadas e outras francamente ridículas. Na página 12, por exemplo, se diz que Sócrates “afirmava que a primeira e fundamental verdade filosófica é dizer: ‘Só sei que nada sei’”. Sócrates jamais fez semelhante afirmação. E a autora não diz as circunstâncias em que a frase “só sei que nada sei” foi dita. Mas peço ao leitor atenção: uma coisa é afirmar ‘a primeira e fundamental verdade filosófica é dizer só sei que nada sei’ — nunca proferida por Sócrates — e outra completamente diferente dizer apenas ‘só sei que nada sei’. Isto último, sim, foi dito por Sócrates — mas perceba-se que nada se diz sobre ser a primeira e fundamental verdade filosófica. A autora não diz o lugar em que podemos encontrá-la. A afirmação se encontra nas primeiras páginas da Apologia de Sócrates, escrita pelo seu discípulo Platão, e não deixa lugar a dúvidas sobre o que significa. Sócrates afirma aí que um amigo, Carefon, perguntou ao oráculo de Delfos se havia alguém mais sábio que Sócrates. A resposta foi que “ninguém é mais sábio que Sócrates”. Este conta que ficou perplexo ao saber o que o oráculo tinha dito porque não se considerava sábio. Ora, por outro lado, o deus não podia estar mentindo ao fazer semelhante afirmação. Sócrates, então, se viu na necessidade de interpretar o que o oráculo dizia e chegou à conclusão de que, à diferença de muitos que diziam saber muitas coisas que no fundo não sabiam, ele, Sócrates, era ciente da sua ignorância. Sua sabedoria, portanto, consistia em reconhecer que nada sabia. Era isto que o tornava mais sábio do que os outros. Este é contexto da expressão ‘só ei que nada sei’ e nada há no texto de Platão que indique que Sócrates tenha feito a outra afirmação: “a primeira e fundamental verdade filosófica é dizer [sic] ‘eu sei que nada sei’”.

Fiquei surpreso, contudo, quando no final da Introdução li: “O primeiro ensinamento filosófico é perguntar: O que é útil? Para que e para quem algo é útil? O que é o inútil? Por que e para quem algo é inútil?”! Se partimos do suposto que os ensinamentos filosóficos são feitos pelos filósofos, é de se imaginar que essas perguntas tenham sido feitas por algum filósofo antigo. Como, segundo a autora, tais perguntas formam parte “do primeiro ensinamento filosófico”, é óbvio que os primeiros filósofos devam ter sido os que as fizeram. Mas é claro que não há nada nos primeiros filósofos (Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Xenófanes, Heráclito ou Parmênides) que indique que eles tivessem tais preocupações utilitárias ou proposto algo parecido com o utilitarismo. “Qual é o princípio de todas as coisas” — que é a pergunta dos três primeiros filósofos gregos — não tem absolutamente nenhuma relação com preocupações utilitárias. A pergunta, aliás, está mais para o pragmaticamente inútil do que para o útil. Mas, note-se, como poderíamos relacionar “a primeira e fundamental verdade filosófica”, que é, segundo a autora, “eu sei que nada sei”, com o “primeiro ensinamento filosófico” que consistiria em “perguntar” “o que é útil”, “para que e para quem algo é útil” etc.? É óbvio que o primeiro ensinamento filosófico deve estar relacionado à primeira e fundamental verdade filosófica. Que relaciona o problema da utilidade com a douta ignorância de Sócrates? Nada, naturalmente. E, por último, por que nem o “primeiro ensinamento filosófico” nem a “primeira e fundamental verdade filosófica” se encontram nos fragmentos deixados pelos filósofos pré-socráticos, isto é, pelos verdadeiros primeiros filósofos? Grande mistério.

A essas pérolas juntam-se outras que mencionarei nos próximos artigos. Mas, adianto uma delas. Segundo a autora — pasmem — “a física dos átomos revelou … que não podemos saber as razões pelas quais os átomos se movimentam, nem sua velocidade e direção, nem os efeitos que produzirão”! Que tal? O que o aluno aprende na aula de física, desaprende na de filosofia! Um verdadeiro convite à falsificação…

Silêncio geral

 

Olavo de Carvalho


Zero Hora (Porto Alegre), 4 de novembro de 2001

O silêncio geral da mídia brasileira em torno do processo que exilados cubanos movem contra Fidel e Raul Castro, na Bélgica, por crimes contra a humanidade, contrasta de tal modo com o carnaval montado em apoio às investidas judiciais anti-Pinochet do dr. Baltazar Garzón, que qualquer sugestão de atribuí-lo à mera coincidência deve ser afastada, “in limine”, como tentativa de acrescentar à imoralidade da omissão a perversidade da camuflagem.

O esquecimento a que os órgãos de imprensa do eixo Rio-São Paulo condenaram essa notícia importantíssima não é um fato isolado: o exame meticuloso dos jornais dos últimos vinte anos mostrará que eles suprimiram sistematicamente qualquer menção aos crimes praticados pelo governo cubano nesse período, ao mesmo tempo que, numa ostensiva inversão de todos os critérios jornalísticos admissíveis, davam destaque cada vez maior à exumação de episódios de violência anticomunista, incomparavelmente menores em número e em gravidade, ocorridos trinta ou quarenta anos atrás no Brasil ou no Chile.

Nesse mesmo sentido deve ser compreendida a ocultação obstinada e sistemática do julgamento do clã Pol-Pot, certamente o acontecimento judiciário mais relevante desde o julgamento de Nuremberg.

A orientação geral do noticiário brasileiro, nesses pontos, é moldada segundo os padrões clássicos da propaganda e da desinformação comunista, e a generalização desse fenômeno rebaixa a nossa classe jornalística a uma horda de militantes sectários, indignos da confiança que o público deposita em profissionais “soi disant” empenhados em informá-lo.

Pouco importa o que dirão de mim, ao ler isso, os círculos bem-pensantes da classe a que afinal pertenço, e em cuja defesa já me mobilizei, em outras épocas, com riscos iguais aos que pesavam sobre meus companheiros. Pois uma coisa é unir a classe para resistir a um regime autoritário. Exageros retóricos e pequenas distorções, aí, correm por conta das angústias do momento. Outra coisa completamente diversa é, num regime democrático, com plena liberdade de imprensa, essa classe arrogar-se o poder de censura para ocultar os crimes de seus ídolos enquanto alardeia histericamente os de seus desafetos, com base no dogma monstruoso e imoral, proclamado na TV por um idiota politicamente correto, de que “a melhor direita é pior do que a pior esquerda”.

Solidariedade na luta contra a ditadura é uma coisa. Cumplicidade na destruição da democracia é outra. Usar a primeira como pretexto para a segunda é ainda uma terceira.

É evidente que nem todos os jornalistas são agentes, conscientes ou inconscientes, dessa desinformação. Mas os poucos que não o são estão perdidos e isolados na massa de seus colegas hostis, ou então calados e paralisados pelo medo dos insultos e da discriminação ostensiva ou camuflada.

Sobre Fidel e Raúl pesam culpas incomparavelmente maiores que as do general Pinochet. Se este foi um governante autoritário que fez vista grossa a excessos na repressão a opositores armados, aqueles são genocidas comprovados, responsáveis pelas mortes de 17 mil cidadãos desarmados, em seu próprio país, e de mais algumas dezenas de milhares de angolanos,  liquidados pelas forças de ocupação cubanas comandadas pelo sociopata sanguinário Ernesto Che Guevara.

A cumplicidade da imprensa nacional na ocultação dos crimes dos Castros já durou tempo demais e já deixou claro que parcelas imensas da classe jornalística entendem por “ética” a prática costumeira e cínica da desinformação a serviço de ditaduras comunistas.

***

A vasta repercussão midiática da denúncia de que o governador Olívio Dutra seria beneficiário de um acordo com bicheiros pareceria indicar uma mudança de atitude da parte da classe jornalística, uma atenuação do seu sectarismo ou ao menos um súbito acesso de escrupulosidade.

Mas a acusação de envolvimento com miúdos contraventores, lançada sobre um governante que tem conversações secretas com os narcoguerrilheiros das FARC, é quase uma amabilidade. É, no fim das contas, desviar as atenções do público para um delito menor, amortecendo o impacto de suspeitas infinitamente mais graves e dissuadindo de investigá-las.

É compreensível que, de puro medo de reconhecer a verdadeira escala de periculosidade dos fatos que ocorrem no Brasil de hoje, liberais e conservadores prefiram tratar seus adversários no plano da pura disputa eleitoral corriqueira, acusando-os, no máximo, de má administração ou de desvio de verbas, como é usual e banal nos confrontos democráticos. Evitam assim tomar consciência de que esse adversário não tem apenas, como eles, um moldesto buquê de táticas eleitorais pragmáticas, mas toda uma estratégia longamente pensada  um plano enormemente mais amplo e de longo alcance, voltado à transformação revolucionária da sociedade e intimamente associado ao esquema de revolução continental já em andamento na Venezuela e na Colômbia sob a inspiração de Fidel Castro.

Para não ver o perigo, refugiam-se no “wishful thinking” de que acusações de corrupção, letais quando dirigidas contra eles próprios, possam fazer idêntico mal a revolucionários cujo esteio é o eleitor ideologicamente comprometido, imbuído da ética da justificação dos meios pelos fins, cego para todos os crimes de seus líderes e sempre disposto a desculpá-los em função de um bem mais alto: a causa da revolução.

Liberais e conservadores desejariam  ah! como desejariam!  estar numa democracia estável, onde os partidos não visassem senão a ocupar o governo em turnos, concorrendo lealmente para esse fim e abandonando cavalheirescamente as posições conquistadas quando derrotados nas eleições.

Mas o fato é que não estamos nessa democracia. Estamos numa democracia em decomposição, condenada à morte por uma revolução continental muito mais articulada e violenta que a da década de 60 e pela omissão suicida dos que teriam o dever de fazer face à ameaça.

Fraude e inconsciência

Olavo de Carvalho


O Globo, 3 de novembro de 2001

O socialismo foi, ao longo de toda a história, a única doutrina que professou abertamente reduzir todas as manifestações da cultura a instrumentos da luta pelo poder. Arte, literatura, direito, ciência, religião, educação e tudo o mais que a inteligência humana pudesse criar deveriam servir, antes de tudo, para colocar no poder um certo grupo ou partido e suprimir os meios de ação de seus adversários.

Que essa proposta fosse absurda e monstruosa em si, “cela va sans dire”. Mas o fato é que essa mesma característica dava ao socialismo uma extraordinária superioridade na concorrência com as demais doutrinas.

Primeiro, porque nenhuma delas poderia jamais organizar-se, como ele, de maneira disciplinada para produzir um discurso coerente e unitário sobre todos os aspectos e fenômenos da vida. Nenhuma doutrina ou corrente de opinião pretendeu jamais abarcar um campo tão vasto, nem muito menos subjugá-lo de maneira tão rasa e imediata aos fins práticos de uma ambição política.

Segundo, porque essa peculiaridade tornava o socialismo a doutrina de mais fácil e imediata aceitação: é incomparavelmente mais fácil envolver as pessoas numa fantasia psicótica auto-reprodutora do que conduzi-las ao longo de uma penosa e lenta caminhada por entre as ambigüidades e contradições da vida. A noção mesma de “contradição”, no socialismo marxista, sofria uma simplificação redutiva que a tornava facilmente manejável para fins de propaganda política.

Terceiro, porque, nessas condições, o socialismo atuava sobre o imaginário coletivo como força unificada, enquanto quaisquer outras doutrinas se esfarelavam e se despersonalizavam numa poeira confusa de diferenças dificilmente abarcáveis pelo olhar do cidadão comum. (E quando o socialismo pós-URSS abandonou até suas pretensões de formulação doutrinal explícita, reduzindo-se a um mero sistema de estimulações emocionais, a coisa tornou-se ainda mais fácil.)

Quarto, porque o socialismo podia prevalecer-se do relativo desconhecimento das demais doutrinas para impor, mediante autoprojeção inversa, a crença de que todas elas eram também meros instrumentos de luta política, só que com finalidades opostas às suas. Sendo as metas autoproclamadas do movimento socialista a justiça, a paz e o bem, todas as demais doutrinas tornavam-se instrumentos da injustiça, da guerra e do mal. Por meio dessa gigantesca fraude os porta-vozes do socialismo puderam assim desmoralizar como instrumentos militantes da “ideologia burguesa” até mesmo as doutrinas científicas mais rigorosas, mais objetivas e mais alheias a qualquer ambição política. Quando a evidente boa-fé e o rigor intelectual de um autor viesse a tornar inverossímil a acusação de que suas obras fossem uma apologia da exploração do homem pelo homem, restava sempre a possibilidade apelar ao subterfúgio de que nesse caso em particular as intenções maquiavélicas eram inconscientes ou estavam encobertas por um véu de “falsa consciência”.

Assim, face ao assalto maciço das hordas socialistas, os adversários, dispersos e desorganizados por definição, não podiam senão recorrer a inúteis apelos à razão e ao bom senso, cujo exercício pelo público se tornava impossível graças ao tom de passionalismo denuncista e belicoso que o próprio lance inicial dado pelos socialistas imprimia a toda e qualquer disputa intelectual.

A única tentativa de opor ao bloco socialista uma resistência unitária e maciça não veio de seus inimigos, os capitalistas liberais, mas de um concorrente emergido das próprias fileiras socialistas: o nazifascismo. Este tinha tanta “personalidade”, tanta visibilidade e tanta brutalidade quanto o socialismo, e era tão pretensioso quanto ele em sua ambição de tudo abarcar  — da gramática à medicina — e tudo tornar instrumento da luta. Mas, como reação improvisada que foi, ficou muito abaixo do socialismo, seja em volume de produções, seja em nível de elaboração intelectual. Macaqueação canhestra, terminou oferecendo ao adversário a ajuda mais inesperada e mais decisiva: tornou possível a dupla fraude hermenêutica que se tornou a mais poderosa arma do arsenal retórico socialista. Primeiro, tratou-se de converter o fascismo — mistura de socialismo e nacionalismo xenófobo — em “doutrina capitalista burguesa” (analisei esse truque no artigo “Coelhos fantasmas” de 8 set. 2001). Feito isto, tornava-se fácil tomar qualquer doutrina já previamente diagnosticada como “ideologia burguesa” (pelos meios acima descritos) e, num passe de mágica, colar-lhe por acréscimo o rótulo de fascista. Descobrir fascismo por trás das idéias mais díspares e heterogêneas tornou-se, desde então, o meio básico de análise no enfoque socialista do que quer que seja — praticamente o único instrumento intelectual em uso na totalidade da literatura esquerdista, na produção acadêmica esquerdista, no jornalismo esquerdista. E, da maneira mais clara possível, esse meio e instrumento consiste em uma só coisa: fraude.

Transformar em fraude a totalidade dos produtos da inteligência humana e fazê-lo por meio de um esquema interpretativo simples, automático, repetível como um cacoete, autoproliferante como um vírus de computador, tal foi a grande, a rigor a única realização intelectual do socialismo.

A potência embrutecedora desse mecanismo é incalculável. Ela pode levar o ser humano a abismos de inconsciência jamais imaginados. Querem um exemplo? Quando, na década de 60, os países comunistas investiram mais em “cultura” anti-americana dentro dos EUA do que em material bélico no Vietnã, eles sabiam o que estavam fazendo. A guerra do Vietnã foi, na história, a primeira em que um dos lados deu plena liberdade, em seu próprio território, à propaganda do inimigo. A mídia tornou-se duplamente útil aos comunistas: servia a seus objetivos político-militares ao mesmo tempo que continuava a ser desmoralizada como instrumento de propagação imperialista do “american way of life”. É absolutamente impossível que uma mente normal não perceba a incongruência, mas as massas de hoje já não se constituem de pessoas normais, mas de idiotas que chamam de “mídia imperialista” os mesmos jornais em que lêem diariamente doses maciças de tagarelice anti-americana. E os jornalistas de esquerda que aí vetam ou camuflam à vontade qualquer notícia de atrocidades comunistas — os mesmos que fazem com que umas quantas mortes acidentais em bombardeios pareçam crime tão hediondo quanto o homicídio premeditado de seis mil civis –, ainda podem gritar (e alguns até acreditar) que não têm liberdade de imprensa, que são indefesos socialistas oprimidos pelo sistema, forçados por cruéis patrões a trabalhar para a propaganda capitalista…