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O mercado e um lembrete

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 14 de agosto de 2008

Os comunistas acreditavam que a propriedade privada era a realidade fundamental por trás da religião, e que abolindo esse fundamento poderiam suprimir do horizonte humano a perspectiva da transcendência, impondo à sociedade, segundo a expressão de Antonio Gramsci, uma cosmovisão “radicalmente terrestrializada”. Em vários países o capitalismo alcançou praticamente o mesmo resultado sem destruir a propriedade privada nem fazer dano algum aos muito ricos, na verdade tornando-os prodigiosamente mais ricos.

Se algo esse duplo e concorrente fenômeno demonstra, é que a expectativa comunista se baseava num non sequitur: definitivamente, a cultura espiritual não é um revestimento ideológico da propriedade privada – ela é uma estrutura independente, que pode sobreviver muito bem à estatização da economia ou definhar em pleno regime de livre empresa.

Mas também é evidente que, entre os adeptos da economia de mercado, só os fanáticos anti-religiosos e cultores devotos do dinheiro, tão incapazes quanto os comunistas de admitir quaisquer valores acima dos econômicos, festejariam como uma grande vitória das democracias ocidentais o fato de elas terem conseguido realizar os ideais do inimigo em vez dos seus próprios. Se essa realização desmascara de vez a falaciosa hierarquia marxista da “infra-estrutura” e “superestrutura”, ela derruba também a ilusão de que a liberdade de mercado tem o poder mágico de gerar as demais liberdades. O mercado não é uma alternativa entre outras: é um elemento constitutivo do processo econômico em geral. Em dose maior ou menor, ele está presente onde quer que haja produção e consumo acima da mera subsistência imediata. Nem mesmo o comunismo pode suprimi-lo por completo. Ora, um fator que está presente numa diversidade de situações não pode, por si, ser a causa geradora de nenhuma delas em particular. O mercado não produz nem a liberdade nem a tirania, ele simplesmente se adapta a uma e à outra com a resiliência de um instinto natural que jamais pode ser eliminado nem totalmente satisfeito.

De quebra, o sucesso de uma cultura anti-espiritual e até marxista nas sociedades capitalistas avançadas põe à mostra a fraqueza congênita da democracia capitalista, que é a a compulsão de gerar tanto mais ódio a si própria quanto mais generosamente cumpre sua promessa de dar a todos uma vida melhor.

Deixo o resto dessa explicação para mais tarde. No momento prefiro colocar aqui um lembrete sobre assunto um tanto diverso.

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Se o Foro de São Paulo se autodefine como coordenação estratégica da revolução continental, e se entidades como as Farc e o Mir estão submetidas a essa coordenação, nada no mundo, exceto a mendacidade cínica ou a rejeição psicótica da realidade, pode abolir o fato de que o criador e presidente do Foro é, por definição, o chefe da subversão, do narcotráfico e da indústria dos seqüestros na América Latina. Nenhuma prova de colaboração direta e material com essas atividades criminosas é necessária para demonstrar a responsabilidade penal daquele sob cuja liderança moral e política elas foram praticadas, assim como nenhuma prova de envolvimento material do ex-presidente Collor de Melo nas ações ilícitas do sr. P. C. Farias foi jamais exibida – ou mesmo cobrada – para que ele fosse considerado responsável por elas. Quanto ao proveito obtido nos dois casos, a Justiça admitiu não haver nenhum indício válido de que Collor tivesse embolsado pessoalmente um só centavo de fonte ilícita ou mesmo tirado algum lucro político da corrupção, ao passo que o próprio sr. Lula já confessou dever o sucesso da sua carreira à colaboração organizada das entidades congregadas no Foro, sem excluir dessa lista de credores as Farc e o Mir, cujos agentes no território nacional mais de uma vez foram alvos de eloqüentes gestos de gratidão petista. Nada poderia ser mais claro, mas, se a nossa mídia levou dezoito anos para admitir os fatos, talvez precise de outros dezoito para entender que eles significam alguma coisa.

O mundo de Gorbachov

Olavo de Carvalho


O Globo, 19 de junho de 2004

Em 15 de dezembro de 1987, em plena Perestroika , Mikhail Gorbachov anunciou um dos pontos fundamentais do seu plano para um novo mundo de paz e liberdade: “Não pode haver trégua na luta contra a religião. Enquanto existir religião, o comunismo não prevalecerá. Devemos intensificar a destruição de todas as religiões onde quer que elas sejam praticadas ou ensinadas.”

Gorbachov era e é um marxista puro-sangue, mas, àquela altura, já não pensava em implantar em escala planetária o comunismo ortodoxo, cuja inviabilidade saltava aos olhos. O que ele tinha em mente era a “convergência” dos regimes, um socialismo meia-bomba no qual, preservada alguma liberdade econômica indispensável à sobrevivência do sistema, todas as demais liberdades fossem esmagadas sob uma portentosa engenharia de dispositivos jurídicos, sociais e culturais, já não sob a direção ostensiva do partido único, mas de um pool de organizações esquerdistas concordes no essencial. O livre mercado seria mantido, mas como instrumento para subsidiar a destruição da “democracia burguesa”. O empresariado sonso cederia de bom grado em tudo para preservar o seu querido direito de enriquecer, sem se dar conta de que na nova regra do jogo a riqueza seria cada vez menos uma fonte de poder e sim um handicap , calculado para subjugar seu detentor às exigências do Estado. Encapsulada na vitória temporária do capitalismo, a ascensão do socialismo já não se faria por meio da revolução e sim do acúmulo progressivo e indolor de controles burocráticos, exigidos por “movimentos populares” artificiamente criados para esse fim e subdidiados, a seu turno, por uma horda de novos e antigos ricos, movidos pela esperança insensata de aplacar com generosidades obscenas de donzela oferecida a voracidade do Estado-papão. Inspirada em Gramsci e no socialismo fabiano cujo gradualismo anestésico tinha por símbolo uma tartaruga, a estratégia permanecia fiel à máxima leninista de usar o imediatismo da burguesia como instrumento para desprovê-la de seus meios de defesa.

Esse sistema já está em avançado estado de implantação em todo o mundo. A administração central do planeta, sediada em organismos internacionais como a ONU e a União Européia, que o próprio Gorbachov qualificou de “novo Comintern”, já não controla somente a atividade econômica e trabalhista das nações, nem somente a estratégia militar e geopolítica — fazendo da “soberania” uma curiosidade museológica –, mas cada detalhe da educação, da prática médica, da vida cultural e até das condutas pessoais, submetidas cada vez mais a regulamentações sufocantes que a sociedade civil, estupidificada pela tagarelice de ONGs histéricas, celebra como conquistas da liberdade e dos direitos humanos.

Nesse quadro, a luta contra a religião só se empreende pelo antigo método da repressão direta nas regiões mais distantes da atenção da mídia: Sudão, Vietnã, Coréia do Norte, boa parte da China. No mundo Ocidental, são usadas para isso a militância “politicamente correta” e a própria mídia, que, com notável sucesso, vêm expelindo a religião da vida pública, do sistema educacional e da cultura superior, sob o pretexto risível dos “direitos das minorias”, como se, eliminada com a fé predominante a idéia mesma de religião, fosse sobrar para os cultos minoritários um espaço maior na sociedade e não um lugarzinho apertado no sepulcro geral das devoções extintas.

Resistência séria ao neo-socialismo mundial só há em dois países: EUA e Israel. Daí que uma campanha mundial de desinformação busque apresentá-los com imagem invertida, como se fossem os centros de comando e não os principais alvos do ataque global às soberanias. A quantidade de recursos mobilizada para esse fim é tão gigantesca, tão vasta e complexa a constelação de artifícios usada para ludibriar a opinião pública, que atinar com o curso efetivo dos acontecimentos está acima da capacidade do cidadão médio e mesmo do “intelectual” médio. Dificilmente a presente geração chegará a perceber a realidade da situação histórica que viveu. O mundo de Gorbachov é o mundo da inconsciência planificada.

Fraude e inconsciência

Olavo de Carvalho


O Globo, 3 de novembro de 2001

O socialismo foi, ao longo de toda a história, a única doutrina que professou abertamente reduzir todas as manifestações da cultura a instrumentos da luta pelo poder. Arte, literatura, direito, ciência, religião, educação e tudo o mais que a inteligência humana pudesse criar deveriam servir, antes de tudo, para colocar no poder um certo grupo ou partido e suprimir os meios de ação de seus adversários.

Que essa proposta fosse absurda e monstruosa em si, “cela va sans dire”. Mas o fato é que essa mesma característica dava ao socialismo uma extraordinária superioridade na concorrência com as demais doutrinas.

Primeiro, porque nenhuma delas poderia jamais organizar-se, como ele, de maneira disciplinada para produzir um discurso coerente e unitário sobre todos os aspectos e fenômenos da vida. Nenhuma doutrina ou corrente de opinião pretendeu jamais abarcar um campo tão vasto, nem muito menos subjugá-lo de maneira tão rasa e imediata aos fins práticos de uma ambição política.

Segundo, porque essa peculiaridade tornava o socialismo a doutrina de mais fácil e imediata aceitação: é incomparavelmente mais fácil envolver as pessoas numa fantasia psicótica auto-reprodutora do que conduzi-las ao longo de uma penosa e lenta caminhada por entre as ambigüidades e contradições da vida. A noção mesma de “contradição”, no socialismo marxista, sofria uma simplificação redutiva que a tornava facilmente manejável para fins de propaganda política.

Terceiro, porque, nessas condições, o socialismo atuava sobre o imaginário coletivo como força unificada, enquanto quaisquer outras doutrinas se esfarelavam e se despersonalizavam numa poeira confusa de diferenças dificilmente abarcáveis pelo olhar do cidadão comum. (E quando o socialismo pós-URSS abandonou até suas pretensões de formulação doutrinal explícita, reduzindo-se a um mero sistema de estimulações emocionais, a coisa tornou-se ainda mais fácil.)

Quarto, porque o socialismo podia prevalecer-se do relativo desconhecimento das demais doutrinas para impor, mediante autoprojeção inversa, a crença de que todas elas eram também meros instrumentos de luta política, só que com finalidades opostas às suas. Sendo as metas autoproclamadas do movimento socialista a justiça, a paz e o bem, todas as demais doutrinas tornavam-se instrumentos da injustiça, da guerra e do mal. Por meio dessa gigantesca fraude os porta-vozes do socialismo puderam assim desmoralizar como instrumentos militantes da “ideologia burguesa” até mesmo as doutrinas científicas mais rigorosas, mais objetivas e mais alheias a qualquer ambição política. Quando a evidente boa-fé e o rigor intelectual de um autor viesse a tornar inverossímil a acusação de que suas obras fossem uma apologia da exploração do homem pelo homem, restava sempre a possibilidade apelar ao subterfúgio de que nesse caso em particular as intenções maquiavélicas eram inconscientes ou estavam encobertas por um véu de “falsa consciência”.

Assim, face ao assalto maciço das hordas socialistas, os adversários, dispersos e desorganizados por definição, não podiam senão recorrer a inúteis apelos à razão e ao bom senso, cujo exercício pelo público se tornava impossível graças ao tom de passionalismo denuncista e belicoso que o próprio lance inicial dado pelos socialistas imprimia a toda e qualquer disputa intelectual.

A única tentativa de opor ao bloco socialista uma resistência unitária e maciça não veio de seus inimigos, os capitalistas liberais, mas de um concorrente emergido das próprias fileiras socialistas: o nazifascismo. Este tinha tanta “personalidade”, tanta visibilidade e tanta brutalidade quanto o socialismo, e era tão pretensioso quanto ele em sua ambição de tudo abarcar  — da gramática à medicina — e tudo tornar instrumento da luta. Mas, como reação improvisada que foi, ficou muito abaixo do socialismo, seja em volume de produções, seja em nível de elaboração intelectual. Macaqueação canhestra, terminou oferecendo ao adversário a ajuda mais inesperada e mais decisiva: tornou possível a dupla fraude hermenêutica que se tornou a mais poderosa arma do arsenal retórico socialista. Primeiro, tratou-se de converter o fascismo — mistura de socialismo e nacionalismo xenófobo — em “doutrina capitalista burguesa” (analisei esse truque no artigo “Coelhos fantasmas” de 8 set. 2001). Feito isto, tornava-se fácil tomar qualquer doutrina já previamente diagnosticada como “ideologia burguesa” (pelos meios acima descritos) e, num passe de mágica, colar-lhe por acréscimo o rótulo de fascista. Descobrir fascismo por trás das idéias mais díspares e heterogêneas tornou-se, desde então, o meio básico de análise no enfoque socialista do que quer que seja — praticamente o único instrumento intelectual em uso na totalidade da literatura esquerdista, na produção acadêmica esquerdista, no jornalismo esquerdista. E, da maneira mais clara possível, esse meio e instrumento consiste em uma só coisa: fraude.

Transformar em fraude a totalidade dos produtos da inteligência humana e fazê-lo por meio de um esquema interpretativo simples, automático, repetível como um cacoete, autoproliferante como um vírus de computador, tal foi a grande, a rigor a única realização intelectual do socialismo.

A potência embrutecedora desse mecanismo é incalculável. Ela pode levar o ser humano a abismos de inconsciência jamais imaginados. Querem um exemplo? Quando, na década de 60, os países comunistas investiram mais em “cultura” anti-americana dentro dos EUA do que em material bélico no Vietnã, eles sabiam o que estavam fazendo. A guerra do Vietnã foi, na história, a primeira em que um dos lados deu plena liberdade, em seu próprio território, à propaganda do inimigo. A mídia tornou-se duplamente útil aos comunistas: servia a seus objetivos político-militares ao mesmo tempo que continuava a ser desmoralizada como instrumento de propagação imperialista do “american way of life”. É absolutamente impossível que uma mente normal não perceba a incongruência, mas as massas de hoje já não se constituem de pessoas normais, mas de idiotas que chamam de “mídia imperialista” os mesmos jornais em que lêem diariamente doses maciças de tagarelice anti-americana. E os jornalistas de esquerda que aí vetam ou camuflam à vontade qualquer notícia de atrocidades comunistas — os mesmos que fazem com que umas quantas mortes acidentais em bombardeios pareçam crime tão hediondo quanto o homicídio premeditado de seis mil civis –, ainda podem gritar (e alguns até acreditar) que não têm liberdade de imprensa, que são indefesos socialistas oprimidos pelo sistema, forçados por cruéis patrões a trabalhar para a propaganda capitalista…

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