Olavo de Carvalho


Zero Hora (Porto Alegre), 4 de novembro de 2001

O silêncio geral da mídia brasileira em torno do processo que exilados cubanos movem contra Fidel e Raul Castro, na Bélgica, por crimes contra a humanidade, contrasta de tal modo com o carnaval montado em apoio às investidas judiciais anti-Pinochet do dr. Baltazar Garzón, que qualquer sugestão de atribuí-lo à mera coincidência deve ser afastada, “in limine”, como tentativa de acrescentar à imoralidade da omissão a perversidade da camuflagem.

O esquecimento a que os órgãos de imprensa do eixo Rio-São Paulo condenaram essa notícia importantíssima não é um fato isolado: o exame meticuloso dos jornais dos últimos vinte anos mostrará que eles suprimiram sistematicamente qualquer menção aos crimes praticados pelo governo cubano nesse período, ao mesmo tempo que, numa ostensiva inversão de todos os critérios jornalísticos admissíveis, davam destaque cada vez maior à exumação de episódios de violência anticomunista, incomparavelmente menores em número e em gravidade, ocorridos trinta ou quarenta anos atrás no Brasil ou no Chile.

Nesse mesmo sentido deve ser compreendida a ocultação obstinada e sistemática do julgamento do clã Pol-Pot, certamente o acontecimento judiciário mais relevante desde o julgamento de Nuremberg.

A orientação geral do noticiário brasileiro, nesses pontos, é moldada segundo os padrões clássicos da propaganda e da desinformação comunista, e a generalização desse fenômeno rebaixa a nossa classe jornalística a uma horda de militantes sectários, indignos da confiança que o público deposita em profissionais “soi disant” empenhados em informá-lo.

Pouco importa o que dirão de mim, ao ler isso, os círculos bem-pensantes da classe a que afinal pertenço, e em cuja defesa já me mobilizei, em outras épocas, com riscos iguais aos que pesavam sobre meus companheiros. Pois uma coisa é unir a classe para resistir a um regime autoritário. Exageros retóricos e pequenas distorções, aí, correm por conta das angústias do momento. Outra coisa completamente diversa é, num regime democrático, com plena liberdade de imprensa, essa classe arrogar-se o poder de censura para ocultar os crimes de seus ídolos enquanto alardeia histericamente os de seus desafetos, com base no dogma monstruoso e imoral, proclamado na TV por um idiota politicamente correto, de que “a melhor direita é pior do que a pior esquerda”.

Solidariedade na luta contra a ditadura é uma coisa. Cumplicidade na destruição da democracia é outra. Usar a primeira como pretexto para a segunda é ainda uma terceira.

É evidente que nem todos os jornalistas são agentes, conscientes ou inconscientes, dessa desinformação. Mas os poucos que não o são estão perdidos e isolados na massa de seus colegas hostis, ou então calados e paralisados pelo medo dos insultos e da discriminação ostensiva ou camuflada.

Sobre Fidel e Raúl pesam culpas incomparavelmente maiores que as do general Pinochet. Se este foi um governante autoritário que fez vista grossa a excessos na repressão a opositores armados, aqueles são genocidas comprovados, responsáveis pelas mortes de 17 mil cidadãos desarmados, em seu próprio país, e de mais algumas dezenas de milhares de angolanos,  liquidados pelas forças de ocupação cubanas comandadas pelo sociopata sanguinário Ernesto Che Guevara.

A cumplicidade da imprensa nacional na ocultação dos crimes dos Castros já durou tempo demais e já deixou claro que parcelas imensas da classe jornalística entendem por “ética” a prática costumeira e cínica da desinformação a serviço de ditaduras comunistas.

***

A vasta repercussão midiática da denúncia de que o governador Olívio Dutra seria beneficiário de um acordo com bicheiros pareceria indicar uma mudança de atitude da parte da classe jornalística, uma atenuação do seu sectarismo ou ao menos um súbito acesso de escrupulosidade.

Mas a acusação de envolvimento com miúdos contraventores, lançada sobre um governante que tem conversações secretas com os narcoguerrilheiros das FARC, é quase uma amabilidade. É, no fim das contas, desviar as atenções do público para um delito menor, amortecendo o impacto de suspeitas infinitamente mais graves e dissuadindo de investigá-las.

É compreensível que, de puro medo de reconhecer a verdadeira escala de periculosidade dos fatos que ocorrem no Brasil de hoje, liberais e conservadores prefiram tratar seus adversários no plano da pura disputa eleitoral corriqueira, acusando-os, no máximo, de má administração ou de desvio de verbas, como é usual e banal nos confrontos democráticos. Evitam assim tomar consciência de que esse adversário não tem apenas, como eles, um moldesto buquê de táticas eleitorais pragmáticas, mas toda uma estratégia longamente pensada  um plano enormemente mais amplo e de longo alcance, voltado à transformação revolucionária da sociedade e intimamente associado ao esquema de revolução continental já em andamento na Venezuela e na Colômbia sob a inspiração de Fidel Castro.

Para não ver o perigo, refugiam-se no “wishful thinking” de que acusações de corrupção, letais quando dirigidas contra eles próprios, possam fazer idêntico mal a revolucionários cujo esteio é o eleitor ideologicamente comprometido, imbuído da ética da justificação dos meios pelos fins, cego para todos os crimes de seus líderes e sempre disposto a desculpá-los em função de um bem mais alto: a causa da revolução.

Liberais e conservadores desejariam  ah! como desejariam!  estar numa democracia estável, onde os partidos não visassem senão a ocupar o governo em turnos, concorrendo lealmente para esse fim e abandonando cavalheirescamente as posições conquistadas quando derrotados nas eleições.

Mas o fato é que não estamos nessa democracia. Estamos numa democracia em decomposição, condenada à morte por uma revolução continental muito mais articulada e violenta que a da década de 60 e pela omissão suicida dos que teriam o dever de fazer face à ameaça.

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