Por José Maria e Silva


21 de Abril de 2002

  Não há limites para a decadência do pensamento brasileiro. A pretexto de ser crítico, ele tornou-se lunático e já não mostra qualquer liame com a realidade que o cerca. O paradigma dessa decadência é, sem dúvida, a filósofa Marilena Chauí. Professora da USP e autora de textos canônicos nas universidades, Chauí consagrou-se como uma espécie de Che Guevara da filosofia. Valendo-se da fluente oratória, não dava aulas nem proferia palestras — fazia passeatas verbais em que o pensamento universal, sublevado por Marx e Sartre, reduzia-se a palavras de ordem contra a burguesia. Financiadas com dinheiro público, essas palestras viraram livros, que se tornaram leitura obrigatória nas escolas, além de elogiados na imprensa como última palavra do pensamento nacional.

Todavia, Marilena Chauí é uma metamorfose. Depois de madura, resolveu fazer o que parece não ter feito na juventude — aplicou-se ao estudo sério da filosofia e recolheu-se às bibliotecas, lendo antes de escrever, pensando antes de falar. E, ao afastar-se das redações e das passeatas, — prometendo aquele que seria o livro de sua vida, — deu a impressão de que iria retribuir, finalmente, os altíssimos investimentos que o país tinha feito nela, financiando-lhe os estudos, patrocinando-lhe as viagens, subsidiando-lhe os livros. Mas para desencanto daqueles que esperavam alguma contribuição cívica da filósofa uspiana, eis que ela trouxe de seu retiro espiritual um tratado sobre Espinosa — o presunçoso A Nervura do Real, com suas mais de 1.200 páginas.

A exceção dos revisores da Companhia das Letras, ninguém parece ter lido esse livro. Enfrentei-lhe as 300 primeiras páginas (contando as infindáveis notas no volume anexo) e, até onde o li, pareceu-me trabalho de amanuense, não de filósofo. Nada vi de original. Mas, antes que me acusem de amofinar o livro sem tê-lo lido inteiro, lembro que a maioria dos que elogiaram febrilmente A Nervura do Real sequer leu-lhe as orelhas. Resultado: a “obra da vida” de Chauí tornou-se a obra-prima da filosofia nacional — não pelos méritos, mas pelo mito. Confesso não descartar a hipótese de que o livro seja bom (julgamento que os especialistas da área estão a dever ao país), mas desconfio que é quase inútil. Qualquer europeu escreveria um tratado semelhante sobre Espinosa em muito menos tempo e com muito menos custo.

A própria Marilena Chauí parece saber disso, porque, quando publicou A Nervura do Real, tratou de pôr um pouquinho de gelo na fervura da imprensa. Enquanto as resenhas diziam que finalmente a filosofia brasileira ganhara sua obra-prima, Chauí — provavelmente com receio de Olavo de Carvalho e já adivinhando Gonçalo Palácios — ressalvou que não era propriamente “filosofia” o que tinha feito, mas “história da filosofia”. Isso revela ainda mais a impropriedade do livro. Por que recontar parte da surrada história da filosofia européia se toda a história da filosofia brasileira ainda está praticamente por ser contada? Claro que a reflexão filosófica não tem fronteiras geográficas, mas o financiamento público de pesquisas científicas tem. O país não investiu em Marilena Chauí como sua maior filósofa para que ela se tornasse simples maquiladora do pensamento europeu.

Todavia, Marilena Chauí não se limitou a passar de panfletária a amanuense. Ela sofreu novas metamorfoses. Recentemente, apareceu na grande imprensa revelando que sua nova preocupação já não é a ética, mas a etiqueta — acabara de dar ao mundo um tratado de culinária. A “Che Guevara” das passeatas estudantis dava lugar à “Danusa Leão” das revistas femininas. Isso num momento que se dizia reclusa, por estar cuidando da segunda parte de seu monumento a Espinosa. Agora, a ex-Che Guevara e ex-Danusa Leão assumiu de vez sua verdadeira face — a de “cara-pintada” da cultura brasileira. Numa entrevista ao Megazine (suplemento juvenil do jornal O Globo), Marilena Chauí anunciou a “filosofia pop” — vai trocar o pensamento grego clássico pelo rap das gangues urbanas. No lugar de Sócrates, Sabotage; no lugar de Descartes, Racionais MC.

Foi a própria Marilena Chauí quem explicou a filosofia que pretende emplacar neste verão: “No primeiro Convite à Filosofia eu usei a literatura brasileira para fazer esses paralelos. Professores amigos meus sugeriram que eu usasse algo mais próximo do cotidiano dos estudantes na nova edição do livro. Por conta disso estou ouvindo toda a produção atual de rap. Quero usar as letras das músicas para tratar de ética e política”. (Sintomaticamente, o ditador Fidel Castro também aparece elogiando o rap na revista Reportagem de março). Na entrevista, de Marilena não falta nem a dica sobre o filósofo da hora: “Atualmente, o mais festejado nos meios universitários é Nietzsche, que está ocupando o lugar que foi de Sartre nas últimas décadas. Ele conquista os jovens com sua linguagem corrosiva”. Será que nesta nova edição de Convite à Filosofia o taciturno Nietzsche aparece “descolado”, vestindo a nova griffe Chauí?

Aliás, Marilena Chauí comprova, nesta entrevista, que não passa de uma falsária intelectual. Recentemente, numa entrevista à Folha de S. Paulo, fingiu-se espantada ao saber que seu livro Introdução à Filosofia era adotado nas universidades. Disse que o escrevera para o ensino médio, como se a educação dos mais jovens — exatamente por serem mais jovens — não fosse a que merece os maiores cuidados do educador. Para não saber que sua obra é obrigatória nas faculdades, só se Marilena Chauí fosse autista. Todavia, ela é até ligada demais ao mundo — sua filosofia é comercial, feita de olho na lista dos mais vendidos. Creio, inclusive, que só falou que seu livro se destinava ao ensino médio, porque deve ter lido às críticas devastadoras do filósofo Gonçalo Palácios no Jornal Opção.

Uma intelectual como Marilena Chauí me faz rever antigos conceitos e respeitar o escritor Paulo Coelho. Ainda não li o Mago, mas já não hesitaria em lê-lo — deve fazer menos mal que Marilena Chauí, essa espécie de “Jorge Amado” da filosofia. Da mesma forma que o autor de Gabriela, Cravo e Canela, começou produzindo o digno regionalismo de 30 mas acabou rendendo-se às facilidades do carnaval, do futebol e das mulatas, Marilena Chauí está decaindo de Sartre a Che, de Che a Danusa, de Danusa a cara-pintada. Marilena já não pensa — veste a filosofia da moda. O problema é se ela vestir um filósofo novo a cada verão. Gabriel, o Pensador vai ficar desempregado. E nos auditórios de Gugus e Faustões, o hit será o “Rap da Caverna” de Platão — na versão de “Marilena, a Pensadora”.

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