Leituras

Retórica perigosa

José Nivaldo Cordeiro


11 de novembro de 2001

Dei-me ao trabalho de ler a íntegra do discurso de FHC proferido por ocasião da abertura da Assembléia Geral da Nações Unidas ontem, em Nova York. Foi um discurso retórico e perigoso para os interesses permanentes do Brasil. Além disso, o discurso foi marcado por contradições óbvias, que pretendo sublinhar aqui.

Como não poderia deixar de ser, a fala do presidente começa condenando os atentados de 11 de setembro, que vitimaram a cidade anfitriã. Lá pelas tantas, afirma:

“Há coisas que são óbvias, mas que merecem ser repetidas: a luta contra o terrorismo não é, nem pode ser, um embate entre civilizações, menos ainda entre religiões”.

Se essa declaração fosse apenas a postura hipócrita habitual nas relações entre Estados, tudo bem. Mas penso que o presidente acredita mesmo nisso. Não enxergar corretamente a realidade para uma pessoa comum já é um grande perigo; para um chefe de Estado, é um extremo perigo, pois o processo de tomada de decisões que afetam o conjunto do país passa a ser feito a partir de pressupostos equivocados. Seria verdadeiro dizer que o Ocidente não moveu a guerra contra a civilização islâmica, mas é também correto dizer que os atentados de 11 de setembro coroaram uma longa cadeia de agressões do mundo islâmico contra os ocidentais. Trata-se, sim, de uma guerra de civilizações, como já pude exaustivamente comentar em artigos anteriores.

O perigo da fala do presidente Fernando Henrique Cardoso aumentou na seqüência dessa afirmação, ao associar o terrorismo ao consumo e ao tráfico de drogas. Fiquei chocado, pois toda a gente sabe que os Estados Unidos da América são os maiores consumidores mundiais de entorpecentes. Afirmar que o consumo de drogas é responsável pelo terrorismo é dizer simplesmente que os norte-americanos são os responsáveis pelos atentados. Não satisfeito, o presidente arremata em sua fala:

“Quero sugerir, desta tribuna, a realização de uma campanha mundial de opinião pública que conscientize os usuários de drogas em todos os países para o fato de que estão, ainda que involuntariamente, contribuindo para financiar o terrorismo. Se pretendemos estrangular o fluxo de recursos de que as redes ou facções terroristas se valem para espalhar a destruição e a morte, é imprescindível reduzir drasticamente o consumo de drogas em nossas sociedades”.

Essa afirmação é de um cinismo abissal. O presidente fez coro com os intelectuais da esquerda mundial, atribuindo às vítimas a responsabilidade pelos golpes que sofreram, o que é, no mínimo, uma falsificação e uma imoralidade. A fala do presidente parece lógica, pois coloca na mesma vala dois movimentos terroristas que não podem ser confundidos, um artifício sofístico banal. Terrorismo de forma nenhuma representa uma unidade política. Uma coisa é o caso de países como a Colômbia, país notoriamente produtor de drogas na área sob o conflito guerrilheiro. Outra coisa é o terrorismo islâmico, que de forma alguma depende desse tipo de atividade para se manter. Uma coisa é o terrorismo dentro de uma escala nacional, que em última análise resume um conflito entre facções políticas. Outra coisa é o choque de civilizações, é o terrorismo internacionalizado, que alveja qualquer um em qualquer lugar do planeta, que atravessa oceanos e continentes em busca de seus objetivos insanos.

Essa confusão, se proposital, é mais que cínica, é imoral. Se não, é um descolamento colossal da realidade, que reduz o presidente à condição de um alienado, incapaz de perceber a realidade imediata.

E sabemos que lamentavelmente o Brasil é corredor de trânsito para a circulação de drogas em escala internacional. Um país com esse histórico não está em situação privilegiada para dar lição de moral aos países consumidores.

Na seqüência, o presidente clama contra os paraísos fiscais e contra a forma assumida pela chamada globalização. Em resumo, ele quer que a ONU encontre um meio de taxar os fluxos internacionais de capitais e de direcionar o seu destino. “Há um mal-estar indisfarçável no processo de globalização”, afirma, concluindo que há “um déficit de governança no plano internacional, e isso derivado de um déficit de democracia (sic). A globalização só será sustentável se incorporar a dimensão da justiça. Nosso lema há de ser o da ‘globalização solidária’, em contraposição à atual globalização assimétrica”. Pura retórica vazia de esquerdismo acadêmico. Que significa “globalização solidária”? Nada. É um conceito vazio, desprovido de conteúdo. Dá pena ver o presidente gastar o seu tempo e o de outros chefes de Estado com retórica inútil. Mas, como se diz na gíria, ele saiu bonito na fotografia, para ser vista por seus pares sociais-democratas e socialistas ao redor do mundo.

Depois desfila as proposições mais politicamente corretas, como a defesa dos protocolos de Kyoto, a criação do Tribunal Penal Internacional e a ampliação da ação FMI e do Banco Mundial. Não esquece também de tomar as dores dos palestinos – cuja causa é justa! – mas que virou bandeira da moda no submundo da esquerda. E também não se esquece de pedir a revisão do Acordo de Bretton Woods, a ampliação do Conselho de Segurança da ONU e a ampliação do G-7. Depois disso, afirma contraditoriamente:

“Não aspiramos a um governo mundial, mas não podemos contornar a obrigação de assegurar que as relações internacionais tenham rumo e reflitam a vontade de uma maioria responsável”.

Se o proposto pelo presidente não forma um governo mundial, o que será? Uma justiça internacional, um controle internacional dos fluxos de capitais, uma taxação internacional, um Tribunal Penal Internacional, a isso só podemos chamar de governo mundial, não há outro nome. Como o presidente não precisa de ninguém para escrever seus próprios discursos, desconfio que é ele mesmo o autor dessas mal traçadas e contraditórias conclusões. Dá pena!

E, para finalizar, não bastasse o cinismo de responsabilizar as vítimas por seus próprios infortúnios, ainda afirma em tom de ameaça:

“A sombra nefasta do terrorismo demonstra o que se pode esperar se não formos capazes de fortalecer o entendimento entre os povos”.

É mais do que claro que os norte-americanos não precisam do resto do mundo para se defender, só não vê quem não quer.

O presidente Fernando Henrique Cardoso pode ter sido coerente com a sua trajetória e a sua origem política, mas decididamente não representou bem o Brasil e nem defendeu os interesses maiores dos brasileiros. Fora de um entendimento adulto e responsável com os Estados Unidos da América, o Brasil ficará sempre relegado a uma posição de coadjuvante nas negociações internacionais. A retórica de bravata, para agradar Deus sabe lá a quem – será que dá votos? Duvido – só serve para afastar o país ainda mais do centro de poder mundial.

O discurso é um equívoco do princípio ao fim.

Carta aberta a Luiz Nassif

José Nivaldo Cordeiro


10 de novembro de 2001

Acompanhei, como sempre faço, a sua coluna na Folha de São Paulo ao longo desta semana. Admiro-lhe a coragem e a versatilidade com que tem abordado temas alheios à economia. E sobre o caso Galdino, desde o primeiro instante senti que você iria se chocar com as patrulhas do policamente correto, dos ignorantes que não conseguem distinguir barbárie de civilização, que permite a ampla defesa do acusado, supõe a inocência do réu até que a sentença seja exarada e determina que as provas sejam devidamente debatidas e analisadas pela defesa e pela acusação. Cabe ao juiz cumprir a Lei, procurando manter distância das paixões de momento das massas ensandecidas. É um dos requintes da nossa herança greco-romana-judaico-cristã.

Mas vivemos no Brasil tempos difícieis, em que qualquer militante integrante de algum grupelho esquerdista se arvora, ao mesmo tempo, em juiz, juri, advogado de acusação, polícia e carrasco. Especialmente aqueles que estão na imprensa, cuja função de carrasco é exercida antes mesmo de se inicar o processo de acusação. Exemplo disso é o que a própria Folha de São Paulo estampa na sua edição de hoje sobre o caso Eduardo Jorge, que depois de sórdido linchamento moral teve formalmente reconhecido pela Justiça que não há provas que o incriminem. Acusados que são metafórica e, às vezes, literalmente linchados em praça pública pela turba e pela imprensa irresponsável, são declarados inocentes, à luz das provas reunidas. Como reparar o horror de tamanha injustiça? Nada há que pague isso.

Quero cumprimentá-lo pela coragem e pela integridade moral. Essas qualidades estão cada vez mais raras em nossos tempos. Seu trabalho jornalístico tem engrandecido os seus leitores.

Cordialmente

José Nivaldo Cordeiro

 

A voz do trovão

 

José Nivaldo Cordeiro

A revista Época dividiu por quatro o espaço ocupado pelo filósofo Olavo de Carvalho em suas páginas, vez que a sua coluna semanal passou agora a ser mensal. À primeira vista pode parecer um mero ato administrativo interno daquele periódico, mas não é assim. Olavo de Carvalho é uma das maiores referências nacionais do pensamento liberal e conservador e mexer com ele é um ato político contra essas correntes de pensamento. Não se cala impunemente uma voz de trovão. Houve troca de direção na revista, isso é certo, mas com ela chegou a ordem de minimizar o clarão dos relâmpagos e o fogo dos raios saídos da pena de nosso maior polemista vivo, que está incomodando muita gente.

É preciso que se diga que Olavo de Carvalho tem sido uma das poucas vozes dissonantes em nosso meio intelectual, dos poucos que não apenas se recusa a fazer coro com a ação gramsciana, mas a denuncia firme e claramente, sem medo de peitar os áulicos da academia, do governo, da política. Tem sido um analista ferino das coisas nacionais e dá o devido nome aos bois: o destemido filósofo é hoje a referência nacional contra a maré vermelha e tem aberto os olhos de muita gente para as mentiras e falsificações que o meio letrado – da academia aos órgãos de imprensa – têm militantemente realizado em nosso país.

Calar Olavo é impedir que uma multidão de homens e mulheres ouça o murmúrio da fonte mais cristalina do saber.

Mas não é possível calá-lo. A revista Época não é o único canal a fazer chegar seus dardos flamejantes sobre a cabeça dos filisteus. Ele tem acesso a outros meios de expressão para seus escritos, mas não resta dúvida que retirá-lo da revista, ainda que parcialmente – de uma tribuna tão notável! – não deixa de ser um ato de censura e uma tomada de posição política contra os leitores que o têm em mais alta conta.

Na verdade, todo o público leitor de tendência liberal e conservadora, que enxergava na revista Época a sua publicação preferida, ficou órfão, em prejuízo da própria revista, que perderá leitores, a começar por mim. Só comprarei os exemplares que contiverem os seus artigos, o que estou recomendando a todos os amigos e conhecidos, admiradores de Olavo de Carvalho, que não são poucos.

6 de Novembro de 2001

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