Leituras

Gilberto Freyre: Ciência social e consciência pessoal

20 de março de 2000

Olavo de Carvalho
Diretor do Seminário de Filosofia
do Centro Universitário da Cidade, Rio de Janeiro

Comunicação apresentada ao
Seminário Internacional “Novo Mundo nos Trópicos”
Centenário do Nascimento de Gilberto Freyre
Fundação Gilberto Freyre, Recife, 24 de março de 2000

Uma das dificuldades que se apresentam na constituição de qualquer ciência é o problema de onde encontrar o seu objeto. Nas ciências naturais, esse objeto está dado em torno e pode ser apreendido pelos sentidos. Mas mesmo essa aparente facilidade é enganosa, primeiro porque os limites entre as espécies de seres da natureza são freqüentemente ambíguos e nebulosos, segundo porque os objetos naturais não vêm com rótulos informando quais as perguntas que devemos fazer a respeito deles; e, quando começamos a fazer estas perguntas, não raro os objetos a que nos referíamos nos respondem que elas não se aplicam propriamente a eles, mas sim a algum outro tipo de objetos adjacentes ou circunvizinhos, ou mesmo a entes que não existem na natureza e que foram apenas inventados por nós mesmos.

Para eludir essa dificuldade, costumamos apegar-nos à unidade das palavras que designam áreas inteiras da realidade dada. Usamos, por exemplo, a palavra “física”, supondo que existe no universo um campo, ou uma faixa, correspondente a objetos que chamamos “físicos”. Mas com um pouco de estudo descobrimos que essa palavra significava uma coisa para Aristóteles, outra para Newton, outra para Planck. Aí não temos alternativa senão perguntar se essas três significações dadas à palavra designam três aspectos percebidos sucessivamente no mesmo objeto ou três objetos completamente diferentes. No primeiro caso, contraímos a obrigação de descobrir qual a unidade ou substância da qual esses três aspectos são as propriedades ou acidentes. E, quando tivermos a felicidade de descobri-lo, teremos inaugurado uma quarta acepção da palavra física, incumbida de designar o estudo científico do objeto unitário cujos aspectos separados foram estudados sucessivamente por Aristóteles, Newton e Planck. Na segunda hipótese, isto é, se descobrimos que o termo escolhido designou historicamente três objetos diversos e independentes, o problema que isto nos coloca é mais espinhoso ainda: trata-se agora de saber se as distinções entre as três ciências que receberam ao longo do tempo o mesmo nome de “física” correspondem a distinções objetivas, isto é, às fronteiras que separam os entes entre si, ou se refletem apenas três distintas direções possíveis da atenção humana, projetada acidentalmente sobre entes, propriedades e acidentes escolhidos a esmo.

Que existem fronteiras entre os entes, que eles não se apresentam fundidos e indistintos numa mixórdia universal, a mais banal experiência o confirma. A obviedade desta constatação pode dar lugar a situações cômicas. Quando o falecido presidente Jânio Quadros, indagado por que bebia, respondeu que bebia porque se tratava de líquido, já que se fosse sólido o comeria, talvez não tivesse a idéia de enunciar um princípio de metodologia científica, mas de fato o fez. O “comer” pode ser uma metáfora do “conhecer”. Se não podemos comer o líquido ou beber o sólido, não podemos conhecer todas as coisas pelos mesmos modos, ou instrumentos. Não podemos conhecer a estrutura de um mineral pela memória afetiva, nem a vida de Napoleão Bonaparte por dedução geométrica. Em última instância, o delineamento do campo de uma ciência aparece quando ela esbarra em fronteiras ontológicas intransponíveis. Edmund Husserl dizia que não pode haver uma geometria dos leões ou uma embriologia dos triângulos — o que faz dele, no mínimo, um precursor do presidente Jânio Quadros.

Mas, na prática científica, raramente chegamos a essas situações limite: uma boa parte das investigações e debates se desenrola numa zona fronteiriça sujeita às mais alucinantes disputas de jurisdição. O problema torna-se ainda mais desesperador porque, uma vez constituído um sistema de distinções entre os campos do saber, por mais provisório que seja, esse sistema se materializa imediatamente numa estrutura administrativa: a divisão dos departamentos numa universidade ou instituto de pesquisa. Aí o conflito de jurisdições entre conceitos lógicos se converte num conflito entre poderes, prestígios e interesses humanos, do qual, para usar o termo mais comedido, direi que é uma confusão dos diabos.

Ora, se essa confusão dos diabos pode instalar-se no seio mesmo da ciência natural, ao ponto de Michel Foucault e Thomas Kuhn não lograrem explicar as mudanças de orientação da imagem física do cosmos de época em época senão como rotações acidentais e em última análise irracionais do eixo das atenções, quanto mais desorientador não deve ser o panorama no campo das ciências ditas humanas, onde o objeto não está dado à percepção sensível mas tem de ser apreendido no curso da nossa participação pessoal na produção e modificação dessa coisa — se é que é coisa — denominada sociedade humana? Nesse campo de conhecimento, jamais chegamos a saber ao certo se o nosso objeto existe ou se ele passou a existir porque dissemos que existe. Um exemplo característico é o conceito de ideologia de classe. As classes economicamente distintas “têm” seus respectivos discursos ideológicos ou passam a tê-los desde o instante em que um intelectual, fundado no conceito de ideologia de classe, ensina a cada uma o que ela deveria dizer em defesa de seus próprios interesse de classe? Outro exemplo é o “inconsciente” freudiano. Cada um de nós “tem” um inconsciente pessoal ou adquire um na hora em que o psicanalista o ensina a assumir como parte de si um amálgama de pensamentos semipensados – pequenas percepções, chamava-as Leibniz – que andam soltas no ambiente familiar, social e físico?

Dos nossos cientistas sociais, nenhum se preocupou mais com essas questões do que Gilberto Freyre. Ora, a elucidação delas é o fundamento mesmo da possibilidade de uma ciência social. Sondar até o fundo essa indistinção de fronteiras, submergir corajosamente nesse “mare magnum” onde todas as correntes se entremesclam, impregnar-se da variedade e da confusão sem perder o ideal de unidade e coerência, eis a única esperança de que as ciências sociais venham a ter um objeto que não seja apenas a projeção de um método previamente escolhido — um preconceito, no sentido mais rigoroso do termo.

Dos nossos cientistas sociais, repito, nenhum levou mais a fundo essa impregnação na natureza plástica e omnímoda do seu objeto, nem mais longe sua disposição de abrir-se a todas as correntes, a todas as hipóteses, a todas as perguntas.

Só com isso ele já se isenta do vício redibitório de pelo menos noventa por cento da produção científica na área de humanas, que é o pendor kantiano de constituir o objeto segundo as exigências do método, em vez de adaptar o método às exigências do objeto. Esse vício torna-se ainda mais grave nos países jovens, cuja elite intelectual, ansiosa de ombrear-se a seus mestres estrangeiros, empenha tanto esforço em dominar os métodos que acaba não lhe sobrando tempo de prestar atenção no objeto. Como por sua vez a opinião dos cientistas tende a ser imitada nos debates públicos, o Brasil que se discute na mídia e no Parlamento acaba se parecendo muito mais com uma alucinação de cientistas sociais do que com o país onde vivemos nossa vida de todos os dias. Um exemplo são as discussões atuais sobre discriminação racial. Lemos na Teoria da Justiça de John Rawls que todos os conceitos constitutivos da idéia de democracia se resumem, em última instância, no conceito de igualdade. Ficamos maravilhados porque isto nos dá um método até mesmo quantitativo para medir o coeficiente de democracia de um país, e a disparidade de renda entre brancos e negros surge como uma prova inequívoca de que no Brasil não existe democracia racial nenhuma. Se, além disso, lemos no prof. Florestan Fernandes que as relações entre raças correspondem à estrutura da dominação de classes (que na verdade é uma doutrina enunciada muito antes por Stálin), aí pouco falta para nos persuadirmos de que a sociedade brasileira é nazista. Então ouvimos o presidente Clinton declarar, no seu discurso em Kosovo, que o Exército americano é um exemplo de integração racial, ficamos profundamente envergonhados de não ser tão democráticos como os americanos e, ato contínuo, sentimos a urgência de copiar o modelo americano de integração racial, onde o Estado surge como o mediador entre grupos raciais separados e socialmente incomunicáveis. Olho para tudo isso e não posso deixar de sentir que estou em outro planeta. Mas o que aconteceria se, em vez de projetarmos sobre o objeto os métodos de Rawls e de Stálin tivéssemos nos perguntados como esse objeto se constituiu e como ele chegou ao nosso conhecimento? Aí veríamos que, entre a abolição da escravatura e os nossos primeiros passos para ingressar no moderno capitalismo industrial, na década de 30, decorreram nada menos de quarenta anos. Ou seja: os escravos libertos tiveram quarenta anos para multiplicar-se sem que a evolução da economia multiplicasse concomitantemente os empregos. Eles não foram expelidos dos empregos por serem pretos. Simplesmente não havia empregos. Que é que isso tem que ver com a discriminação racial? Para não dizer que não tem nada, lanço a seguinte hipótese: nós, racistas brancos, decidimos de propósito não industrializar o Brasil para não dar emprego aos malditos pretos. Fora essa hipótese, é melhor vocês lerem o estudo do prof. Alberto Oliva, Florestan Fernandes: Ciência e Ideologia, e comprovarem que Eric Voegelin tinha toda a razão ao declarar que a perversão ideológica das ciências sociais nem sempre vem de uma falsificação intencional da realidade (coisa de que o prof. Florestan não seria capaz), mas do simples vício kantiano de aderir a um método antes de esperar que o objeto diga a quê veio.

Em comparação com isso, o que faz Gilberto Freyre? Ele se pergunta, antes de tudo, como o objeto veio ao seu conhecimento pessoal. A evocação da infância não é a expressão de um simples pendor autobiográfico, literário. Ela expressa a consciência de que o objeto das ciências sociais não é dado aos sentidos, mas à pessoa concreta, ao eu autoconsciente que ele próprio se autoconstitui à medida que responde a um chamado, obedece ordens, formula pedidos, ocupa um lugar, desempenha funções, etc. O modo de apresentação do objeto das ciências sociais é esse e somente esse. Ele não existe em parte alguma do cosmos se não existe na biografia dos seres humanos. Ora, do objeto das ciências físicas os primeiros sábios não hesitaram em concluir, desde muito cedo, que seu modo de se apresentar revelava algo de sua constituição. Se eles se manifestavam afetando os nossos sentidos, eles podiam ser conhecidos pela ação que exerciam sobre o nosso corpo, distinguindo o que era sua ação própria do que era nossa reação corporal. Quando falamos de “propriedades da luz”, compreendemos que em parte o que sabemos da luz vem de uma reação corporal à estimulação luminosa, mas em parte vem de algo que, não podendo ser explicado por essa simples reação, constitui aquilo que a luz é “nela mesma”. Um cão adormecido, quando estimulado por uma luz forte, desperta imediatamente. Mas nós, além de sermos despertados pela luz, isto é, de sabermos o que a luz faz conosco, sabemos que a luz “é” luminosa. Por isto ela pode ser estudada não apenas no poder estimulante que tem sobre nós, mas em suas “propriedades”, naquilo que lhe é próprio, que é dela. Esta distinção, que o filósofo basco Xavier Zubiri não hesita em definir como o específico da percepção humana, está na base de todo conhecimento científico possível.

Mas para apreender o objeto das ciências humanas não basta, como no caso do objeto natural, distinguir o que é ação dele e o que é resposta minha, e não basta precisamente porque, ao contrário do que acontece com a luz, na qual estão fisicamente separadas as propriedades dela e as reações da minha fisiologia,  minha resposta à sociedade humana faz parte constitutivamente dessa sociedade. Não podendo separá-las, o modo de conhecê-las terá de consistir em articulá-las, o que faz da ciência social, inseparavelmente, um exercício de autoconsciência. Aquele que não sabe por onde e como a sociedade humana veio até ele e o constituiu ao mesmo tempo como membro dela e como individualidade distinta nada sabe da sociedade humana exceto pelos meros nomes que, nos tratados de sociologia, designam os produtos da abstração que outras inteligências operaram sobre ela. Esses nomes podem ser combinados numa infinidade de sentenças, que em sua mera formulação verbal podem ser compreendidas por pessoas que, jamais tendo contado a si mesmas a história de seu próprio ingresso na sociedade humana, não têm a condição de tornar presentes à sua consciência os objetos de que elas falam. Pode-se compreender e até discutir um tratado inteiro de sociologia, psicologia ou ciência política sem quase nada saber da sociedade. A prova inequívoca de que isto acontece se evidencia quando o estudioso não é capaz de apreender sua própria realidade pessoal com a mesma grade de conceitos com que discute sociologia. Isto se verifica da maneira mais eloqüente quando as próprias circunstâncias concretas em que uma teoria é enunciada desmentem o conteúdo que ela afirma. Por isto mesmo, em ciência social, o “argumentum ad hominem” nem sempre é desprezível mas pode ser utilmente integrado no método. Ele permite averiguar quando uma teoria é uma visão que um homem pode projetar sobre o mundo exterior mas na qual não pode ele próprio se instalar como personagem. O exemplo clássico é, de novo, a teoria da ideologia de classe. Se a ideologia tem um vínculo essencial com a classe economicamente definida, a possibilidade de um homem ter a ideologia de uma classe que não a sua deve ser uma exceção, não a regra. Mas como em geral os proletários só aderem à ideologia proletária quando alertados pelos intelectuais e estes aderem a ela sem nenhuma ajuda proletária, o fato mesmo de que tantos intelectuais proclamem um vínculo essencial entre classe e ideologia é um forte indício de que esse vínculo é acidental.

Eis por que tanto da ciência social moderna tem a aparência inconfundível de um fingimento histeriforme, como no caso de um sujeito que saia gritando que não consegue falar.

Para escapar dessa armadilha, Gilberto Freyre vai à fonte mesma onde se constitui o objeto da ciência social, que é a constituição da própria consciência pessoal na sua interação com os demais personagens da trama social. Giambattista Vico assinalava que conhecemos melhor aquilo que nós próprios fazemos do que as coisas que nos chegam prontas. A constituição da própria personalidade é, assim, o único lugar onde podemos encontrar, em estado puro, o objeto da ciência social. É por onde me conheço que conheço a sociedade.

Não por coincidência, no instante mesmo em que Gilberto iniciava sua autobiografia da família patriarcal brasileira, um outro grande cientista social, o alemão Eugen Rosenstock, publicava seu livro “Revoluções Européias”, que se apresentava como o projeto de uma “autobiografia da Europa”. Autobiografia no sentido de que a expansão da consciência histórica de um indivíduo, até abranger uma evolução de alguns milênios, era ali mostrada como resultado e retorno reflexivo dessa mesma evolução. Cada sinal deixado pela evolução passada transparecia em episódios da vida de Eugen Rosenstock, e a evolução pessoal de Eugen Rosenstock era, ao mesmo tempo, uma reconquista do sentido do passado histórico. Em nenhum momento consciência pessoal e consciência histórica se separavam.

Mas, em Rosenstock, a palavra “autobiografia” tinha o sentido de uma chave interpretativa apenas. Em Gilberto ela torna-se instrumento material de investigação: ele parte da sua autobiografia pessoal para as autobiografias dos outros, para os registros de memórias familiares, para as histórias ouvidas de velhas escravas, para as cartas íntimas de políticos e senhores de terras — e, ampliando o horizonte em círculos concêntricos, vai chegando passo à passo à autobiografia do Brasil.

Quando ele diz que descobriu o Brasil, esta frase deve ser compreendida num sentido muito mais profundo e vital do que geralmente se faz. Gilberto descobriu o Brasil na sua própria alma à medida que esta alma se constituía descobrindo o Brasil.

Nenhuma ciência lida com fatos concretos. O concreto não é o fato isolado no desenho da sua essência, mas o fato integrado na multidão de acidentes que o possibilitam. Toda ciência, para apreender seu objeto, deve destacá-lo por abstração, fazendo dele uma essência ideal que possa ser objeto de proposições gerais, as quais em seguida serão verificados por experiências ou constatações também seletivas e abstrativas. Mas o objeto da ciência social demanda um tipo especial de abstração. A essência abstrata ideal que ela visa a obter é nada mais nada menos que a essência abstrata da própria sociedade considerada na sua existência concreta, vivente, total. Por isto a abstração, em ciência social, jamais alcança aquele nível de generalização em que já não é mais preciso o retorno cognitivo à experiência direta e pré-científica. A marca dos grandes cientistas sociais é justamente sua capacidade de ir e vir entre a esfera dos conceitos estabilizados e a realidade social em perpétua mutação e reconstituição; mas esta realidade só é encontrada, de novo e de novo, na experiência humana do próprio homem de ciência no curso de sua vida pessoal concreta. A autobiografia não é apenas o começo da ciência social, é o seu perpétuo recomeço, o cíclico mergulho da abstração científica na fonte da eterna juventude.

Exercício de generalização científica a partir de um exercício de autoconsciência e vice-versa, a ciência social é, assim, um capítulo essencial da prática da sabedoria.

Eis a lição mais alta que Gilberto Freyre, entre os grandes cientistas sociais do mundo, encarnou com a máxima perfeição. Eis por que, mais que um mestre, ele se tornou para nós um modelo, alguém a quem voltaremos sempre não só em busca de ensinamento, mas de inspiração.

Quigley e as armas

Olavo de Carvalho

17 de fevereiro de 2000

O presidente Clinton já declarou que a substância de sua política se inspira nas lições de seu professor de História em Harvard, Carroll Quigley. Que é que um jornalista, um cientista político ou um simples cidadão acordado faz quando ouve isso? Ele compreende imediatamente que aquilo que se passa na cabeça do chefe da nação mais poderosa do mundo vai provavelmente acabar se passando com o mundo. Então, supondo-se que ele deseje saber o que vai acontecer com o mundo, ele vai até uma livraria, compra os livros de Quigley e lê.

No Brasil, até hoje, nenhuma daquelas pessoas maravilhosas que vivem nos dizendo para onde vai o mundo deu até hoje o menor sinal de saber quem é Quigley e muito menos o que ele pensa. Nenhum teórico do PT, nenhum acadêmico da USP, nenhum desses comentaristas iluminados que aparecem na TV e nos jornais dizendo que Clinton isto, Clinton aquilo, se interessou em saber quais são e de onde vêm as idéias de Clinton.

A inteligência brasileira é hoje dirigida por usurpadores, farsantes e, na melhor das hipóteses, cegos guias de cegos. Por isto mesmo são tantos, entre eles, os que apóiam a campanha do desarmamento civil. Se tivessem lido Quigley, compreenderiam imediatamente aonde Clinton quer chegar com essa campanha, tão afoitamente endossada pelo nosso próprio presidente. Pois não é possível que Clinton, poucos meses após ter confessado a origem de suas idéias, ignorasse justamente a fonte daquela que inspira uma tomada de posição tão decisiva para o futuro da liberdade do mundo. Essa origem encontra-se na página 34 de Tragedy and Hope. A History of the World in Our Time (New York, MacMillan, 1966), a obra principal de Carrol Quigley. Transcrevo:

“Quando as armas são baratas de comprar e tão fáceis de usar que qualquer um pode usá-las após um curto período de treinamento, os exércitos geralmente se compõem de massas de soldados amadores. A Era de Péricles na Grécia clássica e o século XIX na Civilização Ocidental foram épocas de ‘armas de amador’ e de cidadãos-soldados. Mas o século XIX foi precedido de uma época em que as armas eram caras e requeriam longo período de treinamento. Períodos de ‘armas de especialista’ são geralmente períodos de exércitos pequenos de soldados profissionais (usualmente mercenários). Num período de ‘armas de especialista”, a minoria que possui essas armas pode geralmente forçar à obediência a maioria que não as tem; portanto um período de ‘armas de especialista’ tende a dar surgimento a um período de domínio pelas minorias e de governo autoritário. Mas um período de ‘armas de amador’ é um período no qual todos os homens são mais ou menos iguais em poder militar, uma maioria pode forçar a minoria a se submeter, e então tende a surgir um governo de maioria ou mesmo democrático. O período medieval, no qual a melhor arma era geralmente um cavaleiro montado (claramente uma arma de especialista), foi um período de domínio da minoria e governo autoritário. Mesmo quando o cavaleiro medieval foi tornado obsoleto pela invenção da pólvora e o aparecimento das armas de fogo, estas novas armas eram tão caras e tão difíceis de usar (até 1800), que o domínio da minoria e o governo autoritário continuaram a existir… Mas, depois de 1800, as armas se tornaram mais baratas e fáceis de manejar. Por volta de 1940 um Colt custava 27 dólares e um mosquete Springfield não mais que isso, e estas eram armas tão boas quanto qualquer outra que se podia adquirir naquele tempo. Assim, exércitos de massa de cidadãos, equipados com essas armas baratas e fáceis de usar, começaram a substituir os exércitos profissionais, a partir de 1800 na Europa e mesmo antes disso na América. Ao mesmo tempo, o governo democrático começou a substituir os governos autoritários.”

Não é possível ser mais claro do que isso. A democracia não apenas requer a proliferação de armas entre os cidadãos, mas é um produto dela. Clinton aprendeu isso com Quigley e sabe que tomar as armas do povo é extinguir a democracia. Quando ele atingir esse resultado e houver choro e ranger de dentes, que ninguém, portanto, o acuse de imprevidência. Ele previu, desejou e fez.

A sabedoria perene

por Wagner Carellli

República, seção “Palavra do Diretor”, fevereiro de 2000.

NB – A entrevista a que Wagner Carelli se refere está no número de fevereiro da República. Uma transcrição integral será reproduzida nesta homepage dentro de algumas semanas. – O. de C.

Olavo de Carvalho é o mais importante pensador brasileiro hoje, o mais — talvez o único — original, o mais estimulante, o mais elaborado e ao mesmo tempo mais acessível. Ler sua entrevista ao redator-chefe Reinaldo Azevedo e aos editores Fábio Santos e Michel Laub, nas págs. 60-66, é desfrutar à larga o prazer que se extrai do argumento do espírito, princípio ativo da cultura — o prazer supremo, segundo Aristóteles. Não por acaso, Olavo é o filósofo brasileiro mais profundamente ligado ao e versado no pensamento de Aristóteles, na interpretação do qual sua obra — dele, Olavo — estabelece um ponto de mutação: o entendimento do pensar aristotélico tem um antes e um depois em seu livro Uma Filosofia Aristotélica da Cultura — Introdução à teoria dos quatro discursos.

Fosse Olavo um homem de liderar movimentos (“Não tenho nenhuma pretensão a orientar a política”), de produzir ideologias (“Se o Brasil quiser um ideólogo, que procure outro”), sua entrevista serviria de convocatória ao levante de um pensamento particularmente não-conformista. Particularmente, porque nada do que Olavo propõe é lateral a um determinado pensamento ou deflagra aí uma “problemática”, mas emerge como a perfeita acepção do que é pensado e estabelece patamares confiáveis e sucessivos para sua evolução; o que até então se tinha como a corrente central de um certo pensar é que, sob tal extraordinária luz, passa a parecer de uma lateralidade espinhosa.

Olavo é um professor, porém, e sua entrevista é uma cartilha. Todo intelectual, nos muito freqüentes e desesperados momentos em que bate a tentação de seus inversos — o dinheiro, a fama, outro poder que não o de pensar –, deveria levá-la sob o braço e recorrer a sua sábia e irredutível orientação. Olavo abomina o dedo que seus pares mantêm em riste contra tudo e todos ao redor, a assumida vitimização que o intelectual exibe como medalha em que lhe vale o ingresso nos salões dos supostos e constrangidos culpados. Ele diz que faz o que gosta, que ninguém é responsável por suas opções e que, se quisesse ser rico, iria fazer outra coisa: é um pensador que não se ressente de exclusão, de perda de posição, poder ou glória para o universo fulgurante que criou a aliança do dinheiro e da tecnologia. Não se porta como um exilado da prosperidade; nem, amuado, finge esquecer que seu argumento conforma o mundo e precede a ação dos homens — seria irresponsabilidade e imodéstia, duas atitudes antagônicas à clareza do espírito.

Olavo sabe do caráter divino, demiúrgico, do argumento do pensador; sabe que enunciá-lo é dar a conhecer o parecer de Deus. No reconhecimento dessa condição não vai o pecado da soberba — só aceitação, e humilde, até; pecado, aí, é negar-se o dom atribuído, não se imaginar um instrumento da criação, julgar-se uma entidade social fortuita e cosmicamente desconectada. Pecado é subestimar-se, descumprir sua missão, fugir à tarefa de pensar em um país arredio, suscetível, temeroso ao pensamento. E se assim deve ser, Olavo, a quem todos os equívocos são imputados, é o intelectual sem pecado: generoso com a verdade, feroz com a redundância do erro e luminoso, brilhante, no indicar os caminhos da correção e da grandeza. Em sua hierarquia de valores, ele diz nesta memorável entrevista, o que vem primeiro é o destino eterno do homem: é só o que interessa. Só podemos aspirar à eternidade, ele quer dizer: nada há de menor, de mesquinho, de finito em nossas vidas — só o que inventamos para escapar à perenidade de nossa essência. Somos eternos. “O resto é conversa mole”, diz Olavo, na paradoxalmente dura e confortadora sabedoria de sua extraordinária conversa. Se não formos por ele, não seremos sequer por nós.

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