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Objeções e respostas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 5 de novembro de 2009

Duas objeções ao meu artigo “Primores de ternura” começaram a circular na internet tão logo ele foi publicado no DC (14 e 16 de outubro). Um crítico mais enfezado – ao qual responderei por extenso no meu website – teve a gentileza ou ingenuidade de condensar logo as duas, achando que com isso desferia um golpe fulminante nos meus argumentos. Permito-me portanto usar das suas palavras, sem citar-lhe o nome – para poupá-lo do vexame – e responder de uma só vez a todos os que, por conta própria ou em associação com ele, repetiram as mesmas patacoadas:

1a. “Os recursos do auxílio,como de todo benefício do INSS não provêm de recursos federais,mas são oriundos de um fundo constutuido por contribuição dos segurados e das empresas em que trabalham… Não é o ‘governo que garante’ a família. É o segurado,que mediante sua contribuição mensal forma um fundo atuarial para amparar a família nestes e outros muitos casos.O INSS só administra o fundo.”

2a. “Também não é verdade a afirmação de que quem prefira levar dois tiros na nuca nada vai levar. Se for segurado da Previdência,levará ajuda por todo o tempo em que estiver incapacitado,e a família receberá pensão se vier a falecer. Ambas famílias, a do criminoso e a da vítima, serão amparadas,desde que o pai em questão seja segurado em dia com as contribuições.”

Com relação à primeira, observo que no Brasil é extremamente perigoso usar expressões elípticas, na esperança de que o bom-senso dos leitores saberá descompactá-las. Brasileiro não perde uma chance de não entender nada. Se você não explica tudo nos mais mínimos detalhes, – o que é aliás impossível nas dimensões de um artigo de jornal – logo suas palavras são usadas para dizer o que não disseram e alimentar artificialmente as discussões mais estapafúrdias. Como eu disse que “o governo garante” o pagamento do Bolsa-Bandido, o palpiteiro logo houve por bem esbravejar que o dinheiro não vem do governo, e sim dos contribuintes – como se isso não valesse também para todo o dinheiro coletado em impostos. Se, de direito e abstratamente, a quantia arrecadada pelo INSS não pertence ao governo, isso não faz a mínima diferença, pois o governo se permite usar dela como se lhe pertencesse, incluindo-a automaticamente no superávit primário. E aliás não é só o dinheiro do INSS que entra nisso. Segundo notícia publicada no último dia 13 pela Agência Estado, “a lista inclui o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) – uma das principais fontes de receita para as operações de financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) –, o Fundo do Regime Geral de Previdência (FRGPS), do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e até outros menos conhecidos, como o Fundo da Marinha Mercante… O uso indevido dos fundos especiais é mais uma das medidas tomadas pelo governo para tentar manter recursos dentro do caixa e cumprir seu compromisso fiscal” (v. http://ultimosegundo.ig.com.br/economia /2009/10/13/fundos+sao+usados+para+fazer+caixa+8819976.html). A objeção, portanto, reduz-se a um flatus vocis. Como diria o Paulo Francis, não inflói nem contribói. Antes de dizer a mim que o dinheiro da Previdência não é do governo, seria preciso dizê-lo ao governo.

A segunda objeção é pura distorção do meu argumento. Eu não disse que a família do contribuinte assassinado não recebe nada. Disse que o governo não tem para com ela a mesma generosidade que concede aos familiares do assassino. Ou seja: se você sofre homicídio, sua família recebe a mesma pensão que receberia caso você caísse do andaime ou fosse feito em pedaços num acidente aéreo. Você não pediu para cair do andaime nem pôs uma bomba no avião. Você é vítima desses acidentes, como é vítima de um assassino. Já o assassino não é vítima de coisa nenhuma, nem foi obrigado a cometer assassinato como você é obrigado a trabalhar. Mutatis mutandis, você morre de uma vez para sempre, sua família sabe que não o verá jamais, ao passo que a família do assassino é animada dia a dia pela esperança de que ele volte, e até de que volte regenerado. Se “ambas famílias, a do criminoso e a da vítima, são amparadas”, é claro que aí a família do criminoso leva vantagem, fica sempre com a melhor parte. E isso é obviamente o contrário de qualquer princípio de justiça.

Mais ainda, a Previdência Social foi instituída, na base, para proteger o trabalhador honesto. Quando ela paga a pensão que lhe é devida, cumpre a finalidade que a define e que justifica sua existência. A extensão artificial do benefício às famílias de assassinos só veio em 1991, com a Lei n.8.213, obviamente inspirada na idéia de que a culpa do crime é da sociedade e não do autor do delito, e de que portanto, do ponto de vista previdenciário, tanto faz você matar um cidadão a tiros ou sofrer um acidente de trabalho. Essa idéia modifica a própria natureza da Previdência Social.

Por fim, é verdade o que alega o autor da mensagem, que o auxílio-reclusão visa a “que os filhos do criminoso, já castigados por ter um pai assim,não tenham também que morrer de fome”. Mas esse raciocínio só é válido no caso de a família do criminoso ser exclusivamente vítima passiva da situação, isto é, de nunca ter-se beneficiado dos frutos do crime, hipótese que me parece rebuscada e improvável demais para poder ser generalizada a priori para todos os casos, como o faz a lei. O argumento dá por pressuposta, ademais, a premissa absolutamente imbecil de que o dinheiro da pensão será usado apenas pela família, de que esta não levará nem um tostão ao criminoso na cadeia, convertendo o benefício estatal em prêmio do crime.

A perspectiva do desamparo na eventualidade da prisão do provedor, em contrapartida, seria um forte incentivo a que esposa e filhos pressionassem o pai a viver honestamente. A abolição preventiva desse risco é, com toda a evidência, um estímulo à criminalidade. Quando sabemos o valor que os grandes teóricos e estrategistas revolucionários atribuem às condutas anti-sociais como meios de provocar crises e desestabilizar as instituições, é impossível não perguntar se a Bolsa-Bandido, como tantas outras novidades legais criadas pelo esquerdismo militante, não tem dois objetivos simultâneos, um pretextual, moralmente elevado para fins de persuasão, outro perverso, não declarado, mas efetivo na prática.

Educação ou deformação?

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 23 de outubro de 2009

O pronunciamento do MEC, que considerou inconstitucional a legalização do homeschooling por violar o direito de todos à educação gratuita, é só mais um exemplo do barbarismo que, a pretexto de educar nossos filhos, lhes impõe todo um sistema de deformidades mentais e morais para fazer deles idiotas criminosos à imagem e semelhança de nossos governantes.

Lembrem o que eu disse dias atrás, sobre as afirmações que não podem ser discutidas, apenas analisadas como sintomas da demência que as produziu. O parecer do MEC sobre o homeschooling inclui-se nitidamente nessa categoria. Desde logo, um direito que, sob as penas da lei, se imponha ao seu alegado beneficiário como uma obrigação, não é de maneira alguma um direito. Direito, como bem explicava Simone Weil, é obrigação reversa: se tenho um direito, é porque alguém tem uma obrigação para comigo. Ter direito a um salário é ter um empregador que está obrigado a pagá-lo. Se, ao contrário, sou eu mesmo o titular do direito e da obrigação de satisfazê-lo, é claro que não tenho direito nenhum, apenas a obrigação. É assim que os luminares do MEC entendem a educação gratuita: as pobres crianças brasileiras, por serem titulares desse direito, são obrigadas a engolir a cafajestada estatal inteira que se transmite nas escolas, sob pena de que seus pais sejam enviados à cadeia. Isso não é um direito: é uma imposição e um castigo. Para sofrê-lo, basta ser criança e inocente.

O pior é que os apologistas dessa coisa nem reparam na impropriedade do vocabulário com que a defendem, indício não só de suas más intenções como também da sua falta da cultura superior indispensável aos cargos que ocupam na Educação nacional. Segundo a agência de notícias da Câmara dos Deputados, o diretor de Concepções e Orientações Curriculares do Ministério, Carlos Artexes Simões, acredita que “a obrigatoriedade de o Estado garantir o ensino fundamental, conforme prevê a Constituição, deve ser exercida na escola”. Qual o nexo lógico que essa criatura crê enxergar entre a obrigação estatal de garantir isto ou aquilo e o direito de o governo mandar para a cadeia quem prescinda desse suposto benefício? Desde quando a obrigação de um se converte automaticamente em obrigação de outro, e, pior ainda, em obrigação do titular do direito correspondente? O Estado tem também a obrigação de garantir assistência médica: deveriam então ser processados e presos os cidadãos que recorram a um médico particular, poupando aos cofres públicos uma despesa desnecessária? O Estado tem a obrigação de pagar aposentadorias: nunca fui buscar a minha, à qual tenho direito há mais de uma década. Não fui buscá-la porque ainda estou forte e saudável, graças a Deus, e fico feliz de poupar ao Estado uma quantia que será melhor empregada em benefício de doentes e incapacitados. Devo ser preso por isso? Quanto custa ao Estado a educação de uma criança? Se um indivíduo tem seus impostos em dia e ainda, possuindo dons de educador, dá instrução a seus filhos em casa, cabe ao Estado ser grato ao cidadão exemplar que o auxilia duplamente, com seu dinheiro e com seus serviços, sem nada pedir em troca. Punir essa conduta honrosa é inversão total da moralidade. Sendo nosso governo o que é, não se poderia mesmo esperar dele outra coisa.

Em terceiro lugar, qual a oposição lógica que esses loucos crêem existir entre o homeschooling e o direito à educação gratuita? Imaginam eles que os pais cobram mensalidades dos filhos para educá-los em casa? A coisa é de um contrasenso tão evidente que não percebê-lo à primeira vista indica deficiência mental.

Por fim, o próprio Carlos Artexes Simões não percebe a monstruosidade comunofascista que profere ao declarar que “a escola ainda é a vanguarda do ponto de vista do conhecimento necessário para a construção de um Estado republicano”. Por que as crianças deveriam ser usadas como tijolos para a construção deste ou daquele regime político que interesse ao sr. Simões? Se o regime fosse monárquico, isso mudaria em alguma coisa o conteúdo das disciplinas essenciais, como gramática, aritmética e ciências? Mesmo a História e a informação básica sobre direitos humanos não têm por que ser alteradas conforme as preferências do regime. Bem ao contrário: qualquer regime que exista só se legitima na medida em que se submeta aos valores e critérios universais dos quais a educação é portadora, em vez de torcê-los para amoldá-los à política do dia. Como expressão da cultura, a educação deve moldar o governo, não este a educação. Transformar a cultura e a educação em instrumentos do Estado foi o que fizeram Stalin, Hitler, Mussolini, Mao, Fidel Castro e Pol-Pot. O sr. Simões defende essa concepção com a naturalidade sonsa de quem não é capaz de enxergar nada acima de uma política mesquinha, abjeta, oportunista. Talvez ele não o note, mas o que ele entende por educação é manipulação, é abuso intelectual de menores.

Mais desprezível ainda se torna a sua opinião quando ele acrescenta que a escola não visa só à educação, mas à socialização. Não sabe ele que tipo de socialização nossas crianças encontram nas escolas públicas? Não sabe que estas são fábricas de desajustados, de delinqüentes, de criminosos? Não sabe que, em nome da socialização, as condutas piores e mais violentas são ali incentivadas pelo próprio governo que ele representa? Não sabe que agredir professores, destruir o patrimônio das escolas, consumir drogas, entregar-se a obscenidades em público, são atos considerados normais e até desejáveis nessas instituições do inferno? Não sabe ele que há um crescimento proporcional direto da criminalidade infanto-juvenil à medida que se amplia a escolarização?

Por que se faz de inocente, defendendo a escola em abstrato, como um arquétipo platônico, fingindo ignorar a realidade miserável que as escolas públicas brasileiras impõem a seus alunos, ou melhor, às suas vítimas? Por que finge ignorar que, além da deformidade moral e social que ali aprendem, tudo o que os nossos estudantes adquirem nessas instituições é a formação necessária para tirar, sempre e sistematicamente, as piores notas do mundo nas avaliações internacionais?

Com que direito o fornecedor de lixo, de veneno, de dejetos, há de punir quem se recuse a ingeri-los, ou a dá-los a seus filhos?

O que se deve questionar não é o direito de os pais educarem seus filhos em casa: é o direito de politiqueiros e manipuladores ideológicos interferirem na educação das crianças brasileiras. É o próprio direito de o Estado mandar e desmandar numa instituição que o antecede de milênios e à qual ele deve o seu próprio ingresso na existência. Muito antes de que o Estado moderno aparecesse sequer como concepção abstrata, as escolas para crianças e adolescentes, anexas aos monastérios e catedrais (e nem falo das grandes universidades), já haviam alcançado um nível de perfeição que nunca mais puderam recuperar desde que a educação caiu sob o domínio dos políticos.

Se queremos melhorar a educação nacional, a primeira coisa que temos de fazer é tirá-la do controle de manipuladores e demagogos que não se educaram nem sequer a si próprios, a começar pelo sr. presidente da República, que se vangloria obscenamente de sua incapacidade de ler livros.

Publicado no Diário do Comércio com o título “Os novos demiurgos (2)”.

Sobre esse assunto, confira também o artigo Os novos demiurgos.

Uma opinião presidencial

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 28 de outubro de 2009

Há opiniões que não podem ser debatidas, apenas analisadas como sintomas do estado de alienação que as produziu. Quando, por exemplo, o nosso presidente celebra como um progresso da democracia o fato de que na eleição do seu sucessor só haja candidatos de esquerda, é absolutamente impossível que ele próprio ou os ouvintes que o aplaudem consigam discernir nessa sentença algum sentido lógico, apto a ser discutido. Tudo o que ela expressa é a confusão de maus sentimentos, mentiras interiores e subterfúgios psicóticos que há décadas constituem o estado de espírito dominante do esquerdismo nacional. Não é uma opinião: é um sintoma.

Perguntem apenas “O que ele quis dizer com isso?”, e verão que ele mesmo não o sabe, nem pode saber.

Estaria ele insinuando que a esquerda, de modo geral e por essência, é mais democrática que a direita? Ainda que o fosse, nem um semi-analfabeto pode acreditar que a maneira mais pura de um partido provar seu amor à democracia é excluir os concorrentes do pleito eleitoral. Mas é igualmente impossível que um cidadão medianamente informado ignore os feitos ditatoriais da esquerda no século XX, enormemente mais vastos e sangrentos que os de todas as direitas somadas (mesmo que se apele ao velho e capciosíssimo expediente de incluir entre as direitas o nazismo). À luz da História, qualquer associação entre esquerdismo e democracia é absolutamente inverossímil.

Alegaria ele então que a esquerda, ditatorial em atos, é democrática pelo menos em teoria e em intenções? Nada o permite. No pensamento de seus clássicos — Marx, Engels, Lênin e sucessores –, o esquerdismo é ditatorial por princípio, proclamando mesmo o terrorismo de Estado e o genocídio como necessidades inerentes à construção do socialismo. Nas suas versões mais brandas — fabianismo e gramscismo, por exemplo –, os métodos truculentos são apenas substituídos pelo dirigismo camuflado, pelo controle estatal das consciências, por toda uma engenharia da exclusão que vai calando lenta e sistematicamente as vozes antagônicas, até que a sociedade inteira, meio às tontas, se curve, como dizia Gramsci, à “autoridade onipresente e invisível” do Partido.

Não, não há nenhum pretexto razoável para supor que a esquerda personifique a democracia, a liberdade ou o Estado de direito. No máximo, ela suporta pacientemente a ordem democrática, à espera de poder substituí-la um dia por algo que lhe pareça melhor, seja a ditadura do proletariado, seja a “democracia plebiscitária” de Rousseau, que não é outra coisa senão a ditadura da maioria enfurecida.

Façamos, por último, a hipótese de que a esquerda, em geral refratária à ordem democrática por princípio e por hábito, tenha tido seu nome casualmente associado à idéia democrática no Brasil, pela circunstância excepcional e local da “luta contra a ditadura” (tal como, na Itália, o antifascismo deu ao PCI, por algum tempo, a fama de democrata, logo desmentida). Mesmo essa alegação desesperadoramente casuística não convence. S. Excia., embora não o diga, sabe perfeitamente que nossos terroristas de esquerda, armados e orientados pelo governo cubano, jamais lutaram por democracia nenhuma, mas pela extensão do regime de Fidel Castro ao Brasil (tanto que suas guerrilhas começaram antes do advento do regime militar, só podendo ser explicadas como reação a ele mediante uma inversão psicótica da cronologia).

Resta, por fim, a hipótese do fingimento proposital: o sr. presidente sabe que o controle hegemônico da sociedade por uma só corrente ideológica é totalitário, mas, como ele gosta precisamente disso, decide chamá-lo de “democracia” por ser uma palavra atraente, boa para servir de camuflagem a tudo o que é mais antidemocrático.

Duvido que S. Excia. seja capaz de tal premeditação maquiavélica. Ele deveu toda a sua carreira às liberdades democráticas, e não é verossímil que as odeie sinceramente. Seu mandato está no fim, e ele até agora não mostrou nenhuma vocação pessoal de ditador (não digo de capomafioso, que é outra coisa).

Que quer então ele dizer? Ele mesmo não o sabe, mas eu o sei: o que ele deseja é o milagre da coincidentia oppositorum, o advento de um mundo impossível onde o absoluto controle governamental da sociedade coexista pacificamente com todas as liberdades e garantias individuais. Aí todos serão felizes.

Mas isso é loucura, dirá o leitor. Precisamente. S. Excia., como em geral os esquerdistas brasileiros, vive naquele estado mental nebuloso e crepuscular onde todos os gatos são pardos, todos os quadrados são redondos, dois mais dois são sempre cinco ou seis e nenhuma palavra dita ou ato praticado tem jamais de responder pelas conseqüências que desencadeia no mundo real. É o estado de perfeita alienação da realidade, em que um indivíduo ou grupo, imunizado contra a percepção de seus crimes e desvarios, pode se entregar gostosamente à auto-adoração narcisística e sentir-se o portador de todas as virtudes, a encarnação das mais belas esperanças da humanidade.

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