A casca e a banana

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 18 de junho de 2013

          

A ideia de que um ser humano em gestação é um ser humano é das mais difíceis de contestar. Diante disso, a antropóloga da UnB que mencionei no artigo anterior prefere deformá-la e achincalhá-la, rebaixando o feto humano a um mero “conjunto” ou “punhado” (sic) de células. Tais expressões são de uma impropriedade vocabular subginasiana.
Conjunto ou punhado é qualquer amontoado de elementos, independente da ordem que os articula. Se um feto fosse apenas isso, seria preciso juntar suas células depois do nascimento para lhes dar feitio humano. Seria uma trabalheira dos diabos. O que define o nascituro não é ter células, mas tê-las ordenadas e articuladas em uma forma definida e específica, que é a forma do ser humano, inconfundível e única entre todas as espécies animais.
Há, certamente, pessoas que, de tanto fingir que não entendem, terminam mesmo por não entender coisa nenhuma. Essas hão de dizer que o feto, no começo, se parece com um peixe. Dona Débora não se pronunciou a respeito, mas não duvido que, possuindo a seriedade científica requerida para confundir potência com inexistência, ela encontre também alguma dificuldade em atinar com a diferença entre forma e formato, já explicada 2400 anos atrás por Aristóteles.
O autor do Organon ensinava que uma mão amputada tem ainda o formato, mas não mais a forma de mão. Forma não é aparência exterior, é articulação interna, é ordem constitutiva, é princípio de unidade e funcionamento ou, como diria o nosso Mário Ferreira dos Santos, lei de proporcionalidade intrínseca. É assim que se usa o termo em literatura, em música, em matemática e em todos os setores do conhecimento.
Os Lusíadas e a Lista Telefônica têm ambos o formato de livros. Diferenciam-se é pela sua forma, pela ordem e conexão interna das palavras que os compõem. A estátua de um ser humano tem formato, mas não forma intrínseca de ser humano, isto é, aptidão para crescer e funcionar como um ser humano. O feto, induscutivelmente, tem. Por isso os que não desejam vê-lo como um ser humano precisam fingir que não enxergam essa forma, e recorrem, para tanto, ao expediente de carimbá-la como “conjunto” ou um “punhado”, expressões que designam precisamente o contrário, isto é, os elementos soltos e sem forma.
Dona Débora troca os nomes das coisas para torná-las irreconhecíveis e acha que isso não apenas é ciência, mas ciência séria.
Há tempos já parei de me perguntar se as pessoas fazem essas coisas por burrice ou desonestidade. A desonestidade, quando praticada com a devida persistência, consolida-se em burrice autêntica. A burrice, quando passa da dose compatível com o cargo, o prestígio e as responsabilidades públicas do seu portador, é desonestidade pura.
Dona Débora exemplifica majestosamente a síntese indissolúvel dessas duas mimosas qualidades. Vejamos:
Na sentença que analisei no artigo anterior, ao dizer que os autores do Estatuto do Nascituro querem “dar personalidade jurídica às convicções morais etc. etc.”, ela não
apenas comete as impropriedades lógicas e semânticas que apontei, mas capricha no vexame ao querer mostrar cultura mediante o uso um termo jurídico cujo sentido lhe escapa. “Personalidade jurídica” é capacidade para ser titular de direitos e obrigações. É termo que não se aplica a convicções, opiniões ou ideias, mas somente a indivíduos ou coletividades humanas reais. Se entendesse o que escreve, se tivesse algum domínio, ainda que modesto, do assunto e do idioma, ela poderia dizer que os tais legisladores quiseram dar “teor” ou “valor” jurídico às suas convicções, ou então dar “personalidade jurídica” ao nascituro. “Dar personalidade jurídica a convicções” é uma expressão que não faz o menor sentido.
Mas, quando alguém leva a seriedade científica a esse ponto, não é de espantar que, ao comentar um documento legal, falsifique também o seu conteúdo para fazê-lo dizer o que não diz e, assim, poder-lhe atribuir o sentido que bem deseje. Assim, do Estatuto do Nascituro, que prevê e estabelece explicitamente o direito ao aborto em caso de estupro, Dona Débora faz um código de terror no qual “uma menina que tenha sido violentada sexualmente por um estranho será obrigada pelo Estado a manter-se grávida, mesmo que com riscos irreparáveis à saúde física e psíquica”.
Podemos discutir pelos séculos dos séculos se isso é burrice desonesta ou desonestidade burra. É como perguntar se a banana está dentro da casca ou a casca em volta da banana.
Oque sei é que, quando alguém exibe num mesmo lance seus títulos de autoridade acadêmica e uma total incapacidade de raciocinar até mesmo sobre coisas simples, estamos diante de um exemplar típico da classe universitária brasileira de hoje, cuja função não é estudar ou conhecer o que quer que seja, mas fazer número nos grupos de pressão.
É por isso que, da vasta produção de “trabalhos científicos” neste país, pouco ou nada se cita e se comenta no resto do mundo. Não há mesmo aí nada o que comentar,  exceto do ponto de vista da teratologia intelectual, uma área de estudos especialmente repugnante e insalubre que só  interessa a uns quantos masoquistas, entre os quais o autor deste artigo.

Comments

comments