Yearly archive for 2002

Fanáticos e pusilânimes

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 21 de abril de 2002

A cada vez que vou ao Rio Grande do Sul, mais me surpreende que o restante do país ignore tão completamente e com tão cândida despreocupação o que se passa neste Estado. Historicamente, é o Estado-estopim, berço dos grandes abalos que de tempos em tempos sacodem a nação. Mais um desses abalos, provavelmente o maior deles, está se preparando aqui sem que ninguém de fora tenha o menor interesse, ao menos, de se preparar para o choque.

Georges Bernanos, um profeta que tinha o péssimo hábito de acertar, disse na década de 40 que “o Brasil é um país maravilhoso, mas infelizmente destinado a ser palco da mais sangrenta das revoluções”.

Se depender das autoridades gaúchas, isso é para já. Receber líderes das FARC para conversações secretas, dar-lhes proteção estatal para que ensinem até a crianças de escola as metas e métodos da narcoguerrilha colombiana é o mínimo que o governo do sr. Olívio Dutra se permite.

Numa ostensiva estimulação ao crime e à anarquia, o secretário da Segurança, José Paulo Bisol, cuja alardeada insanidade é apenas uma forma insana de esperteza, informa à população que ela não deve incomodar a polícia com denúncias de assaltos a ônibus, já que não se trata de delitos e sim de “protestos sociais”.

Mas se em vista da situação econômica é justo assaltar ônibus inteiros, com quarenta ou cinqüenta vítimas dentro, quanto mais legítimo não será pegá-las uma a uma, a pé, nas ruas, exercendo a varejo a mesma atividade que foi considerada lícita no atacado! E que odiosa discriminação seria livrar da polícia os assaltantes de ônibus sem fazer o mesmo com os de carros de passeio, motocas, bicicletas e veículos de tração animal!

Mais lindamente ainda, o governo envia ofício à Farsul para alertá-la de que não tem os meios ou a intenção de protegê-la do risco iminente de um ataque por manifestantes Sem-Terra — e a Farsul, ao solicitar à Justiça a proibição preventiva da temível manifestação, tem seu pedido indeferido por um juiz comunista que alega… não haver risco iminente!

Se isso não é um ato de guerra psicológica leninista destinado a intimidar e desorientar a vítima, é pelo menos uma extraordinária conjunção de cinismos executivos e judiciários.

Enquanto isso, sob o olhar paternal de magistrados cúmplices, o MST vai implantando sua ditadura rural, aterrorizando não somente os proprietários de fazendas mas os próprios militantes do movimento, sujeitos a punições cruéis e humilhantes quando “saem da linha”. E ninguém vê nisso a germinação veloz do Estado policial comunista que já está entre nós.

Ao mesmo tempo, uma sucessão de ataques e boicotes oficiais à Brigada Militar denota claramente o plano de desmantelar a corporação para substituí-la por tropas de esbirros ideologicamente programados.

Só quem desconhece totalmente a história das revoluções comunistas pode negar que o Rio Grande está em plena revolução, que uma nova classe dominante de sociopatas ambiciosos e sem escrúpulos está subindo ao poder no lugar de uma classe de burgueses covardes e irresponsáveis, mais inclinados a entregar sua terra ao primeiro que fale mais grosso do que a defendê-la ainda que seja com prejuízo mínimo de seu indecente bem-estar psicológico.

O que mais me espanta é a confiança que tantos líderes conservadores, seja políticos ou empresariais, têm na sua capacidade mágica de livar-se do problema mediante o simples expediente de negar que ele existe. Em contraste com os poucos bravos que resistem nas trincheiras do Instituto de Estudos Empresariais, na Farsul, no Instituto Liberal, a maioria da chamada “direita” não quer saber senão de diversão e esquecimento.

“Exagero”, “paranóia”, “alarmismo” — quantas vezes, em resposta à constatação de fatos óbvios, não tive de ouvir esses chavões idiotas da boca de pessoas que, desconhecendo tudo da história e das técnicas do comunismo, se arrogam a autoridade de julgar o assunto melhor do que quem passou a vida a estudá-lo.

O Brasil está repleto desse tipo de gente, que chega a ser moralmente inferior aos comunistas porque estes, ao menos, têm alguma coragem. No restante do país, o dano que a covardia geral pode trazer é de prazo médio. No Rio Grande, é iminente. A mídia esquerdista do mundo inteiro proclama que o Rio Grande é o atual foco da revolução mundial, a próxima Colômbia, a semente de uma nova Cuba. Gente que não leu nem quer ter o trabalho de ler nada disso assegura-nos, com a autoconfiança dos ignorantes, que nada está acontecendo de mais, que tudo é um processo normal, que os srs. Dutra, Rossetto, Stedile e tutti quanti morrem de amores pelo modelo ocidental de democracia e jamais se afastarão dele.

Sinceramente, não sei o que é mais repugnante: a fome de poder dos que estão subindo ou a irresponsabilidade suicida dos que estão caindo.

***

Será que alguém neste país ainda é estúpido ao ponto de ignorar que qualquer candidato presidencial sem raiz esquerdista será imediatamente destruído pelo governo ou pela mídia e não chegará nem perto do segundo turno?

Será que alguém ainda é burro ao ponto de negar que a esquerda já possui a hegemonia e está a um passo do poder absoluto?

Será que alguém é obstinadamente cego ao ponto de não entender que a esquerda gramsciana não é uma esquerda convertida à democracia, mas apenas uma esquerda estrategicamente mais sofisticada que aprendeu a usar a democracia para destrui-la desde dentro?

A classe empresarial e os partidos ditos “de direita” já ultrapassaram todo o limite do tolerável na presunção de indestrutibilidade mágica que os autoriza a brincar com fogo indefinidamente. Quantos homens ricos e poderosos, neste país, não têm vendido seu futuro, o futuro do capitalismo, o futuro da democracia, em troca de uns sorrisos lisonjeiros daqueles que os odeiam e tramam dia e noite a sua destruição? Quantos não encontram um certo prazer em intoxicar-se masoquisticamente nos vapores fétidos da decadência da sua classe, alguns apostando até mesmo, com cinismo abjeto, que não precisam fazer nada para defender-se porque no momento decisivo serão salvos por alguma impensável intervenção estrangeira?

Tudo isso é tão vil, tão baixo, tão mesquinho, que dentro em breve não se poderá mais negar à nova classe de carreiristas implacáveis e ambiciosos, nascidos do ventre infernal da militância esquerdista, uma espécie de direito moral de assumir o comando em lugar daqueles que se recusam a fazê-lo.

Chegará um ponto em que mesmo o mais inflexível anticomunista não desejará mais salvar um capitalismo que, envergonhado de si mesmo e possuído pelo encantamento verbal do inimigo, se tornou indigno de ser salvo.

Chegará o dia em que até as Forças Armadas se recusarão a defender uma classe de sibaritas levianos que têm preguiça e medo de defender a si próprios.

Saramago e os judeus

Olavo de Carvalho

O Globo, 20 de abril de 2002

O sr. José Saramago proclama que a Igreja não tem nenhum direito de emitir opiniões sobre seus livros, mas ele próprio, além de opinar abundantemente sobre os livros da Igreja, ainda se atribui, com humildade exemplar, a divina missão de reescrevê-los. Primeiro foram os Evangelhos, agora é o Livro de Samuel. O jovem Davi, assegura-nos o inspirado escritor, não foi à batalha com o gigante Golias armado somente de uma funda, mas de uma pistola. Esse importante detalhe provavelmente escapou ao profeta hebraico em razão de sua inexperiência em tecnologia bélica, um ramo em que o Nobel português se mantém atualizadíssimo por meio de consultas ao sr. Yasser Arafat, não sei se também às Farc.

Copy desk da revelação eterna, tarimbado especialista em censura e corte de textos — que o digam os jornalistas portugueses dos bons tempos da ditadura Otelo Saraiva –, por que não haveria esse velho ateu e comunista de sentir-se também habilitado a fazer cobranças morais aos judeus de hoje em nome dos judeus de ontem? Para humilhar aqueles patifes, ele insinua que os mortos de Auschwitz, no Paraíso, coram de vergonha de Sharon e tutti quanti. Deploravelmente, ele escreve isso no mesmo parágrafo em que acusa os israelenses de usar a recordação do Holocausto como instrumento de chantagem psicológica — uma fatal pisada no tomate que será interpretada pelos maliciosos como ato falho freudiano, mas na qual eu prefiro ver uma amostra do rigor dos procedimentos hermenêuticos com que esse cérebro notável interpreta não somente os escritos do Todo-Poderoso, mas até os dele próprio, que é um pouco menos poderoso.

Baseado nesse método revolucionário, ele afirma que os judeus estão “contaminados pela monstruosa e enraizada ‘certeza’ de que neste catastrófico e absurdo mundo existe um povo eleito por Deus e que, portanto, estão automaticamente justificadas e autorizadas… todas as ações próprias”. Quem quer que tenha lido a Bíblia pelo método antigo, denominado “alfabetização”, sabe que a condição de povo eleito, longe de isentar os judeus de responder por seus pecados, os investe do pesadíssimo encargo da profecia, sujeitando-os a temíveis cobranças e castigos da parte de Deus. Segundo estudiosos treinados nesse método, como Eric Voegelin, James Billington e Norman Cohn, o privilégio autoconcedido da indulgência antecipada e incondicional é atributo exclusivo das seitas gnósticas que deram origem às ideologias totalitárias modernas: nacional-socialismo e socialismo internacional. Seja no altar da deusa Raça ou da deusa História, quem sempre alegou o dogma da sua própria concepção imaculada para dar a seus pecados uma aura de santidade não foram os judeus: foram os Saramagos. Que Saramago em pessoa não se dê conta disso e ingenuamente projete sobre uma raça a conduta que é especificamente a do seu próprio partido, eis uma coisa aliás bastante lógica, pois ninguém poderia desfrutar dos benefícios da autobeatificação se esta não o privasse instantaneamente, e talvez para sempre, da possibilidade mesma de enxergar seus próprios atos antes de julgar os alheios. Elevando-se por decreto próprio às alturas de um juiz iluminado do povo judeu, um homem não pode deixar de mergulhar, por choque de retorno, naquela total inconsciência de quem já não consegue seguir a lógica do que ele próprio escreve, nem portanto perceber que, a poucas linhas de intervalo, chantageia e acusa o chantageado de chantagem.

Tal é o método hermenêutico de Saramago.

Para mim, a mais sugestiva apreciação crítica que já se fez desse autor saiu anos atrás na coluna do Agamenon Mendes Pedreira: sob a foto de um burro atrelado a uma carroça, a legenda — “O escritor José Saramago puxando a marcha dos Sem-Terra.”

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O retorno de Hugo Chávez ao poder mostrou, mais uma vez na História, que é mais fácil implantar uma ditadura por meios democráticos do que uma democracia por meios ditatoriais. Arrivistas como Chávez e Hitler apostam na primeira dessas hipóteses e saem ganhando. Os militares latino-americanos que apostam na segunda quase sempre perdem: ou são derrotados logo de cara, ou se deixam prender na sua própria arapuca autoritária durante décadas sem saber como sair, ou, quando conseguem restaurar a normalidade democrática, acabam no banco dos réus de algum tribunal de lindos democratas que não se lembram mais da temível alternativa da qual foram salvos pelos acusados.

Durante anos Chávez e Hitler construíram seus Estados policiais, peça por peça, dentro da Constituição, com fortíssimo respaldo popular e o apoio do Parlamento e da Suprema Corte, sem que quase ninguém na mídia internacional se desse conta da ratoeira sinistra em que estavam metendo seus respectivos povos. Se houvesse um golpe militar contra Hitler em 1937 ou 1938, seria sem dúvida condenado universalmente como uma ruptura da ordem constitucional, um atentado contra a democracia. Assim foi recebido o golpe contra Chávez — daí a sensação de alívio, perfeitamente ilusória, que a volta do sargentão comunista inspirou mesmo aos que o detestavam.

Mas a experiência venezuelana ensina também que, se não é possível fazer uma revolução gramsciana “desde cima”, artificialmente e sem a lenta preparação do ambiente cultural, também não é possível desfazê-la de repente, seja por meio das armas ou de improvisos eleitorais, sem a prévia e trabalhosa dissolução da atmosfera que a possibilitou. Os vietcongs e os guerrilheiros de Chiapas já haviam demonstrado isso, ganhando em triplo na mídia o que perderam no campo de batalha. Mas até hoje o sentido da expressão “revolução cultural” não parece ter entrado na cabeça dos nossos liberais e conservadores.

***

Maria Rosália Campos consta do Dicionário dos Pintores do Brasil de João Medeiros como artista plástica de importância excepcional. De suas obras, a mais conhecida é o mural da Santa Ceia pintado na Igreja de Nossa Senhora de Fátima. Provavelmente tão versado em matéria de pintura quanto o sr. Saramago em assuntos religiosos, um vigário cretino mandou caiar o mural, assim desaparecido sob uma brancura que ninguém dirá ser a da alma de S. Revma., mas que talvez seja a do seu rol de conhecimentos artísticos. A pintora, que já passou dos oitenta anos, não tem ânimo de protestar, mas a cidade do Rio de Janeiro não pode sofrer calada mais este dano ao seu patrimônio cultural. Peço pois aos leitores que, quando passarem pelo templo lesado, não deixem de dizer poucas e boas ao Saramago de batina.

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O PFL, que em matéria de convicções se aproxima velozmente do peso atômico zero, atingirá essa meta tão logo celebre algum acordo com a tucanidade, tucanizando-se ele próprio. Daí por diante, seu destino só dependerá do seguinte fator: para votar num partido é preciso respeitá-lo — e ninguém respeita mulher de malandro.

A Função Social do Empresário

Por Alceu Garcia


Abril de 2002

Resolvi me apropriar, para ilustrar o tema deste artigo, de dois
episódios da experiência pessoal do ilustre escritor e jornalista Janer Cristaldo narrados em algumas de suas saborosas crônicas publicadas no site http://www.baguetediario.com.br

No primeiro episódio, Cristaldo relata a alegria dos habitantes do povoado gaúcho em que nasceu e vivia quando dois mascates de origem turca apareciam por aquelas paragens, montados em bicicletas atulhadas de traquitanas inexistentes na localidade.

No outro “causo”, o escritor conta suas infrutíferas peripécias para conseguir beber cerveja em um movimentado balneário na Romênia comunista. Praia cheia, sol à pino, o sedento Cristaldo dirige-se a um quiosque próximo em busca do precioso líquido para molhar a garganta. O barraqueiro público – pois tudo era estatal na Romênia -, porém, frustra o turista brasileiro ao informar que não dispunha de cerveja. Refrigerante? Não
tinha. Água mineral? Também não. Não havia nada para vender e pronto. E o que o sujeito fazia ali então, indagou Cristaldo? O zeloso funcionário público – pois todos eram funcionários públicos na Romênia – respondeu, indignado, que estava cumprindo regularmente seu horário de trabalho. Não
era problema dele se não havia mercadorias disponíveis para os banhistas.

A badalada praia romena, em que não havia nada para comprar, e o obscuro rincão gaúcho, onde havia, simbolizam duas ordens sociais radicalmente diferentes: na primeira, a função empresarial é proscrita; na segunda ela é permitida. Em suma, uma é socialista e a outra é capitalista. O socialismo presume que a atividade empresarial, que se funda na propriedade privada e nas trocas voluntárias, é a priori nefasta e espoliadora. O empresário (ou capitalista burguês, na terminologia de Marx) é um parasita cuja erradicação é um imperativo de justiça social. A supressão da propriedade privada e do motivo do lucro são condições sine qua non para que o egoísmo execrável seja banido da face da Terra e uma nova era de solidariedade e humanismo seja inaugurada. É claro que nada disso aconteceu onde essas idéias “brilhantes” foram levadas às suas últimas consequências, muito pelo contrário. E não havia nada para comprar nas barracas públicas das praias nem em lugar nenhum. Porquê?

A resposta é simples: onde a função empresarial é proibida, a escassez artificial de tudo está garantida. Mas que raio de função é essa afinal? Malgrado sua importância fundamental pareça instintivamente evidente aos leigos, é lastimável constatar que o que é ensinado sob o rótulo de Economia nas universidades, com raras exceções, raramente ou nunca aborda
esse tema. Nas faculdades os alunos trabalham basicamente com dois paradigmas: a microeconomia walrasiana, na qual a figura do empresário é reduzida a uma abstração numérica e metida em equações matemáticas simultâneas tão garbosas quanto cientificamente estéreis; e a macroeconomia keynesiana, onde a função empresarial simplesmente não existe.

Quem procura embasamento teórico sobre esse assunto vital tem que estudar os obscuros economistas da Escola Austríaca, como L. von Mises, F. Hayek (esse ao menos ganhou o Nobel), M. Rothbard e Israel Kirzner, cujas teorias não são ventiladas nos centros acadêmicos. Mas não é difícil entender o conceito e correlacioná-lo com a realidade circundante. Como vivemos um um mundo imperfeito, em que o futuro é incerto e as nformações de que cada um dispõe sobre o que se passa ao redor são sempre incompletas e fragmentadas, a verdade é que somos todos de certa forma empresários. Isso mesmo, leitor! Se você é socialista, sinto muito; só lhe resta cometer suicídio pelo bem do “proletariado”.

Cada indivíduo traça seus planos à luz de objetivos de qualquer
natureza que estipula para si, correndo o risco inafastável de fracasso. Atingir os objetivos, sejam quais forem, significa que o “empresário” teve “lucro”.

Assim é a vida.

No plano mais restrito da economia, empresário é basicamente aquele que compra barato para vender mais caro, fenômeno denominado no jargão econômico de arbitragem. Isso vale tanto para o comerciante que compra a mercadoria pronta do produtor para revendê-la ao consumidor, quanto para o
industrial que adquire os serviços dos fatores de produção (trabalho, capital e recursos naturais) para transformá-los em bens de consumo. Mas isso não seria exploração? Não. O que acontece é que os consumidores raramente sabem onde estão e quanto custam os produtos pelos quais possam vir a se interessar. Em muitos casos, os consumidores ignoram até a
própria existência de muitos bens e serviços, daí a função social da propaganda comercial, que é a de prover informação sobre a existência, preço, qualidade e locais onde se pode encontrar isso ou aquilo. Por outro lado, mesmo quando o consumidor sabe o que quer e pode pagar o preço, nem sempre o produto está disponível. É preciso fazer com que ele chegue ao consumidor.

As oportunidades de obter lucro satisfazendo os desejos dos
consumidores estão sempre por aí, no ar, por assim dizer. Descobrir e aproveitar essas oportunidades é o que chamamos de função empresarial. Algumas pessoas possuem mais do que outras o sentido de vigilância e perspicácia para divisar essas ocasiões e a energia para aproveitá-las, ou seja, o talento
empresarial, naturalmente correndo o risco do erro de avaliação e do prejuízo monetário. São esses indivíduos os empresários, do camelô da praça até o Roberto Marinho.

No episódio da infância de Janer Cristaldo, os tais comerciantes
turcos, evidentemente empresários natos, carregavam suas bicicletas de mercadorias adquiridas na cidade grande e corriam para os vilarejos para revendê-las, onde encontravam consumidores prontos para comprar seus produtos sem o
custo de se deslocar até outros lugares. Alguém explorava alguém? Não, pois as transações eram voluntárias e as partes se davam mutuamente por satisfeitas. Todos obtinham lucro pois, voltando ao jargão, maximizavam suas respectivas utilidades.

E o que ocorre quando a função empresarial é proibida tout court sob pena de prisão, como nos regimes coletivistas, ou gravemente turbada e obstruída, como em economias mercantilistas tipo a brasileira? Ocorre o que Cristaldo testemunhou na Romênia e o que presenciamos diariamente em
nosso país: escassez desnecessária e pobreza. Naquele país comunista, as oportunidades empresariais não podiam ser exploradas. Embora houvesse milhares de consumidores ávidos por uma “loura gelada” na praia, não havia quem se dispusesse a fornecê-las por iniciativa própria. E ai de quem o fizesse! Que contraste com as praias brasileiras, onde a livre iniciativa
e a função empresarial são permitidas (até certo ponto)! É uma profusão de vendedores de todo tipo de coisas. E a tradicional cervejinha nunca falta.

Mas em países como o Brasil a função empresarial é estorvada de mil formas pelo Estado, sobretudo entre os mais pobres, o que resulta em pobreza desnecessária (e, logo, imoral). O economista peruano Hernando de Soto vem pesquisando há anos os processos pelos quais os governos embaraçam os
empresários, e os efeitos desastrosos dessas políticas. O resultado desse brilhante trabalho está disponível para o público, leigo inclusive, em dois livros. No primeiro, “El Otro Sendero”, de Soto investiga os fatos em seu próprio país, enquanto que no segundo livro, “Los Misterios del
Capital” (ambos traduzidos e publicados por aqui) ele amplia sua perspectiva para o mundo todo. No Peru, como no Brasil e alhures, as leis e regulamentos ininteligíveis e contraditórios de um lado e os tributos e encargos “sociais” extorsivos de outro geram obstáculos artificiais quase intransponíveis à atividade empresarial, principalmente entre os empresários humildes, que não têm como pagar os custos de operar legalmente, e ocasionalmente nem as propinas para funcionar ilegalmente. A
consequência é a formação de vastos “setores informais” nas economias desses países, nos quais se trabalha e produz à margem da ordem jurídica. Sem esses mercados negros aliás, dezenas de milhões de pessoas simplesmente não teriam como trabalhar e seriam condenados à fome. Os empresários e proprietários pobres ficam impedidos de negociar no mercado
formal, abrindo contas bancárias e regularizando suas empresas no registro comercial, por exemplo, pois não possuem títulos de propriedade nem licenças e que tais. Assim, empreendimentos e empresários promissores são mantidos desnecessariamente na clandestinidade e impedidos de produzir, crescer e se desenvolver. Produzindo-se menos, consome-se menos também. E as consequências de ordem moral são terríveis, pois o sentimento difuso de opressão e injustiça resultante só pode produzir uma ordem social viciada e instável. Como a nossa.

Para variar, é o Estado e os grupos – sobretudo os intelectuais – que se servem dele para explorar os incautos, o culpado por essa situação. O governo é uma espécie de Midas ao avesso, pois onde quer que se meta a atuar na economia, proibindo no todo ou em parte a função empresarial, transforma abundância potencial e maximização da satisfação individual em escassez e insatisfação permanentes. Quem se preocupa sinceramente com a dolorosa pobreza de grande parte dos brasileiros deve lutar para que a função empresarial seja desonerada e libertada das cadeias estatais. Não há outra saída.

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