Yearly archive for 2002

Sobre o ensino da filosofia

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 25 de abril de 2002

Se você examinar algum manual de introdução a Platão, a Aristóteles ou a qualquer outro filósofo verá que as preocupações essenciais de seus autores são três. Primeira, reconstituir o quanto possível a unidade sistemática do pensamento do filósofo, expondo-a numa ordem lógica mais direta do que aquela que se encontra nos seus escritos. Segunda, assinalar as mudanças de rumo eventualmente observadas na evolução intelectual do filósofo em direção a essa unidade. Terceira, relacionar de algum modo o pensamento dele à cultura e à sociedade do “seu tempo”. O sistema filosófico é assim enfocado sob três aspectos: sua estrutura lógica, a história da sua formação e suas raízes no ambiente humano em torno.

Essas três coisas são importantes, mas há um porém: você pode estudá-las pelo resto dos seus dias e não chegar a compreender grande coisa da filosofia do filósofo, ao menos tal como ele próprio a compreendia.

O problema é que essas modalidades de estudo tomam a filosofia de fulano ou beltrano como objeto de sua investigação, ao passo que nenhuma filosofia surgiu como objeto de investigação de si própria e sim como canal para a investigação de alguma outra coisa.

Aristóteles jamais estudou “filosofia de Aristóteles”. Estudou os meteoros, a fisiologia animal, o funcionamento da psique, a estrutura do discurso, os princípios da validade do saber, a organização das sociedades políticas, as metas da vida humana, a constituição do universo e a natureza de Deus.

Se você não olhar diretamente para essas coisas, tirando suas próprias conclusões e comparando-as com as de Aristóteles, pouco entenderá destas últimas. Sua visão de Aristóteles será tão falseada quanto a de alguém que quisesse julgar a narração de uma partida de futebol sem levar em conta se ela corresponde ou não ao que efetivamente se passou no campo.

Toda filosofia, afinal, não é mais que a exposição de um conjunto de atos intelectivos realizados por um indivíduo que queria saber alguma coisa sobre algo que, decididamente, não era a sua própria obra filosófica. Só a revivescência pessoal desses atos, com foco nos mesmos alvos a que se dirigiam originariamente, permite apreender a filosofia in statu nascendi, isto é, não como produto cultural acabado, estratificado, congelado, mas como atividade real e vivente da inteligência humana no confronto com os dados da realidade.

Fora disso, você pode aprender algo sobre filosofia, mas não aprender filosofia.

É claro que, de vez em quando, será preciso retornar dos objetos da filosofia à própria filosofia tomada como objeto, para averiguar se as conclusões do filósofo conferem com outras conclusões enunciadas por ele em outras partes do seu sistema, ou se estão em acordo ou desacordo com as teorias de outros filósofos. Mas é evidente que esta é uma atividade apenas de controle, de importância derivada e secundária. Esse controle é como olhar no espelho retrovisor: é uma coisa útil para você dirigir um automóvel, mas ninguém pode dirigir um automóvel mantendo a atenção fixa no espelho retrovisor o tempo todo, sem nunca olhar para a frente.

Ou a filosofia é um saber, ou é apenas uma atividade lúdica sem propósito.

Se ela é um saber, é um saber a propósito de algum objeto que, evidentemente, não pode ser somente ela mesma.

Os antigos estavam mais conscientes disso do que os modernos estudiosos de filosofia. Por isso preocupavam-se pouco com os sistemas filosóficos enquanto tais – seja considerados do ponto de vista estrutural, seja evolutivo, seja cultural e sociológico -, mas buscavam sobretudo testar, no confronto com os objetos, a veracidade ou a falsidade do que esses sistemas diziam a respeito. Esse método pode parecer ingênuo e primitivo desde o ponto de vista das técnicas eruditas altamente sofisticadas que hoje se empregam para estudar filosofia. Mas nenhum acúmulo de técnicas e de sofisticação pode substituir uma atitude cognitiva apropriada ao objeto.

Essa arte, esse talento de ajustar o foco é exatamente o que vem se perdendo na sofisticação crescente das técnicas, e que os antigos possuíam em abundância. Por isso é que, no meio de tantos estudos que a cada ano se produzem sobre Aristóteles nas universidades do mundo, pouquíssimos são de leitura tão proveitosa quanto os velhos comentários de Sto. Tomás, de Duns Scot ou de Avicena.

Não deixa de ser curioso que uma das críticas convencionais ao universo intelectual da Idade Média consista em chamá-lo de “livresco”. Não há nada mais livresco do que tomar uma obra filosófica como objeto em vez de olhar para as realidades de que ela fala – e essa inversão de foco é a definição mesma de muitos dos métodos aprimoradíssimos que os modernos substituíram aos medievais.

Filosofia de verão: “Gabriela, a Pensadora”

Por José Maria e Silva


21 de Abril de 2002

  Não há limites para a decadência do pensamento brasileiro. A pretexto de ser crítico, ele tornou-se lunático e já não mostra qualquer liame com a realidade que o cerca. O paradigma dessa decadência é, sem dúvida, a filósofa Marilena Chauí. Professora da USP e autora de textos canônicos nas universidades, Chauí consagrou-se como uma espécie de Che Guevara da filosofia. Valendo-se da fluente oratória, não dava aulas nem proferia palestras — fazia passeatas verbais em que o pensamento universal, sublevado por Marx e Sartre, reduzia-se a palavras de ordem contra a burguesia. Financiadas com dinheiro público, essas palestras viraram livros, que se tornaram leitura obrigatória nas escolas, além de elogiados na imprensa como última palavra do pensamento nacional.

Todavia, Marilena Chauí é uma metamorfose. Depois de madura, resolveu fazer o que parece não ter feito na juventude — aplicou-se ao estudo sério da filosofia e recolheu-se às bibliotecas, lendo antes de escrever, pensando antes de falar. E, ao afastar-se das redações e das passeatas, — prometendo aquele que seria o livro de sua vida, — deu a impressão de que iria retribuir, finalmente, os altíssimos investimentos que o país tinha feito nela, financiando-lhe os estudos, patrocinando-lhe as viagens, subsidiando-lhe os livros. Mas para desencanto daqueles que esperavam alguma contribuição cívica da filósofa uspiana, eis que ela trouxe de seu retiro espiritual um tratado sobre Espinosa — o presunçoso A Nervura do Real, com suas mais de 1.200 páginas.

A exceção dos revisores da Companhia das Letras, ninguém parece ter lido esse livro. Enfrentei-lhe as 300 primeiras páginas (contando as infindáveis notas no volume anexo) e, até onde o li, pareceu-me trabalho de amanuense, não de filósofo. Nada vi de original. Mas, antes que me acusem de amofinar o livro sem tê-lo lido inteiro, lembro que a maioria dos que elogiaram febrilmente A Nervura do Real sequer leu-lhe as orelhas. Resultado: a “obra da vida” de Chauí tornou-se a obra-prima da filosofia nacional — não pelos méritos, mas pelo mito. Confesso não descartar a hipótese de que o livro seja bom (julgamento que os especialistas da área estão a dever ao país), mas desconfio que é quase inútil. Qualquer europeu escreveria um tratado semelhante sobre Espinosa em muito menos tempo e com muito menos custo.

A própria Marilena Chauí parece saber disso, porque, quando publicou A Nervura do Real, tratou de pôr um pouquinho de gelo na fervura da imprensa. Enquanto as resenhas diziam que finalmente a filosofia brasileira ganhara sua obra-prima, Chauí — provavelmente com receio de Olavo de Carvalho e já adivinhando Gonçalo Palácios — ressalvou que não era propriamente “filosofia” o que tinha feito, mas “história da filosofia”. Isso revela ainda mais a impropriedade do livro. Por que recontar parte da surrada história da filosofia européia se toda a história da filosofia brasileira ainda está praticamente por ser contada? Claro que a reflexão filosófica não tem fronteiras geográficas, mas o financiamento público de pesquisas científicas tem. O país não investiu em Marilena Chauí como sua maior filósofa para que ela se tornasse simples maquiladora do pensamento europeu.

Todavia, Marilena Chauí não se limitou a passar de panfletária a amanuense. Ela sofreu novas metamorfoses. Recentemente, apareceu na grande imprensa revelando que sua nova preocupação já não é a ética, mas a etiqueta — acabara de dar ao mundo um tratado de culinária. A “Che Guevara” das passeatas estudantis dava lugar à “Danusa Leão” das revistas femininas. Isso num momento que se dizia reclusa, por estar cuidando da segunda parte de seu monumento a Espinosa. Agora, a ex-Che Guevara e ex-Danusa Leão assumiu de vez sua verdadeira face — a de “cara-pintada” da cultura brasileira. Numa entrevista ao Megazine (suplemento juvenil do jornal O Globo), Marilena Chauí anunciou a “filosofia pop” — vai trocar o pensamento grego clássico pelo rap das gangues urbanas. No lugar de Sócrates, Sabotage; no lugar de Descartes, Racionais MC.

Foi a própria Marilena Chauí quem explicou a filosofia que pretende emplacar neste verão: “No primeiro Convite à Filosofia eu usei a literatura brasileira para fazer esses paralelos. Professores amigos meus sugeriram que eu usasse algo mais próximo do cotidiano dos estudantes na nova edição do livro. Por conta disso estou ouvindo toda a produção atual de rap. Quero usar as letras das músicas para tratar de ética e política”. (Sintomaticamente, o ditador Fidel Castro também aparece elogiando o rap na revista Reportagem de março). Na entrevista, de Marilena não falta nem a dica sobre o filósofo da hora: “Atualmente, o mais festejado nos meios universitários é Nietzsche, que está ocupando o lugar que foi de Sartre nas últimas décadas. Ele conquista os jovens com sua linguagem corrosiva”. Será que nesta nova edição de Convite à Filosofia o taciturno Nietzsche aparece “descolado”, vestindo a nova griffe Chauí?

Aliás, Marilena Chauí comprova, nesta entrevista, que não passa de uma falsária intelectual. Recentemente, numa entrevista à Folha de S. Paulo, fingiu-se espantada ao saber que seu livro Introdução à Filosofia era adotado nas universidades. Disse que o escrevera para o ensino médio, como se a educação dos mais jovens — exatamente por serem mais jovens — não fosse a que merece os maiores cuidados do educador. Para não saber que sua obra é obrigatória nas faculdades, só se Marilena Chauí fosse autista. Todavia, ela é até ligada demais ao mundo — sua filosofia é comercial, feita de olho na lista dos mais vendidos. Creio, inclusive, que só falou que seu livro se destinava ao ensino médio, porque deve ter lido às críticas devastadoras do filósofo Gonçalo Palácios no Jornal Opção.

Uma intelectual como Marilena Chauí me faz rever antigos conceitos e respeitar o escritor Paulo Coelho. Ainda não li o Mago, mas já não hesitaria em lê-lo — deve fazer menos mal que Marilena Chauí, essa espécie de “Jorge Amado” da filosofia. Da mesma forma que o autor de Gabriela, Cravo e Canela, começou produzindo o digno regionalismo de 30 mas acabou rendendo-se às facilidades do carnaval, do futebol e das mulatas, Marilena Chauí está decaindo de Sartre a Che, de Che a Danusa, de Danusa a cara-pintada. Marilena já não pensa — veste a filosofia da moda. O problema é se ela vestir um filósofo novo a cada verão. Gabriel, o Pensador vai ficar desempregado. E nos auditórios de Gugus e Faustões, o hit será o “Rap da Caverna” de Platão — na versão de “Marilena, a Pensadora”.

A política e as características espirituais do nosso tempo

Por Francisco Campo


21 de Abril de 2002

Proferida no salão da Escola de Belas Artes em 28 de setembro de 1935, publicada pela Imprensa Nacional em 1939 e depois recolhida em O Estado Nacional (Rio de Janeiro, José Olympio, 1941), esta conferência é, segundo Wilson Martins, “um dos grandes textos da nossa literatura política, não apenas pela argúcia profética com que analisava os sinais dos tempos, mas ainda pela alta qualidade do estilo e a gravidade do pensamento”(História da Inteligência Brasileira, São Paulo Cultrix, 1979, vol. VII, p. 43). A posterior colaboração de Francisco Campos com o Estado Novo não empanaria em nada o brilho desta e de outras contribuições suas ao pensamento brasileiro, se as idéias que veiculam não tivessem se revelado, justamente por causa de sua veracidade profunda,  impossíveis de assimilar ao discurso esquerdista oficial, como aconteceu sem maiores problemas com as de tantos outros adeptos do varguismo. “A Política e as Características Espirituais do Nosso Tempo” é um documento de valor inestimável, que por tempo excessivo tem permanecido oculto e esquecido dos estudiosos e do público em geral. Recolocá-lo em circulação é um dever essencial, que este site  pôde cumprir graças à colaboração do Prof. Bráulio Porto Matos, da UnB, que nos presenteou com  um exemplar da primeira edição do texto, e ao qual nesta ocasião agradecemos. – O. de C. 

O aspecto trágico das épocas de transição

Quando escolhi o tema deste monólogo, não pensei na vossa e na minha impaciência. Ao primeiro golpe de vista, porém, percebi que o caminho era difícil e, sobretudo, longo. E o que o melhor para nos distrair da caminhada  não seria um monólogo, que a torna mais fatigante e monótona, mas uma imensa e alegre controvérsia, em que cada um, sem outro interesse que não fosse o interesse pelo jogo das idéias, confessa assim em voz alta o que realmente pensa sobre o mundo dos negócios humanos. Esse mundo está mudando à nossa vista, e mudando sem nenhuma atenção para com as nossas idéias e os nossos desejos. Nele a nossa geração não encontra resposta satisfatória às questões que aprendeu a formular, nem quadram com as soluções que lhe foram ensinadas por uma laboriosas educação os problemas que desafiam a sua competência. Que esta é a situação em que nos encontramos há mais de vinte anos é o que mostra, com relevo  extraordinário, o movimento que se vem operando na educação. A esta é que incumbe, com efeito, adaptar o homem às novas situações. Nenhum setor refletirá, portanto, com mais fidelidade a inquietação contemporânea do que aquele cuja função consiste precisamente em adaptar o homem ao ambiente espiritual do nosso tempo. Ora, o que se nota nesse domínio é que vai por ele uma grande desarrumação. Os valores consagrados foram postos em dúvida, sem que se fizesse a sua substituição por outros valores. O que caracteriza a educação em nossos dias é que ela não é uma educação para este ou aquele fim, para um quadro fixo, para situações mais ou menos definidas, mas não sei para que mundo de possibilidades indeterminadas; não uma educação para tais ou quais problemas, mas uma educação para problemas, uma educação que se propõe em não a fornecer soluções, mas a criar uma atitude funcional do espírito, isto é, atitude para o que vier, seja o que for e de onde quer que venha, como a sentinela atenta, noite escura, às sombras e aos rumores.

Não há mais soluções, nem problemas que possam antecipadamente ser postos em equação. Há apenas uma situação problemática, ou, antes, situação que muda segundo uma razão que ainda não conseguimos fixar. De onde não poder a educação exercer-se sobre problemas definidos, que, postos hoje em certos termos, terão amanhã configuração diversa, exigindo novo exame em outra posição relativa dos elementos. Acontece, porém, que essa é uma educação ainda à procura dos seus métodos, — se é possível, numa educação para problemas, encontrar-se um método que não seja igualmente problemático. O fato é que os métodos tradicionais foram postos de lado e que ainda não foram encontrados os novos métodos. Estamos diante do problema de como tratar satisfatoriamente não problemas definidos, mas simplesmente problemas de que não podemos antecipar os termos ou prever a configuração dos elementos. Esta só poderá ser, evidentemente, a educação do futuro e para o futuro. Há, porém, o problema das gerações já educadas, ou em curso de educação, das que foram ou estão sendo precisamente educadas num determinado clima espiritual ou pressuposto de haver problemas definidos suscetíveis de soluções definidas. Essas gerações foram ou estão sendo educadas por um mundo anterior ao atual, por um mundo em que havia tipos e arquétipos, por um mundo de espírito platônico, um mundo de ordem e de hierarquia, um mundo de modelos e de formas e em que os problemas eram dóceis e educados como essas árvores de jardim que obedecem, no seu crescimento, à direção do jardineiro. E enquanto, na pedra de aula, no papel e nas preleções, os educadores construíam os modelos segundo os quais haviam de configurar-se os problemas humanos, estes, como se o mundo houvesse passado da escala de Platão para a de Heráclito, estavam precisamente mudando, porém mudando num sentido estranho, porque segundo uma razão que não era a da mecânica dos quadros negros e sob a influência de valores não computados na tabulação das pessoas educadas. Daí, o mundo da interpretação, — construído segundo os nossos desejos, e o mundo da realidade, — refratário a um sistema interpretativo em desacordo com a escala e o passo dos acontecimentos.

É o aspecto trágico das épocas chamadas de transição.

A época de transição é precisamente aquela em que o passado continua a interpretar o presente; em que o presente ainda não encontrou as suas formas espirituais, e as formas espirituais do passado, com que continuamos a vestir a imagem do mundo, se revelam inadequadas, obsoletas ou desconformes, pela sua rigidez, com um corpo de linhas ainda indefinidas ou cuja substância ainda não fixou seus pólos de condensação. Nós fomos educados pelo passado para um mundo que se suponha continuassem a se modelar pela sua imagem. O nosso sistema de referências continuou a ser o que fora calculado para um mundo de relações definidas ou constantes, mas nós nos vemos confrontados com uma realidade em que as posições não correspondem às fixadas na carta topográfica. O que chamamos época de transição é exatamente esta época profundamente trágica em que se torna agudo o conflito entre as formas tradicionais do nosso espírito, aquelas em que fomos educados e de cujo ângulo tomamos a nossa perspectiva sobre o mundo, e as formas inéditas sob as quais os acontecimentos apresentam a sua configuração desconcertante.

Nas épocas de transição, o presente, ainda não acabada a ressonância da sua hora, já se converteu em passado. O demônio do tempo, como sobre a tensão e escatológica da próxima e derradeira catástrofe, parece acelerar o passo da mudança, fazendo desfilar diante dos olhos humanos, sem as pausas a que eles estavam habituados, todo o seu jogo de formas que, nas condições normais, teriam que ser distribuídas segundo uma linha de sucessão mais ou menos definida e coerente.  Daí o caráter problemático de tudo: a acelerado o ritmo da mudança, toda situação passa a provisória, e a atitude do espírito há de ser uma atitude de permanente adaptação não as situações definidas, mas simplesmente de adaptação à mudança. A função normal do espírito (normal pelo menos em relação aos cânones até então consagrados pela escala de referências válida, ou tida como válida fossem quais fossem as circunstâncias), passou a ser precisamente o oposto, isto é, a de mudar perpétua mente o seu sistema de referências, em função de posições em movimento.

Educação para o que der e vier

Nunca se pôs em questão, de uma vez, tão grande número de pontos de fé. Nunca falhou em tão grande escala a confiança humana na coerência do universo do pensamento e do universo da ação. Há uma vocação do mundo moderno para os problemas e um correspondente ceticismo em relação às soluções. Pode-se dizer que o homem do nosso tempo pôs de novo em equação, transformando-as em problemas, todas as soluções que constituíam a sua herança intelectual, política e moral. A educação reflete esse estado de coisas.  O que se quer é que ela seja uma educação para problemas, e não para soluções, não para este ou aquele regime de vida, pois não se sabe ou não se acredita saber em que quadro de linhas móveis e flutuantes irá o homem viver.  Como educar para a democracia, se esta não é hoje senão uma cafarnaum de problemas, muitos dos quais propondo questões cuja solução provável implicará o abandono dos seus valores básicos ou fundamentais? Educação individualista ou educação para um mundo de massas, de cooperação ou de configuração coletiva do trabalho, do pensamento e da ação?

Nenhuma, nem outra coisa, mas uma educação para o que der e vier, como se estivessemos preparando uma equipe de aventureiros para uma expedição em que tivessem de consumir a sua vida adaptando-se as circunstâncias que não poderíamos prever e realizando obras de trabalhos nunca antes realizados pela raça humana. A problemática de hoje envolve todos os aspectos da vida. A nossa substância espiritual, se se pode chamar de substância o movimento, é toda ela constituída de problemas. Perdemos as aquisições substanciais do passado e não constituímos ainda novo patrimônio. Um patrimônio espiritual é um conjunto de valores organizado segundo um sistema mais ou menos coerente de referências em que cada um tem a sua posição definida em relação à dos demais.

Pois bem, desarrumamos o sistema de valores que constituía a nossa herança espiritual.  Não há mais uma reflexão fixa ou constante entre os valores. Todos ele se tornaram relativos, e não apenas o sentido de serem relativos entre si, ou a um valor fundamental, mas de serem relativos simplesmente, isto é, de não guardarem entre si nenhuma relação. Se se pode chamar de sofistica essa atitude problemática do espírito, a sofística de nossos dias não se pode comparar, em dimensão espiritual, com a sofistica dos Gregos.

A sofistica moderna

 Entre Sócrates e os sofistas havia um diálogo, ou uma discussão, porque um em outros admitiam valores comuns, pelo menos um valor — o valor de verdade. A sofistica de hoje, embora continuando a empregar a linguagem dos valores tradicionais, eliminou a substância de qualquer valor, até do valor de verdade, pois a sua significação passou a ser exatamente o contrário, o valor de verdade não constituido precisamente na verdade, mas naquilo que, não sendo a verdade, funciona, entretanto, como verdade. Teremos oportunidade de ver a importância dessa atitude do espírito não mais no plano da especulação, porém da mais prática das práticas, que é a prática política. Veremos, com efeito, como se constituiu uma teologia política que tem por substância a afirmação de que o seu dogma fundamental deve ser acreditado como verdadeiro, embora declare que o seu valor não é precisamente um valor de verdade. A teologia soreliana do mito político não é mais do que uma aplicação, como o reconhece o seu próprio autor, da filosofia de Bergson e, pensamos nós, mais diretamente do pragmatismo anglo-saxão e do seu conceito de verdade. Do estudo das condições do mundo moderno, Sorel chegou à conclusão de que só uma revolução total mudará o sistema de posições de forças econômico-políticas, cujas injustiças tanto o impressionaram. No seu entender, porém, aquela revolução não resultará fatalmente das condições internas do regime capitalista, como queria Marx, pois a estrutura social é mais complexa do que a descrita pelo marxismo, que a reduziu à oposição entre duas classes.  A idéia de Marx não é verdadeira, mas, acreditada como verdade, constitui o único instrumento capaz de conduzir à grande revolução. Convém, portanto, o cultivar a idéia de luta de classes e forjar um instrumento intelectual ou, antes, uma imagem dotado de grande carga emocional, destinada a servir de polarizador das idéias ou, melhor, dos sentimentos de luta e de violência tão profundamente ancorados na natureza humana.

Esta imagem é um mito. Não tem sentido indagar, a propósito de um mito, do seu valor de verdade. O seu valor é de ação. O seu valor prático, porém, depende, de certa maneira, da crença no seu valor teórico, pois um mito que se sabe não ser verdadeiro deixa de ser mito para ser mentira. Na medida, pois, em que o mito tem um valor de verdade, é que ele possui um valor de ação, ou um valor pragmático. 

Papel do mito soreliano

O papel do mito soreliano é, portanto, equívoco, e nisto reside a sua principal vantagem, ou a principal vantagem que lhe atribui Sorel, e que consistem em ser irrefutável: quand on se place sur ce terrain dês mythes, on est ‘a lábri de toute refutation.  A impossibilidade de refutar Sorel está precisamente em que ele atribui ao mito dois valores contraditórios: o valor de verdade para os que acreditam no mito, e o valor de artifício puramente técnico o para os que sabem que se trata apenas de uma construção do espírito. Atacado do ponto de vista da teoria do conhecimento, Sorel sorri da objeção, alegando que ele propõe não uma verdade, mas o oposto da verdade. Mas, quando atacado, no terreno prático, pelo argumento de que o mito só funcionará como motivo de ação enquanto conservar o seu valor de verdade, responderá que isto equivale a reconhecer ao mito um valor puramente de verdade, porque o que nele se postula é a impossibilidade da sua realização e, portanto, o seu caráter último final de inverificável. A sofistica atual tem dois critérios de verdade: a verdade que se sabe ser a verdade, pois, se não houvesse um critério da verdade, não haveria como de extinguir entre mito e verdade, e a verdade que embora não sendo verdadeira, funcionará indefinidamente como verdade, porque o que ela postula da realidade é, por definição, insuscetível de verificar-se. A refutação de Sorel torna-se, assim, impossível, não porque a sua doutrina seja irrefutável, mas porque ele mesmo se encarregou de refutá-la por antecipação. Não se arromba, evidentemente, uma porta aberta, nem se toma de assalto uma fortaleza abandonada. Não se poderá, entretanto, contestar que a fortaleza tenha sido ocupada, porque nela já não se encontravam os seus defensores.

A duplicidade do mito, no sentido soreliano, não se limita apenas ao plano teórico. Toda a técnica, ainda a do espírito, é indiferente aos fins. A técnica espiritual da violência, que Sorel havia construído com o fim de tornar agudo o antagonismo entre duas classes, mobilizando-as para uma guerra permanente, tinha por objeto, de acordo com as tendências e simpatias intelectuais do autor, dissolver a unidade do Estado, construída pelos juristas e graças ao emprego de métodos artificiosos de racionalização próprios à teologia, no multiverso político do sindicalismo.

Fichte e a sua fórmula patética

Aconteceu, porém, que a técnica espiritual da violência, destinada por Sorel a dissolver a unidade do cosmos político, haveria de ser empregada logo depois no sentido absolutamente oposto, precisamente no sentido de pôr fim à luta de classes e reforçar a unidade política do Estado.  Ao politeísmo político de Sorel, e pelos mesmos processos e intelectuais de que ele se servia, opunha-se, de maneira vitoriosa, a teologia monista do nacionalismo. Em seu discurso de outubro de 1922, em Nápoles, antes da marcha sobre Roma, dizia Mussolini, traindo a leitura recente de Sorel: “criamos nosso mito. O mito é uma crença, uma paixão. Não é necessário que seja uma realidade.  É realidade efetiva, porque estímulo, esperança, fé e ânimo. Nosso mito é a nação; nossa fé, a grandeza da nação”. Aliás, não há, no nacionalismo italiano e alemão, nenhum conteúdo espiritual novo. O mito da Nação já se encontrava construído um com todo o seu ethos e, sobretudo, o seu pathos, nos Discursos de Fichte à Nação Alemã. A retórica nacionalista dos nossos dias, por mais alto que tenha elevado a sua nota de paixão, ainda não encontrou fórmulas em que se condensasse com mais vigor a carga emocional do mito totêmico do moderno matriarcado político nacionalista do que nas  de Fichte: “a aspiração natural do homem é realizar, no temporal, o eterno. O homem de coração nobre possui uma vida eterna sobre a terra. A fé na duração eterna da atividade do homem na terra encontra o seu fundamento na esperança da duração eterna do povo que lhe deu a existência. O caráter racial do seu povo é o elemento eterno ao qual o homem liga a sua própria eternidade e a  toda a sua obra. É a ordem de coisas eternas na qual o homem põe o que ele mesmo tem de eterno.”

A declaração da Carta Del Lavoro sobre a  unidade da nação faz o papel de uma pálida fórmula jurídica, destituída de alma e de fé, diante das fórmulas patéticas de Fichte sobre a unidade e a eternidade da Nação. A unidade desta não se funda na unidade do regime jurídico, representada pela constituição e pelos códigos, mas no sentimento de que a nação é o envoltório do eterno. Nunca o Estado totalitário encontrou uma expressão mais enérgica do que esta: “o Estado, alto administrador dos negócios humanos, autor responsável, diante de Deus e perante a sua consciência, de todos os seres menores, têm plenamente o direito de constranger estes últimos à sua própria salvação. O valor supremo não é o homem, mas a nação e o Estado, aos quais o homem deve o sacrifício do corpo e da alma”. 

Tudo que constitui conteúdo espiritual dos novos regimes políticos já se encontra no romantismo alemão. O estado racionalista, racista, totalitário, a submersão dos indivíduos no seio totêmico do povo, da raça, da nação, é o Estado de Fichte e de Hegel, o pathos romântico do inconsciente coletivo, seio  materno dos desejos e dos pensamentos humanos. O que é novo é a aliança do ceticismo com o romantismo, o emprego, pelos sofistas contemporâneos, das constelações românticas como instrumento ou como técnica de controle político, tornando ativas, através da ressurreição das formas arcaicas do pensamento coletivo, as emoções de que elas continuam a ser os pólos de condensação e de expressão simbólica. Aliás, o estado de alma favorável à germinação dos mitos políticos da violência já vinha sendo preparado antes da guerra.  Esta acabou por libertar forças que até então se vinham mantendo em estado de latência graças à crença, embora já vacilante, em certas formas tradicionais de cultura moral e política, de que o grande conflito acabou por mostrar a tenuidade, para não dizer a ausência, de substância ou de medula espiritual. As filosofias anti-intelectualistas do fim do século XIX e do princípio do século XX, dando novos fundamentos ao ceticismo das elites na razão, não lhes forneceu novos conteúdos espirituais, a não ser a vaga indicação, tanto mais poderosa quanto mais vaga, de que os valores supremos da vida não constituem o objeto de conhecimento racional, podendo apenas ser traduzidos em símbolos ou em mitos, isto é, em expressões destituídas de valor teórico, cuja função não é dar a conhecer, mas tão-somente reviver os estados de consciência ou as emoções de que são apenas a imagem mais ou menos inadequada.

Primado do irracional

Assim se instalava no centro da vida o primado do irracional, e, em se tratando de formas coletivas de vida, o primado do inconsciente coletivo, por intermédio de cujas forças subterrâneas ou telúricas se tornava possível realizar, de modo mais ou menos completo, a integração política, que o emprego da razão somente obtivera de maneira precária e parcial.  O irracional é o instrumento da integração política total, e o mito, que é a sua expressão mais adequada, a técnica intelectualista de uma utilização do inconsciente coletivo e para o controle político da nação. Assim, as filosofias anti-intelectualistas forneciam aos céticos não uma fé ou uma doutrina política, mas uma técnica de golpe de Estado. Ao serviço dessa  técnica espiritual coloque o maravilhoso arsenal, construído pela inteligência humana, de instrumentos de sugestão, de intensificação, de ampliação, de propagação e de contágio de emoções, e terei isso o quadro dessa evocação fáustica dos elementos arcaicos da  alma humana, de cuja substância nebulosa e indefinida se compõe a medula intelectual da teologia política do momento.

Não há para esta teologia processos racionais de integração política. A vida política, como a vida moral, é do domínio da irracionalidade e da ininteligibilidade. O processo político será tanto mais eficaz quanto mais ininteligível. Somente o apelo às forças irracionais ou às formas elementares da solidariedade humana tornará possível a integração total das massas humanas em regime de Estado. O Estado não é mais do que a projeção simbólica da unidade da Nação e essa unidade compõe-se, através dos tempos, não de elementos nacionais ou voluntários, mas de uma cumulação de resíduos de natureza inteiramente irracional.  Tanto maiores as massas a serem politicamente integradas, quanto mais poderosos hão de ser os instrumentos espirituais dessa integração, a categoria intelectual das massas não sendo a do pensamento discursivo, mas a das imagens e dos mitos, a um só tempo intérpretes de desejos e libertadores de forças elementares da alma. A integração política pelas forças irracionais é uma integração total, porque o absoluto é uma categoria arcaica do espírito humano. A política transforma-se dessa maneira em teologia. Não há formas relativas de integração política, e o homem pertence, alma e corpo à Nação, ao Estado, ao partido. As categorias da personalidade e da liberdade são apenas ilusões do espírito humano. Só é livre o que perde a sua personalidade, submergindo-a no seio materno onde se forjam as formas coletivas do pensamento e da ação, ou, como diz Gentile, aquele que sinta o interesse geral como o seu próprio e cuja vontade seja a vontade do todo. O indivíduo não é uma personalidade espiritual, mas uma realidade grupal, partidária ou nacional. É o restabelecimento da relação em que estava o homem primitivo com o seu  clã. 

Tentativa de definição 

Façamos uma breve pausa para ver se conseguimos reagrupar, numa tentativa de configuração, as características espirituais do nosso tempo, ou do novo ciclo de cultura que parece abrir-se, com a nossa época, para a humanidade. A política é solidária das outras formas de cultura. Não é um domínio isolado, se não um elo na cadeia de formas espirituais, cuja constelação dá a cada cultura a sua configuração individual ou a suas características fisionômicas. A irracionalidade e o sentimento da mudança, eis as duas notas dominantes ou as tônicas da alma contemporânea. As categorias coletivas do pensamento e da ação constituem hoje as formas espirituais expressivas do nosso tempo, em todos os domínios da atividade humana. Há como que uma volta à comunhão totêmica, sensível nas grandes concentrações urbanas do mundo moderno, e, nestas, o fenômeno, apenas em começo, da tendência à super condensação não somente sob a forma de habitações coletivas, como sob todas as demais formas de vida em comum, em que tudo se torna típico, uniforme e coletivo, ou em que todos participam de tudo, por que há uma participação recíproca ou cada um está em relação aos outros em um estado mais ou menos equívoco de participação ou de comunhão. As formas de vida íntima ou pessoal tendem a desaparecer. O estado de massa gera a mentalidade de massa, propaga e intensifica as expressões próprias a essa mentalidade. A moderna teologia política é o resultado de uma cultura de massa, pois que, em cada época, os processos espirituais de integração política só podem ser determinados pelas formas expressivas ou dominantes da sua cultura. Já houve uma integração pela fé, nas épocas de religião, e uma fraca integração, ou, antes, uma tentativa de integração política por processos intelectuais, o ao menos de aparência intelectual, quando as massas, em razão do seu volume relativamente reduzido e da deficiência da técnica das comunicações, o melhor, no contágio, eram antes um elemento passivo, ainda não dotado, como em nosso tempo, de unidade de alma e de ação. Ora, uma integração política num regime em que se torna possível organizar e mobilizar as massas só se pode operar mediante forças irracionais, e a sua tradução só é possível na linguagem bergsoniana do mito, não, porém, de um mito qualquer, mas, precisamente, do mito da violência, que é aquele em que se condensam as mais elementares e poderosas emoções da alma humana.

Condensemos, porém, o pensamento, procurando indicar, em alguns traços, de valor apenas sugestivo, as demais notas que se agrupam em torno das duas tônicas a que já nos referimos – a irracionalidade e o sentimento da mudança. A volta à comunhão totêmica, fórmula sintética que tenta exprimir esse estado de participação recíproca criado pela forma moderna da vida no quadro da massa, tem como resultado a atribuição de um valor especial às categorias instintivas e irracionais do pensamento e da ação, categorias em que a alma coletiva encontra a sua tradução espontânea e natural. A irracionalidade e a tendência à mudança — esta última tão profundamente ligada às formas emotivas do pensamento e categoria específica da lógica do irracional ou dos sentimentos — determinam a confiança nas forças obscuras da geração, colocando, na escala dos valores, acima do ser, que é a categoria olímpica ou masculina — a da ordem da hierarquia, da clareza, da inteligência, da razão — o “em ser”, a preferência pelo que não se deixa traduzir em forma coerente, a aspiração fáustica, sem pólo definido, o mundo dos desejos, a que falta a ordem da autoridade paterna, confundido ou identificado com o mundo da realidade, o frenesi dionisíaco, que procura exorcizar o demônio do tempo não pelo sentimento do eterno, mas por meios mecânicos e temporais — a velocidade, a instantaneidade, a simultaneidade. O homem moderno entrega-se ao em ser com a ilusão de ser mais do que o ser, que é para ele a morte, isto é, a objetividade, a lucidez, o reconhecimento do limite entre o mundo dos desejos e o da realidade. Pragmatismo, bergsonismo, teosofismo, espiritismo, comunismo: instrumentos de exorcismo da autoridade olímpica ou paterna, que imprime ordem, hierarquia, disciplina às tendências e paixões, que eles visam libertar da forma e da medida, ou, antes, meios de satisfação de desejos contrariados pela realidade.

O mito é o meio pelo qual se procura disciplinar e utilizar essas forças desencadeadas, construindo para elas um mundo simbólico adequado às suas tendências e desejos. O mito sobre que se funda o processo de integração política terá tanto mais força quanto mais nele predominarem os valores irracionais.  O mito da nação incorpora grande número desses elementos arcaicos. O seu contexto não é, porém, um contexto de e experiências imediatas. Ele se constitui em grande parte de abstrações ou pelo menos de imagens destituídas, pelo caráter remoto das suas relações com a experiência imediata, de uma carga afetiva a atual ou capaz de organizar e configurar, numa síntese motora, as imagens com que não está em ligação direta ou em relação de continuidade. A personalidade é um mito em que o tecido dos elementos irracionais é mais denso e compacto. As massas encontram no mito da personalidade, que é constituído de elementos da sua experiência imediata, um maior poder de expressão simbólica do que nos mitos em cuja composição entram elementos abstratos ou obtidos mediante um processo mais ou menos intelectual de inferências e ilações. Daí a antinomia, de aparência irracional, de ser o regime de massas o clima é ideal da personalidade, a política das massas a mais pessoal das políticas, e não ser possível nenhuma participação ativa das massas na política da qual não resulte a aparição de César. O mito da nação, que constituía o dogma central da teologia política sob cujo regime vive hoje uma das zonas mais volumosas e significativas da cultura contemporânea, já se encontra abaixo da linha do horizonte, enquanto assistimos à ascensão do micros solar da personalidade, em cuja máscara de Gorgona as massas  procuram ler os decretos do destino.

Aparição de César

As massas encontram-se sob a fascinação da personalidade carismática. Esta é o centro da integração política. Quanto mais volumosas e ativas as massas, tanto mais a integração política só se torna possível mediante o ditado de uma vontade pessoal. O regime político das massas é o da ditadura. A única forma natural de expressão da vontade das massas é o plebiscito, isto é, voto-aclamação, apelo, antes do que a escolha. Não o voto democrático, expressão relativista e cética de preferência, de simpatia, do pode ser que sim pode ser que não, mas a forma unívoca, que não admite alternativas, e que traduz a atitude da vontade mobilizada para a guerra.

Há uma relação de contraponto entre massa e César. Os ouvidos habituados a distinguir, à distância, o rumor das coisas que se aproximam, percebem, sob o tropel confuso das massas, cuja sombra começa a dominar o horizonte da nossa cultura, os passos do homem do destino.

Essa relação entre o cesarismo e a vida no quadro das massas é hoje um fenômeno comum. Não há, a estas horas, país que não esteja à procura de um homem, isto é, de um homem carismático, ou marcado pelo destino para dar às aspirações da massa uma expressão simbólica, imprimindo a unidade de uma vontade dura e poderosa ao caos de angústia e de medo de que se compõe o pathos ou a demonia das representações coletivas. Não há hoje um povo que não clame por um César. Podem variar as dimensões espirituais em que cada povo representa essa figura do destino. Nenhum, porém, encontrando a máscara terrível, em que o destino tenha posto o sinal inconfundível do seu carisma, deixará de colocar nas suas mãos a tábua em branco os valores humanos.

O mundo político fôra construído à imagem do mundo forense

A entrada das massas no cenário político, com seu irreprimível pathos plebiscitário e os novos instrumentos míticos de configuração intelectual do processo político, que é, de si mesmo, ou, por natureza, e racional, ou apenas suscetível de uma inteligibilidade parcial, já está exercendo sobre ele uma influência decisiva, no sentido de torná-lo cada vez mais irracional, e de latente em ostensivo o estado de violência, que constitui o potencial energético até aqui dissimulado pelas ideologias racionalistas e liberais, e do qual, em última análise, resultam as decisões políticas. Essa influência traduz-se, de modo particular, pelo divórcio, hoje confessado, entre a democracia e o liberalismo. O sistema democrático-liberal fundava-se, com efeito, no pressuposto de que as decisões políticas são obtidas mediante processos racionais de deliberação e que a dialética política não é um estado dinâmico de forças, mas de tensão puramente ideológica, capaz de resolver-se num encontro de idéias, como se se tratasse de uma pugna forense. Haveria aqui toda uma página a escrever sobre a influência da mentalidade forense e da sofística jurídica na tentativa de dissimulação ou de subtilização da substância de irracionalidade que constitui, de modo específico, a medula do processo político.

O sistema intelectual, que constitui o pressuposto ou a premissa maior inarticulada do liberalismo do século passado, construiu o mundo político à imagem do mundo forense, ampliando ao plano ou ao teatro da ação política as categorias formalistas do processo do foro, no quadro das quais se resolvem, de acordo com as premissas ou as presunçoes infantis do pensamento jurídico, por uma balança de argumentos ou por uma dialética de idéias e de razões, os conflitos submetidos à arbitragem do juiz. Para essa psicologia intelectualista, as decisões resultam exclusivamente de elementos intelectuais, a substância irracional da vontade representando apenas como instrumento passivo destinado a obedecer e executar os decretos da razão. De acordo com esses pressupostos intelectualistas é que se construiu a teologia democrático-liberal. Para esta, com efeito, a decisão política é objeto de um processo puramente intelectual, não se reservando outro papel à vontade que o de cumprir as decisões da inteligência. Daí a divisão dos poderes: de um lado o parlamento, deliberando pela técnica das discussões ou da dialética racional, de cujo funcionamento resultariam, por hipótese, as decisões políticas; de outro lado, o executivo, centro da vontade, e a que se reserva não a faculdade de tomar decisões, mas simplesmente de executar a deliberação do parlamento. A extensão desses pressupostos a todo processo democrático, e, particularmente, ao da formulação da vontade geral, dá a imagem esquemática da aplicação dos processos forenses às deliberações políticas. Há, certamente, no processo democrático, um irredutível momento de irracionalidade, que é, precisamente, o da formulação da vontade geral mediante o voto. A este momento, porém, a democracia faz preceder, como no processo parlamentar das decisões políticas, o da livre discussão, destinado a esclarecer as vontades convocadas a participar da deliberação final. A eleição, que é um julgamento de Deus, vem, assim, a revestir-se, como a decisão do juiz no processo forenses e a dos representantes do povo no processo parlamentar, de uma aparência de racionalidade, que satisfaz plenamente às modestas exigências intelectuais do sistema. Este, porém, só se completa por um pressuposto último e final, que é da existência de uma opinião pública em que as razões de um e de outro lado são cuidadosamente pesadas em vista de uma decisão racional ulterior. A técnica de formação, ou de organização, em um foro comum, do conglomerado caótico das opiniões individuais, de cuja condensação num pólo único se constitui a opinião pública, é o arsenal com que o liberalismo contribui para o aparelhamento intelectual da democracia: a liberdade de reunião, de associação, de imprensa e das demais manifestações do pensamento. Segundo o postulado liberal, o processo político, passando por essas fases de tratamento ou de elaboração forense, dá em resultado decisões conformes à razão, ou ao critério de justiça ou de verdade.

A publicidade e a discussão constituem garantias de que as decisões políticas incorporarão no seu contexto os elementos de razão e de justiça que constituem, segundo o otimismo beato do sistema liberal, o fundo inalienável da natureza humana. A publicidade e a discussão passam a ser, assim, o sortilégios mediante o qual o orfismo democrático fascina as forças ctônicas do inconsciente coletivo, submetendo-as à disciplina da razão, e operando, dessa maneira, a transformação da força em direito, e da dinâmica dos interesses e tendências em conflito em uma delicada balança de idéias, diante de cujos resultados a vontade e se inclina em reverência.

Quando o baixo profundo de Caliban interrompeu a voz de Ariel

Durante algum tempo o sistema pôde funcionar segundo as regras do jogo, porque o processo político que se limitava a reduzidas zonas humanas e o seu conteúdo não envolvia senão estados de tensão ou de conflito entre interesses mais ou menos suscetíveis de um controle racional e acessíveis, portanto, ao tratamento acadêmico das discussões parlamentares.

De repente, porém, amplia-se o quadro: o controle político tende a abranger massa cada vez mais volumosa de interesses, entre os quais o estado de conflito tende a assumir a forma da tensão polar, refratária aos processos femininos de persuasão e da sofística forense, e as zonas humanas do poder vêem aumentadas, em escala sem precedentes, a sua área, a sua densidade, e sobretudo a sua inquietação conseqüente à instabilidade das relações dinâmicas entre os  centros de interesse de cujo contato resulta, efetivamente, a centelha das decisões políticas. Verifica-se, então, que a concepção forenses de mundo, construída pelo liberalismo para uma fase eminentemente benigna de pensão ou de conflito econômico e político, de cujos estados de ênfase se compõe a substância da história, conseguira apenas dissimular, graças às formas atenuadas e à escala reduzida do processo político, a irracionalidade que é da sua essência e constitui o seu caráter específico. Sob a máscara socrática com a qual a risonha leviandade otimista do racionalismo liberal tentara dissimular aos seus próprios olhos o caráter trágico dos conflitos políticos, a própria democracia começa a perceber os traços terríveis da Górgona multitudinária e a distinguir, intervindo na ária composta para o delicado registro de voz de Ariel, o baixo profundo de Caliban entoando o encanto da sua libertação das guenas históricas do ostracismo político. Durante séculos, as forças cresceram encadeadas e em silêncio, esperando que soasse a hora com que o destino costuma advertir que é chegada a sua vez de imprimir à história o selo do seu caráter trágico e a configuração demoníaca do seu estilo. Então começa para os homens a tarefa de decifrar o enigma da ininteligível relação entre a vontade humana e a grandeza ou a envergadura dos acontecimentos que excedem os propósitos ou as intenções a que os nossos hábitos racionalistas costumam atribui-los ou imputá-los. Todas as grandezas históricas, as que mordem na terra o seu sinal indelével, têm tanta relação com vontade deliberada do homem quanto  o signo de Salomão com os insondáveis desígnios do destino.

Nós começamos a penetrar num desses climas históricos, que se encontram sob o sinal do destino. O clima das massas é o das grandes tensões políticas, e as grandes tensões políticas não se deixa resumir em termos intelectuais, nem em polêmica de idéias. O seu processo dialético não obedece às regras do jogo parlamentar e desconhece as premissas racionalistas do liberalismo. Com o advento político das massas, a irracionalidade do processo político, que o liberalismo tentara dissimular com seus postulados otimistas, torna-se de uma evidência tão lapidar, que até os professores, jornalistas e literatos, depositários do patrimônio intelectual da democracia, entram a temer pelo destino teórico do seu tesouro ou da suma teológica cuja substância espiritual parece ameaçado de perder a sua pesquisa significação.

Assistimos, então, a essa manobra de grande estilo das instituições democráticas: o seu divórcio ostensivo e declarado do liberalismo. O regime de discussão, que não conhecia limites, e passa a ter fronteiras definidas e intransponíveis. A opinião, pressuposto básico da livre discussão e do sistema de opinião, só pode exercer-se entre termos mais ou menos indiferentes, ou entre os quais não existam estado agudo de tensão, de conflito polar ou de extremada antinomia. As decisões políticas fundamentais são declaradas tabu e integralmente subtraídas ao princípio da livre discussão. O sistema constitucional é dotado de um novo dogma, que consiste em pressupor acima da constituição escrita uma constituição não escrita, na qual se contem a regra fundamental de que os direitos de liberdade são concedidos em sobre a reserva de se não envolverem no seu exercício os dogmas básicos ou as decisões constitucionais relativas à substância do regime. A opinião se demarca, dessa maneira, um campo reduzido de opção, no qual tão-somente se encontram as decisões secundárias ou os temas partidários que não interessa aos pólos extremos do processo político, exatamente aqueles em torno dos quais se organizam e concentram as constelações de interesse e de emoção de maior poder ou de mais intensa carga dinâmica. Assim, a democracia, para salvar as aparências de racionalização do sistema político, recorre, como última ratio ou como recurso de defesa dos resíduos do liberalismo, a que ela sempre me esteve tão intimamente  associada, aos processos irracionais de integração política, transformando as decisões fundamentais, sobre cuja correção não admite controvérsias, em dogma em relação aos quais, como nas ideologias políticas anti-liberais, exige, pelo menos, as marcas exteriores do assentimento e da conformidade. Eliminando do seu sistema o princípio de liberdade de opção, com a amplitude em que o havia a formulado o liberalismo, a democracia perde o seu caráter relativista e cético, traço secundário que ela devia à sua fortuita associação como a doutrina liberal, passando a ser um sistema monista de integração política, em que as decisões fundamentais são abertamente subtraídas ao processo dialético da discussão, da propaganda e e da publicidade, para serem imputadas a um centro de vontade, de natureza para o irracional como os centros de decisão política dos regimes de ditadura. A pressão determinada pelo advento histórico das massas determinou, assim, uma crise interna do regime democrático, levando-o, pelo abandono da suas premissas liberais, ao estado de permanente contradição consigo mesmo, estado este que não poderá, evidentemente, contribuir, não de maneira transitória, para manutenção dos últimos traços que ainda conserve da sua associação com o liberalismo. As condições de que resultou essa crise interna das instituições democráticas tendem, necessariamente, a desenvolver o o seu poder de decomposição dos resíduos liberais, estendendo a outros termos, entre os quais se venha a estabelecer um estado agudo de conflito, a imunidade à discussão, já decretada pela democracia em relação a certas questões em torno das quais veio a criar-se um estado mais acentuado de tensão ou de ênfase o emotiva da opinião pública. Ora, como as questões subtraídas à livre discussão  pertencem ao número daquelas sobre as quais se concentra a maior carga de interesse, as forças que se polarizam no seu sentido tendem a abrir outros caminhos suscetíveis de levar à solução  daquelas questões. Desta maneira, crescendo a tensão entre os métodos liberais da democracia e as forças a que se recusa o uso dos instrumentos democráticos, cresce, evidentemente, em correspondência com aquela tensão, a contingência, para as instituições democráticas, de recorrer ao emprego, em escala cada vez maior, dos processos irracionais de integração política. A conseqüência do desdobramento desse processo dialético será, necessariamente, a transformação da democracia, de regime relativista ou liberal, em estado integral ou totalitário, deslocado, com velocidade crescente, o centro das decisões políticas da esfera intelectual da discussão para o plano irracional ou ditatorial da vontade. É o que já se vem observando nos regimes democráticos, em que dia a dia aumenta a zona de transcrição ou de ostracismo político a que vão sendo relegadas massas de opinião cada vez mais volumosas e significativas.

A técnica do Estado totalitário ao serviço da democracia

Observa-se, ainda uma vez, no domínio político, esse estranho e obscuro processo dialético, em virtude do qual o processo de crescimento das instituições humanas além de certo limite virtual sofre uma brusca mutação em sentido contrário aos princípios que pareciam haver presidido ao seu nascimento ou às fases mais características da sua formação. No curso de algum tempo, adotada pela democracia a técnica do Estado totalitário, à qual ela foi forçada a recorrer (por mais contraditório que pareça) para salvar as suas aparências liberais, a democracia acabará por assimilar o conteúdo espiritual do adversário, fundindo-se dessa maneira em um pólo o único do as concepções do mundo tão aparentemente inconciliáveis ou antitéticas. Aliás, a crise do liberalismo no seio da democracia é que suscitou os regimes totalitários, e não estes aquela crise. A democracia havia criado, com efeito, um aparelhamento de aparência racional destinado a conduzir o processo político, sem maiores crises de tensão, a soluções ou decisões suscetíveis do mais largo e compreensivos assentimento. A irracionalidade dos seus métodos, uma vez que se ampliou a a escala dos acontecimentos e um vulto das questões, tornou-se, porém, de evidência lapidar. O princípio básico do regime liberal era, com efeito, que as questões deveriam ser propostas e discutidas perante o fórum da opinião pública, a fim de que ela  tomasse as decisões depois de suficientemente esclarecida. Enquanto a área do governo se restringia a uma reduzida a esfera de negócios, e particularmente aos mais simples e elementares, foi possível deliberar por aqueles processos ou, melhor, submeter ao voto da opinião  soluções sobre as quais já não havia divergências agudas ou conflito irritantes. As últimas conseqüência da revolução industrial criaram, porém, aos governos, novas e complexas funções, estendendo a área do seu controle de maneira a envolver na sua deliberação questões para a elucidação das quais se exigem conhecimentos técnicos e especializados cada vez mais remotos ainda à compreensão das pessoas cultivadas. A densidade e a extensão da área de governo torna, cada vez mais, inacessíveis à opinião, os problemas do governo. Enquanto se tratava de questões suscetíveis de serem colocadas em termos de sentimento ou de encontrar resposta adequada ou satisfatória na atmosfera de emoção originada dos debates públicos, ainda era possível o funcionamento do regime de opinião. Eram questões humanas por excelência, no sentido de acessíveis ao entendimento ou ao sentido geral. As questões que se encontram hoje no plano das cogitações do governo são, porém, de outra natureza. Ou são questões remotas à compreensão geral, ou estranhas ao interesse geral, por não serem suscetíveis de despertar emoções sem as quais não se estabelece nenhuma corrente de opinião pública, ou são questões que envolvem no seu seio, pelo menos em estado de latência, tais possibilidades de antagonismo ou de conflito, que propô-las ao pronunciamento da opinião seria, evidentemente, expor-se ao grave risco de provocar contra a sua decisão a resistência violenta dos interesses em cujo prejuízo fosse ela proferida, e portanto tornaria inevitável uma forma de luta que o processo democrático se propõe precisamente a evitar. De maneira que se restringe sempre mais o campo de opção reservado aos processos deliberativos característicos das democracias liberais. Cumulativamente com esses fatores, como a nova circunstância contribui para tornar o regime de opinião impróprio às funções que lhe foram atribuídas. As prodigiosas conquistas científicas e técnicas, que costumam ser um dos temas preferidos do otimismo beato nas suas exaltadas esperanças em relação à espécie humana e ao seu aperfeiçoamento moral e político, conferiram ao império do irracional poderes verdadeiramente extraordinários, mágicos ou surpreendentes. Aí está mais uma das antinomias que parecem inerentes à estrutura do espírito humano: a inteligência contribuindo para tornar mais irracional, o inteligível, o processo político. É possível hoje, efetivamente, e é o que acontece, transformar a tranqüila opinião pública do século passado em um estado de delírio ou de alucinação coletiva mediante os instrumentos de propagação, de intensificação e de contagem de emoções, tornadas possíveis precisamente graças aos progressos técnicos, que nos deram a imprensa de grande tiragem, com sua nova técnica de apresentação e de apreciação dos fatos, a radiodifusão, o cinema, os recentes processos de comunicação que conferem ao homem um tom aproximado ao da ubiqüidade, e, dentro em pouco, a televisão tornando possível a nossa presença simultânea em diferentes pontos do espaço. Não é necessário o contato físico para que haja multidão. Durante toda a fase de campanha ou de propaganda política toda a nação é mobilizada em estado multitudinário. Nessa atmosfera de contemplação emotiva, seria ridículo admitir que os pronunciamentos da opinião possam ter outro caráter que não sejam o ditado por preferências ou tendências de ordem absolutamente irracional. Já se disse das campanhas presidenciais americanas, para traduzir o ambiente desordenado em que se processam, que cada uma delas é uma libertinagem que dura quatro meses. A opinião não pode manifestar-se sobre a substância de nenhuma questão. Ela toma simplesmente seu partido, e por motivos tão remotos ou estranhos a qualquer nexo lógico ou reflexivo, que se torna inteligível ou irredutível a termos de razão o processo das suas inferências. A ainda há pouco, nos Estados Unidos, All Smith não foi eleito presidente da República pela única circunstância de ser católico, fato do qual somente por via de inferências irracionais poderia resultar a conseqüência da sua inaptidão para o governo. É sabido que na primeira eleição geral na Inglaterra, logo depois da guerra e ainda na aura emotiva que esta deixou atrás de si por muito tempo, Lloyd George conseguiu a maioria nadando como tema central da sua propaganda a promessa do enforcamento do Kaiser, circunstância da qual não se poderiam inferir que nem a sua capacidade de administrador nem os méritos de seu programa de governo.

Queremos Barrabás!

Deixemos, porém, com o maior dos exemplos, porque depois do seu nome nenhum mais poderá ser ouvido: Capítulo XVIII do Evangelho de São João. “Eles conduziram Jesus da casa de Caifas ao pretório; era de manhã. Mas, eles não quiseram entrar no pretório para não se manchar e a fim de comer as páscoa. Pilatos saiu, pois, ao seu encontro e disse: “Que a acusação tendes contra este homem?”. Eles lhe responderam: “Se não se tratasse de um malfeitor, não o teríamos trazido à tua presença”. Pilatos e exigisse: “Julgai-o vós mesmos segundo a vossa lei”. Os judeus lhe responderam: “Não nos é permitido dar a morte a ninguém” — a fim de que se realizasse a palavra e a pele que Jesus tinha dito, em indicando de que morte ele deveria morrer. Pilatos, voltando ao pretório, chamou Jesus e lhe disse: “És o rei dos judeus?” Jesus respondeu: “És tu que dizes isto ou os outros t´o disseram?” Pilatos respondeu: “É que eu sou judeu? A nação que o chefe dos sacerdotes que entregaram a mim: que fizesse?” Jesus respondeu: “Meu reino não é deste mundo; se meu reino fosse deste mundo, aqueles que me servem ter-se-iam oposto a que fosse entregue aos judeus, mas agora meu reino não é deste mundo”. Pilatos lhe disse: “És rei?” Jesus respondeu: “Tudo dizes, eu sou o rei e vim a este mundo para dar testemunho da verdade; quem é da verdade, escuta a minha palavra”. Pilatos lhe disse: “Que é a verdade?” dizendo isto, ele saiu de novo ao encontro dos judeus ele disse: “Para mim ele não tem crime. Mas a costume que eu vos entregue alguém na festa de Páscoa. Quereis que eu vou entregue o rei dos judeus?” então, todos gritaram: “Ele não, mas Barrabás!” Ora, Barrabás era um ladrão — termina o evangelista.

Deslocamento do centro da decisão política

Se os processos democráticos nunca se destinam a convencer da verdade o adversário, mas a conquistar a maioria para, por intermédio da sua força, dominar ou governar o adversário, claro é que, dadas as circunstâncias características do mundo contemporâneo, os processos de captação da maioria só podem consistir em instrumentos de utilização da substancial irracional de que se compõe o tecido difuso é incoerente e da opinião. Assim, as instituições representativas já não têm um conteúdo espiritual que sirva de pólo a um sistema de crenças essencial para garantir a duração de todas as instituições humanas. A categoria da discussão, que era um processo forjado pelo liberalismo para instrumento intelectual das decisões políticas já não comporta, pela própria natureza de que se reveste o fenômeno político, os termos entre os quais se arma a curva de tensão dos conflitos sociais e econômicos do mundo contemporâneo. As formas parlamentares e da vida política são hoje resido os destituídos de qualquer conteúdo ou significação espiritual. As próprias massas já perceberam que as tensões políticas se deslocam para outro plano de dimensões proporcionais às das forças em conflito, e que não se trata, no processo político, de resolver uma divergência de idéias ou de pontos de vista intelectuais, mas de compor o antagonismo de interesses, cada um dos centros de conflito fazendo o possível para reunir a maior massa de forças a fim de que a decisão final lhe seja inteiramente favorável.

Na própria imprensa, em que de modo mais fiel se refletem os interesses do dia, observa-se em todos países com uma indiferença crescente pelo que se passa nos parlamentos. Ninguém hoje tem dúvidas de que o meridiano político não passa mais pela sua antecâmaras ou pela suas salas de sessões. O centro de gravidade do corpo político não cai com de reina a discussão, mas onde impera a vontade. Os corpos deliberativos deixaram de deliberar. A linguagem política do liberalismo só tem um conteúdo de significação didática, ou onde reinam os professores, cuja função é conjugar o presente e o futuro nos tempos do pretérito. Para as decisões políticas uma sala de parlamento tem hoje a mesma importância que uma sala de museu. A um episódio que desenha, com traços de caricatura, a situação de perplexidade a que atingiram os parlamentos.

Um conto chinês

Conta Spender, no seu livro sobre a vida pública na Inglaterra, que em 1920 recebeu na sala de redação do seu jornal a visita de três simpáticos de inteligentes chineses que desejavam ouvir a sua opinião sobre os negócios públicos da China e particularmente sobre o impasse verdadeiramente extraordinário em que então se encontravam. Era o caso que o parlamento se achava instalado, os deputados eram assíduos, assentavam-se regularmente, falavam, tornavam assentar-se e falavam de novo. O cerimonial não deixava a desejar. Nada, porém, acontecia. Como Mr. Asquith não exercesse no momento nenhuma função oficial na Inglaterra e lhes parecesse que somente um inglês poderia dar remédio à situação, pediam a Spender que os aproximasse de Mr. Asquith, a ver se ele podia passar alguns meses em Pequim, de maneira a transmitir aos chineses a ciência ou a técnica de fazer acontecer alguma coisa num parlamento. Mas, se nada acontecia no parlamento chinês, não era, evidentemente, por falta de congenialidade dos processos intelectuais que lhe são próprios com o temperamento de uma raça tão notória e abundantemente adotada para os jogos da inteligência e a sutileza das idéias. Nada acontecia no parlamento chinês porque nada acontecia em nenhum parlamento do mundo, porque o parlamento é, precisamente, o lugar onde nada acontece e nada se decide. Mas, a política vive de de acontecimentos de decisões. Seu centro a que a decisão é juridicamente imputada nada decide, forma-se imediatamente ao seu lado um centro de decisões de fato. Assim se resolveu na própria China, sem as luzes de Mr. Asquith, o o estado de perplexidade do seu parlamento.

Na Alemanha, enquanto um parlamento em que já houve o maior número de partidos procurava inutilmente chegar a uma decisão política mediante os métodos discursivos da liberal-democracia, Hitler organizava nas ruas, ou fora dos quadros do governo, pelos processos realistas e técnicos por meio dos quais se subtrai da nebulosa mental das massas uma fria, dura e lúcida substância política, o controle do poder e da nação.

Na França, quando se trata das grandes e graves questões, em que a opção envolve riscos e abre margem ao perigo, o parlamento, numa ostensiva confissão da sua abulia, transmite os plenos poderes a um César temporário.

Como se forma a vontade dos povos

Quem quiser saber qual o processo pelo qual se formam efetivamente, há hoje em dia, as decisões políticas, contemple a massa alemã, medusada sobre a ação carismática do Führer, e em cuja mascarar os traços de tensão, de ansiedade e de angústia traem o estado de fascinação e de hipnose.

Só podem ter dúvidas sobre o áspero clima político, em cuja atmosfera carregada de tensão mal começamos a penetrar, os homens que vivem em estado de ingenuidade em relação à experiência imediata, ou num mundo de satisfação simbólica de desejos em que tudo se passa como nos contos azuis, ou no parlamento da China.

Esse mesmo estado de espírito é que julga possível realizar, por processos racionais, não só a integração política nacional, mas igualmente a internacional, ou a organização de toda a humanidade numa comunhão de interesses e de fins. Para ele, com efeito, o conceito de política é o conceito que os professores costumam dar da política nos recintos herméticos onde se fabricam modelos da realidade não à imagem desta mais à imagem dos sonhos ou dos arquétipos platônicos que a imaginação propõe aos nossos desejos. O mesmo pensamento liberal, que concebia a política interior como um conflito de idéias, suscetível de resolver-se mediante os métodos da inteligência discursiva ou da dialética forense, transpondo esse conceito para o plano mundial julgou possível realizar a organização de uma comunidade internacional, criando um Forum Mundi em que um grupo de juristas, assistido por uma equipe de técnicos, ponha e resolva em termos de razão a massa racional de motivos por força dos quais se arma entre as nações um arco de tensão política e econômica sempre mais refratário a qualquer tratamento racional ou ideológico.

Assim, porém, como o processo democrático de integração política deixou de funcionar quando cresceu em extensão e intensidade área dos antagonismos, das tensões e dos conflitos internos, nós assistimos, no domínio intelectual, avolumar-se a massa das tensões econômicas e políticas, particularmente as determinadas pela ressurreição do mito nacional e do conseqüente Estado totalitário ou estado de massas. Ao armamentismo, à luta pelos mercados consumidores e pelas matérias-primas — fatores que tendem a revestir um caráter político cada vez mais agudo — junta-se o mito nacional, cuja função, na história, foi sempre a de polarizar intensas cargas políticas, isto é, constelações dos mais poderosos motivos de antagonismos, de conflitos e de guerras. A integração política totalitária, apesar do nome, não consegue eliminar, de modo completo, as tensões políticas internas. Se conseguisse, deixaria de existir Estado, que é, precisamente, a expressão de um modo parcial de integração política das massas humanas. O que o Estado totalitário realiza é — mediante o emprego da violência, que não obedece, como nos Estados democráticos, a métodos jurídicos nem à atenuação feminina da chicana forense — a eliminação das formas exteriores ou ostensivas da tensão política. Há, porém, elementos refratários a qualquer processo de integração política. No Estado totalitário, se desaparecem as formas atuais do conflito político, as formas potenciais aumentam contudo de intensidade. Daí a necessidade de trazer as massas em estado permanente de excitação, de maneira a tornar possível, a todo momento, a sua passagem do estado latente de violência ao emprego efetivo da força contra as tentativas de quebrar a unidade do comando político. Ora, não é em vão que se libertam, em tão grande escala, as reservas de violência por tanto tempo acumuladas na alma coletiva. Essas reservas, que não podem ser restituídas ao estado de inação, precisam ser permanentemente utilizadas. De onde o fato do Estado totalitário ou nacional tender a derivar o estado de tensão interna para um estado de tensão internacional — manobra que torna possível exaltar ainda mais os fatores de irracionalidade que operaram e que continuam a garantir a integração totalitária.

Essas as forças elementares que os juristas pretendem fascinar, não com a máscara de Medusa com que o Césares paralisam o inconsciente coletivo em que se desencadeou o estado de violência pela hipnose do medo ou do terror, mas com os sortilégios de fórmulas ou de cerimônias já destituídas de qualquer significação ou substância espiritual. O processo político, assim o nacional como o internacional, tem por medula uma constelação polar, ou uma constelação em que existem, ao menos em estado virtual, dois campos nitidamente separados por uma linha ou uma zona de tensão. Esta constelação pode, em determinados momentos, apresentaram o estado de tensão atenuada, quando os conflitos, que constituem o seu conteúdo, não se armam entre termos extremos ou polares. Há, contudo, no processo político, um estado latente de violência, que pode resolver-se em estado de agressão atual. Essa passagem do estado latente ao estado atual de violência, que é uma possibilidade imanente ao processo político, é o que se verifica, com freqüência, em certas democracias, em que ao julgamento de Deus das eleições se segue, com espantosa regularidade, o julgamento de Deus das revoluções.

Toda integração política, por mais ininteligível que seja o seu processo, é sempre uma tentativa de racionalização do irracional. O irracional, porém, contém elementos absolutamente refratários a todos os processos de racionalização. Ora, o processo político, definido pela constelação polar, é eminentemente do domínio do irracional ou do ininteligível. Não é possível nenhuma integração política total enquanto o homem, definido por si mesmo como animal racional, conservar e defender, como vem fazendo com crescente veemência, o seu patrimônio hereditário. No dia em que a massa nacional fosse integrada politicamente de maneira a não deixar resíduos ela deixaria simplesmente de ser Estado, que é um conceito político, isto é, um conceito polêmico, a menos que, como entidade nacional, entrasse em relação de tensão com outras massas nacionais. De igual modo, admitir a integração política da humanidade é postular um estado apolítico do homem, porque a humanidade não poderia constituir um termo da constelação polar em falta de outro termo que pudesse entrar em relação de conflito. A Sociedade das Nações, no dia em que, como Forum Mundi, pudesse exercer a função, que lhe é atribuída, de integrar politicamente a humanidade, deixaria de ser sociedade de nações, porque não haveria mais nações ou Estados para integrar.

Amor Fati

Eu desejaria fazer as minhas despedidas com um conjunto azul. É salutar, porém, de vez em quando, olhar a realidade na face e ler na sua máscara a mensagem que o destino a encarregou de transmitirão os homens. Já soou quase simultaneamente em todos medianos a hora da advertência e do alerta. Já se ouve, ao longe, traduzido em todas as línguas, o tropel das marcha sobre Roma, isto é, sobre o centro das decisões políticas. Não tardarão a fechar-se as portas do fórum romano e abrir-se as do Capitólio, colocado sob o sinal e a invocação de Júpiter, ou da vontade, do comando, da AUTORITAS, dos elementos masculinos da alma, e graças aos quais ainda pode a humanidade encarar de frente e amar o seu destino: AMOR FATI.

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