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O fascismo vermelho e o presidente

CARLOS SOULIÉ DO AMARAL

O Estado de S. Paulo, quinta-feira, 4 de maio de 2000

Seguido de Observações de Olavo de Carvalho

Com certeza foram os árduos compromissos da rotina, os dias programados minuto a minuto por secretárias, assessores, chefes de cerimonial e agentes de segurança. A necessidade de atender urgências, cumprir protocolos, fazer discursos convencionais em cerimônias marcantes, entrar e sair de aviões guardando o zumbido de motores na cabeça, a atenção sobre alerta às intrigas das ante-salas, o esforço contínuo de afogar bocejos em sorrisos, a substituição de ministros, os 500 anos e, de novo, a substituição de ministros. Tudo isso cansa, tudo isso pesa e o presidente, frágil criatura como todos nós, não escapou das conseqüências. Sua percepção, antes atilada e rápida, dá sinais de embaçamento e de cansaço – dizem uns e outros.

Foi no 22 de abril que tudo começou. Ao comentar as depredações, invasões, tumultos e pornofonias desencadeadas pelo Movimento dos Sem-Terra (MST) no Brasil inteiro, com o olhar circunvagando entre o pasmo e o perplexo, o presidente indagou: “Essa gente tem mentalidade fascista?” A data do descobrimento teve o condão de levar o presidente, intelectual neo-hegeliano, dedicado por formação e temperamento à indagação metódica e à constatação científica dos fenômenos, a esse recente descobrimento. Ainda que interrogativo, ele percebeu, finalmente, que o MST “está descambando para a baderna” e “tem mentalidade fascista”.

Ocupadíssimo sempre, o presidente, que não é sem-terra, é, seguramente, sem-tempo. Talvez por isso não tenha tomado conhecimento dos cursos de capacitação de militantes que o MST organiza e desenvolve em todo o território nacional. Nesses cursos, as apostilas e os mestres ensinam que “apenas ocupar a terra para trabalhar é uma posição já superada”, esclarecem que “a disputa fundamental não se dá mais entre os sem-terra e fazendeiros, mas, sim, entre os sem-terra e o Estado”, e avisam que “o MST tem um projeto político revolucionário cuja meta é a conquista do poder”. Os mestres insistem que o objetivo do movimento “é ocupar os espaços que se conformam na superestrutura da sociedade” e advertem: “se alguém disser que esses espaços não devem ser ocupados por nossa organização, pois esses temas não nos competem, digamos, sem receio de equívocos, que os audazes sempre prevalecem sobre os medrosos!”

Este é o velho MST, paroleiro e quebrador, perfeitamente enquadrado na configuração do “fascismo vermelho” detectado pelo cineasta comunista Pier Paolo Pasolini, como um grupo de pressão que violenta a sociedade e o direito instituído por não ser capaz de conseguir representatividade democrática. O cineasta italiano, após a denúncia dos campos de concentração e dos crimes em massa na União Soviética durante o governo de Stalin, feita por Krushev no 20º Congresso Comunista Internacional, declarou-se “privado da esperança”. Sua referência ao “fascismo rosso” baseia-se na definição configurada pelo psicanalista e filósofo Wilhelm Reich, expulso da Alemanha pelos nazistas e, depois, pelos comunistas.

Diz Reich: “O fascismo vermelho, forma particular da peste emocional, utiliza como instrumento básicos a dissimulação, a conspiração e a cortina de ferro, que lhe permitem explorar as atitudes patológicas das pessoas simples; assim é que a peste emocional politicamente organizada se aproveita da peste emocional não organizada para satisfazer suas necessidades mórbidas.” As necessidades do MST, apoiadas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), braço político-rural da Igreja Católica no Brasil, concentram-se agora em “pegar o Malan”, como determinou Gilmar Mauro, um dos coordenadores nacionais do movimento, ao lado do ex-seminarista João Pedro Stétile (que dizem ser cunhado do bispo Tomás Balduíno, presidente da CPT). A nova meta leva os militantes a ocupar e depredar prédios do Ministério da Fazenda e do BNDES para atingir o setor financeiro do governo, espaço “que os conforma na superestrutura da sociedade”.

Na organização militarizada do MST, as ordens de comando ressoam de forma idêntica a dos nazistas antes da conquista do poder: pegar, quebrar, invadir, forçar, marchar, bloquear ou – como aconteceu em Belém, na depredação da Secretaria da Segurança Pública – “matar, matar!” O pretexto de Hitler foi o mesmo do MST, ou seja, espaço vital: terra e mais terra e mais terra. Wilhelm Reich fez uma incisão profunda no organismo do fascismo vermelho para chegar a um diagnóstico transparente: “A dissimulação, a conspiração e a subversão precedem todos os alvos políticos que são inventados para servir de biombo às atividades desses grupos, cujo único objetivo é a conquista do poder sem nenhuma finalidade social específica.” Mas o presidente demorou a entender. Tempos atrás o deputado Francisco Graziano Neto alertou o general Alberto Cardoso sobre os cursos de formação de militantes. Nenhuma providência foi tomada. As milícias se ampliaram e agora o presidente declara: “O MST ultrapassou o limite da legalidade.” Bom sinal. Os árduos compromissos da rotina e do cerimonial já não conseguem embaçar a lucidez do presidente.

Observações de Olavo de Carvalho

Uma das tendências mais cretinas da mente humana é a de inventar simulacros da realidade e depois explicar a realidade pelos simulacros. No Renascimento era moda os intelectuais explicarem o movimento dos astros pela analogia com os ponteiros de um relógio, esquecendo que o relógio é que tinha sido inventado como imitação dos movimentos celestes.

Chamo a isso “analogia retroativa”. É o tipo da explicação que não explica nada e ainda desvia as atenções dos fatos para as fantasias.

É a esse tipo de explicação que o presidente Fernando Henrique Cardoso recorre diante do fenômeno da violência crescente do MST. Chamar os comunistas de fascistas é dizer que o Sol e a Lua imitam os relógios. Ou, o que dá rigorosamente na mesma, que os rabos abanam os cachorros.

O fascismo nasceu como mera imitação nacionalista de tradicionais métodos de ação comunistas. O comunismo não precisou esperar o advento de seu simulacro fascista para ser aquilo que é: um movimento intrinsecamente terrorista, assassino e genocida. E, como o original é sempre superior à cópia, o fascismo, com todo o seu apetite por violências espetaculosas, jamais pôde competir com as realizações do seu modelo no campo da crueldade organizada. Somem as vítimas de um e de outro, e verão que, com guerra e tudo, o fascismo não conseguiu matar a quarta parte do número de pessoas que o comunismo matou em tempo de paz. E notem que nessa conta consinto em misturar fascismo e nazismo num só bloco, uma absurdidade histórica comunista inventada para inflar artificialmente a imagem do “perigo direitista”: na verdade o primeiro país agredido por Hitler tinha um regime fascista (Áustria), e na guerra houve governos fascistas pró-Eixo (Itália, Hungria, Romênia), contra o Eixo (Brasil) e neutros (Portugal e Espanha). Cadê o “bloco”? Distinguidos do nazismo e arcando somente pelos crimes que lhes são próprios, os regimes fascistas, ao lado do comunismo, são um punhado de trombadinhas da Praça da Sé em comparação com a máfia internacional das drogas.

Após ter inventado a ficção histórica do “bloco direitista” – no qual, de hipérbole em hipérbole, até mesmo as democracias capitalistas do Ocidente acabam entrando na categoria de nazifascistas –, a propaganda comunista demonizou histrionicamente o termo “fascismo” com a finalidade única de encobrir por trás dele a monstruosidade dos métodos que Lênin ensinou a Mussolini e Stálin a Hitler. O truque funcionou, a finta verbal impregnou-se na linguagem comum – e hoje, quando vemos um comunista agir como comunista, não conseguimos expressar o horror daquilo que enxergamos senão chamando-o “fascista”. Ao denunciar o criminoso, recusamo-nos a revelar sua identidade e assim nos tornamos seus cúmplices.

Não, o MST não é fascista. É simplesmente comunista. Ao chamá-lo “fascista”, o nosso presidente mostra que nem mesmo no instante em que se vê acossado pela violência comunista ele tem a coragem de se livrar do esquerdismo residual que domina sua linguagem e paralisa sua inteligência.

Mas o presidente não é paralítico só no discurso. No plano dos atos ele também conspira com seus inimigos, implorando que lhe amarrem as mãos para que nada possa fazer contra eles. A prova mais evidente é que, enquanto se queixa da violência revolucionária do MST, ele consente que o Ministério da Educação distribua, a título de literatura pedagógica, milhões de cartilhas de marxismo-leninismo que induzem as novas gerações a ansiar por violências revolucionárias ainda maiores. Durante um tempo acreditei que ele fazia isso de caso pensado, para assegurar para si uma sobrevivência política em caso de virada geral à esquerda. Agora já não acredito mais. Acho mesmo é que é desencontrado e sonso, perdido entre o que vê, o que pensa, o que quer e o que fala.

Já o governador Mário Covas não tem esses problemas. Ele tem a inteligência afiada e a língua dócil. Ele sabe o que quer e sabe usar as palavras para obtê-lo. Ele quer o apoio das esquerdas e mais que depressa lhe vem aos lábios a mentira necessária para comprá-lo. O MST, no discurso dele, surge embelezado como um justo movimento social que luta por terras para os pobres, quando os próprios documentos internos do movimento, já abundantemente divulgados pela imprensa, declaram que terras e reforma agrária não lhe servem, que o que ele quer é tomar o poder mediante uma revolução e instaurar no Brasil a ditadura comunista.

A linguagem do presidente está comprometida com o seu passado, a do governador com o que ele gostaria que fosse o seu futuro. Por isto nenhum dos dois pode dizer com honestidade e realismo o que se passa no presente.

Tocqueville e o totalitarismo

1 de maio de 2000

Mensagem de Marcelo Wick

Caro Olavo,

Resolvi comprar o livro Democracia na América após ler os seus elogios sobre ele, mas já na primeira parte, surgiu uma dúvida: Tocqueville fala que a religião protege os homens contra paixões insensatas de tudo conhecer, portanto de tudo mudar, acabando assim com a paixão pela igualdade que ameaçava a liberdade. Mas só que a religião impedia a tirania da igualdade para instaurar a tirania dos costumes. Pois eram os costumes religiosos que influenciavam as leis como a pena de morte para os adúteros, separação das crianças dos pais que não as colocavam na escola, passando a guarda para a sociedade, e até leis que proibiam o tabaco! (Code 1650).

Estas leis não eram impostas mas sim votadas pelo livre concurso dos interessados. Não acho que podemos isentar a religião neste caso, culpando só o estado civil da época, já que “O puritanismo era quase tanto uma teoria política quanto uma teoria religiosa, e que ele se confundia em vários pontos com as teorias democráticas e republicanas mais absolutas.”(Pág.43) A política e a religião eram tendências diversas, mas não contrárias. Os costumes religiosos influenciavam as leis de caráter tirânico, que eram realmente cumpridas, como mostra o autor. Como eu já li a sua apostila Humanismo e Totalitarismo,eu pergunto pro senhor: Será mesmo que as outras épocas não conheceram o totalitarismo? Com certeza era um totalitarismo em menor escala, mas não deixa de ser uma semente do totalitarismo vindouro. Será que a religião não está isenta de culpas pelo totalitarismo na América de outra época? Podemos dizer também que as leis da sociedade puritana não influenciaram em nada o totalitarismo posterior? Segundo uma dedução do próprio Tocqueville, é bem capaz, já que “As leis conservam seu caráter inflexivel,quando os costumes já se submeteram ao movimento do tempo.” Há por acaso uma data ou um período que mostra que os costumes religiosos deixaram de ditar as leis? Se há, será que durante essa transição não houve influência do espírito tirânico dessas leis sobre o novo sistema legislativo? Se a igualdade exagerada é uma ameaça à liberdade, até que ponto também é a religião? Fico por aqui, agradecendo desde já pela atenção.

Um abraço,

Marcelo Wick

kritya@bol.com.br

Resposta de Olavo de Carvalho

Sua pergunta é enormemente complicada, pois não existe “a” religião, e sim uma multidão de fenômenos diversos e às vezes heterogêneos que recebem nome. Já no próprio exemplo que você cita, o puritanismo é uma dissidência de uma dissidência, uma espécie de cristianismo de terceiro grau, e como tal evidentemente haverá pontos de semelhança e de diferença entre ele e o tronco remoto do qual proveio.

De modo geral, a idéia de um controle total do governante sobre os indivíduos só aparece realizada nos antigos impérios “cosmológicos” ~ Egito, Babilônia, China. Já em Platão (República), a vaga recordação de um Estado “perfeito” na qual parecem flutuar resíduos do modelo egípcio é projetada para o futuro, ou para um tempo abstrato: a u~topia é também u~cronia. A idéia reaparece no Renascimento, insuflada pela onda de nostalgia platônica e pitagórica. Vem tingida de três novas nuances: a ciência matematizante da natureza, a autoconfiança prometéica no poder do homem e a influência de seitas gnósticas persuadidas de que o mundo criado é o mal e deve ser substituído por um mundo inventado pelo homem. Eric Voegelin (History of Political Ideas) assinala ainda o impacto que as vitórias de Tamerlão tiveram sobre a mente ocidental, promovendo a imagem do governante todo-poderoso que, pela sua força, engenho e sorte, se coloca acima do bem e do mal (tal a origem do Príncipe de Maquiavel). A influência conjugada das seitas gnósticas e da nova mitologia do rei onipotente está na origem das idéias modernas de absolutismo e de razão-de-estado, sem as quais a possibilidade de um controle oficial sobre as vidas dos indivíduos não é sequer pensável.

Daí por diante, fica difícil distinguir, na ascensão do domínio oficial sobre os homens, o que é de origem estatal, o que vem das autoridades religiosas. O que é certo é que tanto aquele quanto estas já estavam sob o domínio de concepções que não têm nada a ver com o cristianismo tal como conhecido antes disso. Também é certo que, pelo lado oficial, o “ancien régime”, mesmo intoxicado de razão-de-estado, conservou muitas das liberdades medievais pelo menos até a Revolução Francesa. Ninguém compreenderá a brutal diferença entre a liberdade antiga e a tirania moderna se não souber que a idéia mesma de uma lei uniforme para todos os habitantes de um território nacional só se implantou com a Revolução; que, antes disso, a diversificação em direitos regionais e municipais, prerrogativas de casta, de ofício, de família, etc. era tão complexa que nenhum governante nacional podia sequer sonhar em ter sobre a população o controle que desde então se tornou coisa banal e corriqueira; é à luz de uma ilusão retroprojetiva que “leis como a pena de morte para os adúteros, separação das crianças dos pais que não as colocavam na escola, passando a guarda para a sociedade, e até leis que proibiam o tabaco“, para citar os seus exemplos, adquirem alcance comparável aos controles exercidos por governos modernos, seja ditatoriais, seja mesmo democráticos. Só a título de comparação, note que o governante mais poderoso do “Ancien régime”, Luís XIV, para formar um exército de 140 mil homens, o maior da Europa então, teve de ir pessoalmente de cidade em cidade implorar que as pessoas se alistassem, ao passo que o governo da Revolução recrutou um milhão de soldados em poucas semanas implantando o serviço militar obrigatório e a pena de morte para os recalcitrantes. Outro exemplo: até o Renascimento, os papas não tinham sequer a autoridade de nomear os bispos, que eram escolhidos por negociações locais. Outro ainda: a posição dos judeus na sociedade, durante toda a Idade Média, variava de cidade para cidade, numas vigorando sua exclusão dos cargos públicos, noutras esses cargos sendo praticamente monopolizados por eles. Não resta dúvida: o controle central é, no Ocidente, invenção moderna. À luz desse fato, não tem sentido atribuir o mesmo peso a uma lei moderna e a uma lei antiga cujo conteúdo verbal seja semelhante. A idéia mesma de uma lei uniforme para toda a nação surge por obra dos humanistas, que promovem a restauração do Direito Romano com sua concepção de unidade sistêmica, totalmente ignorada na mixórdia do direito local e consuetudinário vigente na Idade Média. Ora, sem lei uniforme é contra-senso falar de totalitarismo. Não deixa de ser elucidativo que o país europeu que mais se conservou imune a qualquer tentação totalitária, a Inglaterra, fosse também aquele que mais conservou os direitos medievais, por confusos que fossem, preferindo a confusão da variedade ao risco de uma unidade tirânica.

Que pudesse haver tiranias locais e diferenças de maior ou menor autoritarismo de época para época é um fato que não as torna de maneira alguma “sementes” do totalitarismo moderno, pois não há relação causal ou continuidade entre uma coisa e outra. Quando mais não fosse, pela razão seguinte: nenhuma dessas tiranias jamais se legitimou através de uma teoria, de uma doutrina, que pudesse permanecer após o fim do regime e influenciar as gerações seguintes. A continuidade de um “modelo” supõe a continuidade da sua fórmula ideal, e a fórmula ideal do governo absoluto só surge mesmo no Renascimento, vinda da fusão do novo modelo do déspota oriental, que enfeitiçava todas as consciências, com o princípio de ordenação racional trazido pelo direito romano e pelas novas concepções científicas. O totalitarismo no fim das contas é isso: despotismo científico. Quando Tocqueville assinala o parentesco entre o totalitarismo e a ilusão de saber tudo, ele acerta na mosca: sem a idéia da ciência total não há legislação total, nem portanto governo totalitário.

A resposta, portanto, é não. Não há em toda a história ocidental antes do Renascimento nada que se assemelhe ao totalitarismo moderno.

Conversa sobre estilo

E-mail de L. B.

28 de abril de 2000

Senhor Olavo de Carvalho,

É um grande prazer poder falar com o senhor. Depois que tomei contato com um artigo de sua autoria, na Revista Bravo!, passei a procurar por mais informações a seu respeito. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que o senhor dispõe de uma homepage? Confesso que me flagrei, a um só tempo, satisfeito e muito surpreso. Explico-lhe, a seguir, a razão de minha surpresa. As primeiras vezes que li seus artigos, logo imaginei se tratar de um grande espírito erudito. Bastou que um curto período de tempo passasse para que eu constatasse minha hipótese. A erudição, a clareza de idéias e o tom incisivamente polêmico de suas ponderações levaram-me a crer se tratar de um intelectual do nível de um José Guilherme Merquior, por exemplo. Não lhe comparo a ele, pois qualquer tentativa neste sentido seria por demais descabida. Contudo, chamou-me a atenção dois traços comuns aos dois: a erudição e o ardor pela polêmica. Estou enganado a esse respeito? Pois bem, passei a freqüentar o site que abriga seus textos, lendo muitos de seus artigos e algumas anotações sobre episódios daquilo que generosamente poderíamos qualificar de “nossa vida filosófica”. Novamente, notei a valiosa dimensão de sua obra.

Alguns comentários de sua autoria deixaram-me um tanto perplexo. Refiro-me, por exemplo, a nota que fizera ao artigo “Marilena Chauí: a segunda excomunhão de Espinosa”. Seria necessário o emprego do termo “peido”, para aquilatar as observações de Marilena? Não seria esta uma maneira muito pouco polida de iniciar um debate? Não imagine o senhor que tomei as dores desta professora. Tenho cá profundas divergências como ela, contudo cumpre lembrar que o mútuo respeito seria altamente proveitoso para elevar o nível de qualquer contenda, dentro e fora, do meio acadêmico. Chamou-me também a atenção os comentários, profundamente agressivos, que fizera sobre os professores Carlos Nelson Coutinho, Luis Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Notei um certo tom de molecagem quando o senhor mencionou que os três deveriam comemorar o aniversário de Gramsci sem se irritar com o senhor…. Creio que os professores acima mencionados sejam dignos do maior respeito. Além de serem pioneiros nos estudos sobre Gramsci no Brasil, são pessoas cuja postura democrática já ficou provada tanto nos anos em que o país vivia seu regime de exceção, quanto no presente.

O senhor poderá imaginar que estou lhe escrevendo para tomar satisfação sobre sua postura. Não se trata disso, em absoluto. Mesmo porque, sou seu admirador. Gostaria apenas de lhe propor uma reflexão acerca de sua conduta no trato com seus eventuais interlocutores. Espero que entenda minhas intenções.

Voltemos a falar sobre a maneira com a qual conduz seus debates… Creio que erudição e, se me permite o uso do termo, truculência não sejam adjetivos complementares. Aliás, seria de supor que à erudição fosse necessário a companhia da elegância, da polidez. Talvez um bom exemplo de intelectual polêmico e elegante seja Antonio Candido. Imagino que o senhor conheça a elegância com a qual ele sempre tratou seus adversários, políticos e intelectuais, durante o longo tempo que se dedicou ao debate público. Não me recordo de um fato sequer em que este grande intelectual tenha preterido a finesse e a elegância. Mesmo quando debatia com figuras adeptas de um certo ranço autoritário, como é o caso de Miguel Reale. Lembro ao senhor que nem mesmo em sua juventude – época em que os homens são mais impetuosos – lograra o uso de termos depreciativos e vulgares. Cito a esse respeito, sua contenda com Oswald de Andrade nos anos quarenta…

Agora, mudando um pouco de assunto, creio que o peso de certas colocações de sua autoria seja excessivamente inadequado. Aqui gostaria que me respondesse, se possível, a seguinte questão: no debate intelectual qualquer uma das partes envolvidas pode “provar” alguma coisa? O termo provar é adequado quando tratamos dos temas versados pelas Ciências Humanas e pela Filosofia? Creio, em minha humilde opinião, que não! Em Filosofia não se prova nada, apenas é possível refutar, contradizer certas colocações. Não se trata, como poderia o senhor imaginar, de uma discussão semântica, mas categorial. Não concorda? Gostaria muito de saber sua opinião, sobretudo porque vi um comentário seu que me chamara a atenção: “lhes provarei por a mais b que gramscismo é totalitarismo”. Como o senhor pretendia “provar” isso? Não seria mais conveniente dizer: “posso mostrar que, em certo sentido, gramscismo pode estar associado a totalitarismo”?

Caro Olavo, sou seu admirador e muito me afligiria que tomasse minhas palavras como uma provocação. Minha intenção não é essa. Gostaria que respondesse a esse e- mail – o que, muito me agradaria.

Deixo-lhe um grande abraço e aguardo, ansiosamente, por suas considerações.

L. B.

Resposta de Olavo de Carvalho

Prezado amigo,

Muito obrigado pela sua mensagem e pela maneira gentil com que se refere a meus escritos, malgrado a perplexidade que eles lhe causam. Essa perplexidade é natural, porém ela se atenuaria bastante se, em vez de medi-los pelo padrão dos escritores citados em sua carta, você os aferisse pelos meus modelos. A obra de um escritor, afinal, deve ser avaliada pelo que ele está tentando fazer, não pelo que os outros, com ou sem razão, acham que ele deveria fazer. Meus mestres de estilo, para a parte polêmica de meus escritos, foram Tertuliano, São Bernardo de Clairvaux, William Hazlitt, Léon Bloy, Georges Bernanos e Camilo Castelo Branco. São autores muito pouco freqüentados pela nossa intelectualidade acadêmica, a qual, por falta de repertório, escolhe seus modelos no jornalismo da moda, impondo assim, pela repetição fácil, um padrão de polidez fingida que acaba por passar como o único modo elegante e aceitável de escrever. São Bernardo, pregando do alto do púlpito – uma situação de discurso que me permito considerar um tanto mais solene do que um bate-boca entre acadêmicos -, dizia: “Os pregadores esforçados são como os bois que puxam o arado. Os preguiçosos vêm atrás e comem a bosta dos bois.” O dr. Antônio Cândido, que é homem fino, jamais escreveria uma coisa dessas. Por isto mesmo São Bernardo converteu multidões, enquanto o dr. Antônio Cândido só consegue nos mostrar o quanto é chique ter uma alma vacilante.

Não é de espantar que, contrastado ao modelo pó-de-arroz, o estilo de qualquer um que escreva desde a medula de sua pessoa deva parecer “truculento”. No entanto esta palavra, que já se tornou um chavão entre meus desafetos acadêmicos para qualificar meus escritos, e que nâo sem certo automatismo você emprega com o mesmo fim, é obviamente inadequada ao objeto que busca circunscrever, e denota em quem a usa – nâo me leve a mal – apenas a falta de domínio do vocabulário. Um escrito nâo pode ser truculento sem um certo pathos emocional que falta completamente às produções deste jocoso e pedagógico escriba. O que essas criaturas querem dizer no fundo é que tais escritos as assustam, mas, como não fica bem confessar temor ante a simples demonstração de verdades óbvias, recorrem ao clássico expediente dos covardes orgulhosos, que é medir a periculosidade da ameaça pelo tamanho do pavor que lhes infunde, em vez de graduar este por aquela como o fazem as almas dotadas de uma quota normal de valentia e serenidade. Nessa ótica torta e subjetivista, não há meio de distinguir entre a contundência de uma prova e a truculência do puro insulto: não podendo refutar a primeira, fingem-se de alvos do segundo, transferindo a discussão da esfera dos fatos para a das boas maneiras, onde se sentem mais a salvo. Dizer que pessoas capazes de recorrer a esse tipo de subterfúgio são “intelectuais dignos de respeito”, caro amigo, é ter uma concepção bem mesquinha do que sejam intelectualidade, dignidade e respeito.

Se fosse preciso definir com poucas palavras a maneira que adoto nos meus escritos jornalísticos – pois há outros, que requerem outras artes -,eu diria que são antes desconfortáveis ou inquietantes, na medida em que mesclam, às vezes na mesma frase, estilos e tons diversos, passando com a maior sem-cerimônia da fala nobre e solene dos juristas antigos ao deboche grosso dos humoristas populares e sambistas, da melodia sutil ao estridor das dissonâncias bárbaras (coisa que aprendi com o meu amado e idolatrado Heitor Villa-Lobos) ou fazendo mil e um outros arranjos que os doutores cândidos jamais fariam, e que faço no preciso intuito de habituar o leitor ao duplo jogo da fala e das coisas, em cuja apreensão intuitiva reside metade, não menos, da arte de aprender: de um lado, a fala é o caminho para a verdade e deve simbolizar, no seu corpo mesmo, os movimentos da mente que se interroga entre luzes e sombras, movimentos que não são jamais lineares como a demonstração lógica que ex post facto recapitula e celebra a consistência dos resultados obtidos; de outro lado, a verdade não se identifica jamais por completo com a fórmula verbal que a veicula, e o escritor, tendo sempre de deixar a parte final do serviço a cargo dos dons intuitivos do leitor, deve preparar bem o terreno para o lance decisivo, seja por meio daquelas longas oposições dialéticas que afiam a lâmina da inteligência, seja – quando não há espaço para isso, como nos artigos de jornal – por meio de paradoxos verbais que, de maneira compactada e simbólica, façam a mesma coisa. (Explico essa técnica na apostila Debates e provas, que o amigo encontrará nesta mesma homepage.) Eis como, no exíguo espaço do mais desprezível dos gêneros literários, se pode deixar in nuce um leque de demonstrações latentes insinuadas, fazendo da crônica jornalística, em vez da opinião solta que ela habitualmente é, o prefácio ou resumo de aulas e tratados, de modo que, pelo simples ruído longínquo das máquinas que se aproximam, o adversário pressinta o exército de tratores que passaria em cima de suas pobres objeções se ele tivesse – como geralmente não tem – a coragem de publicá-las. E eis a raiz da falsa – ou, em certos casos, fingida – impressão de truculência: o leitor pego em flagrante delito de falsa consciência já se sente de antemão esmagado, e, não sabendo bem explicar a si mesmo as razões de seu desconforto (pois num primeiro instante a apreensão das provas implícitas é apenas semiconsciente), busca um alívio postiço apegando-se à primeira palavra mágica que lhe pareça ter o poder de, xingando o farmacêutico, neutralizar o efeito do remédio. Mas ôôô, coitado! Quando o sujeito se entrega a esse impotente arremedo de exorcismo, é o meu feitiço que já está operando dentro de sua alma, forçando-a a assimilar aos poucos a verdade que rejeitara no primeiro impacto. Muito poucos, quando se completa o processo, têm unidade de consciência bastante para recordar como começou. Daí que aqueles que mais bufam de indignação ou se contorcem em caretas de afetado desprezo ante meus escritos sejam os primeiros a repeti-los, com outras e bem mal disfarçadinhas palavras, meses ou anos depois. Isto já se tornou rotina. Na verdade, não me ofende que, para aceitar o que aprenderam comigo, tenham de atribui-lo a si mesmos. Um professor nada poderia ensinar se não fizesse alguma concessão ao orgulho pueril dos alunos mais bobos.

Eis também como, pela simples variação do estilo, se pode habituar o leitor de boa vontade a aceitar a verdade independentemente da expressão verbal que a reveste, com a condição de que ele tenha imaginação bastante para saber que a escolha de um estilo pode ter razões que a etiqueta desconhece. É só tomando o estereótipo vigente como medida e padrão que se pode tentar caracterizar o meu estilo mediante o apelo a chavões como “agressivo”, “desrespeitoso” etc., categorias que se aplicam antes ao julgamento de trabalhos de classe em escolas primárias do que a uma conversa sobre literatura séria, onde as exigências da polidez banal devem ceder lugar a considerações mais altas. Se há de fato critérios em que minha escrita jamais aspirou a enquadrar-se, são aqueles da literatice bem-educadinha que nos anos 50 as nossas letras pareciam ter definitivamente superado graças à “truculência” de autores como José Lins do Rego, Jorge Amado e Nelson Rodrigues, e que hoje voltam a imperar com toda a força dos mandamentos politicamente corretos, chamando a polícia quando um escritor simplesmente transpõe para o gênero ensaístico e filosófico a liberdade de estilo já consolidada na literatura de ficção. E se algo poderia me deprimir ao ponto de fazer naufragar o respeito que sinto por mim mesmo enquanto escritor, seria constatar no meu jeito de escrever alguma semelhança, mesmo remota, com aquilo que nos manuais de redação jornalística e nas rodas do esquerdismo chique, especialmente uspiano, se tem na conta de bom-tom. Vade retro, Satana! O bom-tom, caro amigo, é péssimo juiz literário. Foi o apego ao bom-tom que fez Voltaire tapar suas delicadas narinas ante a “truculência” (sic) das peças de Shakespeare, predizendo que muito em breve seriam esquecidas pelo público… Note, de passagem, que o termo “truculência” não é totalmente descabido para descrever Titus Andronicus, por exemplo, e que as regras de polidez literária em que Voltaire se escudava para proferir esse julgamento eram genuínos padrões de elegância enobrecidos por uma venerável tradição literária (leia por exemplo Buffon), e não aquele receituário de inibições e macaquices que faz as vezes de elegância entre os Tonton Macoute do jornalismo nacional. Pois nem assim Voltaire acertou.

Já outros pontos de sua carta não necessitam dessas explicações para ser respondidos, porque repousam em simples erros de observação. Por exemplo, sua pergunta sobre se o uso da palavra “peido” para qualificar certas declarações de D. Marilena Chauí não seria “uma maneira muito pouco polida de iniciar um debate”. A resposta é: seria, sim. Mas no caso eu não estava iniciando nada, e sim respondendo a um insulto. Essa senhora, confessando nada conhecer de minha obra e de minha pessoa, me havia qualificado de “cafajeste”. Ninguém apela a tão pesado adjetivo sem ser movido pela raiva, e, se respondo a esse hidrófobo insulto com o meu cálculo do valor relativo dos peidos humanos e símios, quem saiba ler com sensibilidade há de notar que, em vez de dar o troco na mesma moeda, oponho à fúria histérica de minha atacante um imperturbável senso de humor. Nesse e nos casos análogos, quem quer que me chame de “raivoso” está apenas projetando sobre os meus escritos a reação mórbida que eles suscitam nas pessoas de maus bofes.

Na verdade, no caso não havia debate nenhum. Se houvesse, ele teria começado com o meu escrito “Lógica da mistificação, ou: O chicote da Tiazinha”, o qual demonstrava mediante rigorosa análise de texto o caráter mistificatório de certas exposições de D. Marilena. Em vez de responder ou corrigir-se, D. Marilena preferiu dizer que não me conhecia e no mesmo ato provar, por sua explosão de raiva, que me conhecia perfeitamente bem.

Quanto aos srs. Carlos Nelson Coutinho, Luis Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, nem é certo dizer que enquanto intelectuais “sejam dignos do maior respeito”, nem que “sua postura democrática já ficou provada”. Nenhum gramsciano pode ser digno de respeito na esfera intelectual, desde que o próprio Gramsci reduz a atividade intelectual à propaganda revolucionária e quem se presta a isso rebaixa a inteligência em geral – e a sua em particular – ao mais infame dos papéis. Ideologia é prostituição da inteligência: poses auto-dignificantes e badalação na mídia não mudam isso em nada. E não há “postura democrática” nenhuma em pessoas que, reunindo-se às dezenas para fazer a beatificação coletiva do seu ídolo pela internet, se furtam ao debate quando desafiados por um oponente solitário e ainda fazem trejeitos de dignidade ofendida quando ele lhes propõe uma simples troca de links entre as respectivas homepages, que é a coisa mais democrática do mundo. Democrático sou eu, que mesmo não retribuído coloquei na minha página um link para a deles.

Não, meu amigo, não se iluda com a fala mansa daqueles que dominam o meio acadêmico e o subjugam a ambições políticas. Eles podem falar manso porque sua fala não é expressão de sua realidade pessoal, e sim disfarce para encobri-la. O prof. Antônio Cândido, enquanto falava manso em público, não deixava de conspirar, em petit comité, para sufocar a voz de seus desafetos na tribuna uspiana. Parafraseando Theodore Roosevelt, o lema dessa gente é: Speak softly and carry a big stick.

É verdade que Antônio Cândido foi educadíssimo ao discutir com Miguel Reale na imprensa. Mas para quê ser grosseiro com o adversário, quando se pode boicotá-lo pelas costas e ainda fazer bonito aos olhos da multidão? Muita gente se deixou, no caso, iludir pela aparência. Parece que você também.

Em contraste com a máscara democrática das palavras a encobrir o autoritarismo das ações, Miguel Reale sempre foi duro ao falar dos esquerdistas, porém lhes manteve inalteravelmente aberta, ao longo de quarenta anos, a tribuna da sua Revista Brasileira de Filosofia, certamente a única, dentre as grandes revistas de cultura do Brasil, que soube merecer por inteiro o qualificativo de “pluralista”.

Mais absurdo ainda é que, ao enaltecer o tratamento polido que o prof. Cãndido deu a seu adversário, você ainda insinue que isso foi até demasiada honra para alguém que carregava o “ranço autoritário” de Miguel Reale. É isso o que eu chamo raciocinar por estereótipos da mídia, sem levar na mínima conta a realidade dos fatos.

O único “ranço autoritário” que se pode atribuir a Miguel Reale é a sua participação juvenil no integralismo, um movimento que, por mais imbecil que nos pareça hoje, sempre agiu de maneira honrada e conservou as mãos limpas de qualquer cumplicidade em ações tirânicas, tendo sido antes vítima de repressão brutal e tendo partido dele, aliás, o primeiro protesto brasileiro contra a perseguição aos judeus na Alemanha.

Não é vergonha nenhuma ter sido integralista. Vergonha é ter sido comunista. Vergonha é ter pertencido a um movimento que, após sofrer sob a ditadura Vargas perseguições idênticas às que sofreram os integralistas, ainda teve o descaramento de se tornar cúmplice de seu próprio algoz.

Eu, pelo menos, me envergonho do meu passado comunista, e contra o integralismo nada tenho a alegar exceto o pecado de babaquice.

Quanto à participação de Reale no movimento de 1964, leia, investigue, estude os atos dele como secretário da Justiça em São Paulo ou como reitor da USP, bem como as contribuições dele à legislação federal, e diga onde, como, quando esse homem atentou contra alguma das liberdades democráticas fundamentais.

“Ranço autoritário” é um chavão de fácil efeito, a que muita gente recorre quando não tem nada a dizer contra personagens que lhe desagradam.

Por fim, devo dizer que sua objeção contra as provas em filosofia ou em ciências humanas é apenas a repetição ingênua de outro chavão. Muitas coisas foram provadas, positivamente, ao longo de vinte e quatro séculos de filosofia. Porém mais numerosas ainda são as cabeças que as desconhecem e as bocas que repetem o que elas dizem. Se deixo esta discussão para outra ocasião e lugar, é porque nesta mesma homepage você encontrará lugares e ocasiões bastantes para comprovar o que digo.

Com meus melhores votos,

Olavo de Carvalho

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