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Karl Marx segundo Eric Voegelin

27 de abril de 2000

Mendo Castro Henriques, professor na Universidade Católica de Lisboa e já conhecido dos visitantes desta homepage, selecionou alguns textos inéditos compostos por Eric Voegelin para o abortado projeto de uma History of Political Ideas e com eles montou um volume, Estudos de Idéias Políticasde Erasmo a Nietzsche, publicado pelas Edições Ática, de Lisboa, em 1996. Foi portanto em português que esses textos, originalmente datilografados em inglês, se publicaram pela primeira vez no mundo. O volume saiu com uma bela introdução pelo próprio Mendo Castro Henriques e uma nota assinada pela viúva do autor, Lissy Voegelin. – O. de C.

Karl Marx (1818-1883)

por Eric Voegelin

Tradução de Mendo Castro Henriques

1.1. Marx: história e lenda.

Ao iniciar o estudo de Marx, nunca é demais acentuar que a polémica partidária dificultou o acesso à obra; muitos escritos considerados secundários permaneceram inéditos até à edição MEGA de 1927-32 e, ainda em vida, a pessoa histórica de Marx desapareceu debaixo da figura mítica. Nos marxistas da primeira geração e nos da revolução russa, cresceu a lenda que não valia a pena conhecer o filósofo precoce que, apenas a partir de 1845 desenvolvera as verdadeiras intuições no Manifesto e em O Capital, e que foi fundador da 1ª Internacional. Debateu-se, depois, se o verdadeiro Marx era o de Bernstein, Kautsky, Rosa Luxemburgo ou Lenine. Só após o Instituto Marx-Engels-Lenine de Moscovo e os sociais-democratas alemães desenterrarem os manuscritos dos arquivos começou uma interpretação séria na qual se destacam as obras de S.Landshut e J.P. Mayer Der historische Materialismus. Die Frühschriften, 2 vols., Leipzig, 1932.

Por detrás desta história de incompreensão e redescoberta está a tragédia do activista. Para passar do velho para o novo mundo, Marx exigia uma metanoia, semelhante à conversão de Bakunine mas obtida através de um movimento revolucionário. A revolução seria uma mudança radical do homem: permitiria derrubar as instituições e purificar a classe operária. Libertaria a classe oprimida da “porca miséria” (Drecke) e permitiria recriar a sociedade. Marx não queria criar primeiro o povo eleito e depois fazer a revolução: pretendia que a criação do “povo eleito” resultasse da experiência da revolução. Esta ideia é profundamente trágica porque, caso não houvesse revolução, o coração humano não mudaria. O carácter insensato da ideia permaneceria mascarado até que a experiência fosse levada a cabo. E ao contrário do que se passou com o anarquismo de Bakunine, este carácter peculiar da ideia marxiana foi agravado pela visão comunista do novo mundo.

1.2. A visão dos reinos da necessidade e da liberdade.

Marx sobressai entre os revolucionários da sua geração pelos superiores poderes intelectuais. Evoca um novo mundo mas não cai nas propostas delirantes de abolição da sociedade industrial e nas utopias socialistas. Jamais aceitaria a metamorfose comteana da tradição francesa católica dos clercs em intelectuais positivistas, desejosos de conquistar o poder temporal. Através de Hegel e dos jovens hegelianos, herdara as tradições do protestantismo intelectualista luterano, defensor da verdadeira democracia realizada em cada homem. No mundo do sistema industrial, o novo reino da liberdade resultaria da experiência emancipadora da revolução.

Esta visão não foi um apenas um episódio da juventude; permaneceu constante até ao fim da vida. Em O Capital vol.3, reflecte na grande vantagem do sistema de produção capitalista: maior produtividade e, portanto, redução do horário laboral. O homem civilizado e o primitivo têm de lutar com a natureza para satisfazer carências; nenhuma revolução abolirá este reino da necessidade natural, que continuará a crescer à medida das necessidades humanas. A liberdade neste domínio será, quando muito, a regulamentação racional do metabolismo humano. O homem socializado, der vergesellschaftete Mensch poderá controlar colectivamente este metabolismo, reduzindo as horas de trabalho e as perdas de produção e organizando os lazeres em vez de os deixar ao acaso. Só depois começa o reino da liberdade, a finalidade que não resulta da base material mas da experiência da revolução.

A distinção entre os dois reinos é bastante clara. A abolição da propriedade privada não é o fim em si mesmo e o controle colectivo só interessa para diminuir as horas de trabalho. As horas de lazer ganhas são o solo no qual o reino da liberdade poderá enraizar-se. A burguesia usa esse tempo para ócio, entretenimento recreio, jogo, divertimento. Mas será isto preencher a liberdade? Dados os conhecimentos filosóficos de Marx, por reino da liberdade dever-se-ia entender a acção concretizadora das capacidades humanas, algo de semelhante às aristótélicas scholé e bios theoretikos. O decisivo é que a liberdade não provenha da base material mas da experiência de revolução. A superação (Aufhebung ) do trabalho convertê-lo-ia em auto-determinação (Selbstbetätigung).

1.3. O descaminho de Marx 1837-1847.

De 1837 a 1847 Marx clarificou os pensamentos que tiveram a expressão tardia atrás esboçada. Após a visão, impunha-se a acção revolucionária. O reino da necessidade seria a indústria menos a burguesia. O reino da liberdade tinha de crescer por si e não podia ser planeado. Entre adoptar a existência romântica à Bakunine, ou o silêncio, optou por preparar a revolução.

1.4. Lenda do Jovem Marx.

Se Marx se sentisse obrigado a produzir uma renovatio revolucionária nos seus contemporâneos através de sua autoridade espiritual, nada resultaria excepto o seu drama pessoal. Mas bastava-lhe mover o Aqueronte no homem, para a liberdade resultar da revolução e a revolução da necessidade. Defendia um ideal de dignidade humana; mas, na acção, desprezava o homem. A revolução que derrubaria a burguesia dependeria de: 1)A análise dos factores do capitalismo que desintegravam o sistema 2) A forja da organização proletária que iria tomar o poder. Em vez de se tornar o dirigente da revolução, Marx escreveu o Manifesto como apelo à organização das forças que iriam executar a revolução inevitável. Em vez de descrever a sociedade futura escreveu O Capital, análise da sociedade moribunda. A partir de 1845 tornou-se o parteiro da revolução. E foi esta transição do fazer a revolução para o preparar a revolução que constituiu o seu descaminho. A imensidade dos trabalhos preparatórios ensombrou a experiência escatológica que motivara a visão revolucionária e a culminância no reino da liberdade.

1.5. O movimento marxista. Revisionismo.

O descaminho ensombrou a ideia mas não aboliu a tensão revolucionária. As actividades preparatórias puderam ser imitadas por quem não tinha a experiência originária de Marx, provocando a morte do espírito e da esperança de renovação num mundo novo após a revolução. Os marxistas eram quase todos almas já mortas que apenas experimentavam a tensão entre o presente miserável e o imaginado futuro radioso e que desejavam a melhoria da sorte dos operários.

O descaminho intensificou-se com a passagem do tempo. A preparação intelectual e organizacional da revolução tornou-se um modo de vida. Bernstein pôde afirmar: “O que vulgarmente se chama a finalidade derradeiro do socialismo nada representa para mim; o movimento é tudo “; e Kautsky no Neue Zeit de 1893:”O partido socialista é um partido revolucionário; não é um partido que faça revoluções“. A revolução foi transformada em evolução. Horários, salários e controles laborais poderiam ser adquiridos por legislação. A ala revisionista tornara-se um movimento de reforma social.

Se no domínio das ideias estes problemas marxistas têm pouco interesse, já no da história são importantíssimos. Para um Kautsky convicto de que revolução é inescapável, o revolucionário apenas tem de esperar que a situação esteja madura para agir. O revolucionário genuíno aguarda; o utópico faz aventuras. Este descaminho quase cómico de Kautsky aparece já no Marx de 1848-50. Até à revolução de Fevereiro, Marx esperava a grande revolução. A secção 4 do Manifesto revela esse estado de espírito: “A revolução burguesa na Alemanha será apenas o prelúdio de uma evolução proletária imediatamente subsequente“. Quando a revolução falhou, foram necessárias muitas explicações. A primeira fase do falhanço foi explicada em A Luta de Classes em França,1850; a segunda fase em O 18 Brumário de Luís Napoleão, 1852. Em 1850, no Discurso à Liga Comunista desenvolve pela primeira vez a táctica da luta de classes, cunhando a palavra de ordem “eevolução permanente”. Depois de grande intervalo escreve A Guerra Civil em França, 1871 para explicar o falhanço da Comuna. Após a morte de Marx, Engels prosseguiu estas explicações. Para a história da Liga dos Comunistas,1885 prevê a revolução para breve, efabulando a existência de ciclos imaginários de 15 ou 18 anos. No prefácio de 1895 à reedição de A Luta de Classes em França, fascinado com a existência de dois milhões de votantes sociais-democratas, Engels louva-se nos excelentes resultados dos processo legais de luta. Na expansão da Social-Democracia, vê um fenómeno semelhante ao crescimento do Cristianismo na decadente sociedade romana. Bismarck é o Diocleciano alemão. E como se vê, Kautsky podia razoavelmente considerar-se o portador do facho marxiano.

1.6. O movimento marxista. Comunismo.

O descaminho que levou à revolução comunista apresentou-se como regresso ao verdadeiro Marx. Após 1890 surgem radicais que já não aceitam o reformismo evolucionista. Lenine perante Kautsky tem a mesma atitude de Marx perante os sindicalistas ingleses. Pretende uma élite partidária, rejeita a cooperação democrática, quer a concentração do poder e despreza as massas que podem ser compradas mediante vantagens, como se vê no discurso de Genebra em 1908. Com as lições ainda frescas da revolução falhada de 1905, Lenine acentua os aspectos violentos do Comunismo. A Comuna de 1870 falhou porque não foi suficientemente radical, não expropriou os expropriadores, foi indulgente para com inimigos, tentou influenciar moralmente em vez de matar, não percebeu a acção militar e teve hesitações. Mas pelo menos lutou, demonstrando assim como lidar concretamente com o problema da revolução. A insurreição russa de 1905 mostra que a lição fôra aprendida e os Sovietes de trabalhadores e de soldados indicavam a actuação correcta .

Reconquistava-se assim a tensão revolucionária ao nível da acção no reino da necessidade. A visão marxiana aparece em parte na obra de Lenine e nas fórmulas da Constituição Soviética de 1936, através do reconhecimento de que a revolução socialista ainda não produziu o verdadeiro reino comunista. A URSS é uma união de repúblicas socialistas guiadas pelo partido comunista em direcção a um Estado perfeito, distinção que remonta à Crítica do Programa de Gotha e Erfurt, 1875. Na fase original da revolução, o comunismo incipiente compensará o trabalho de acordo com a respectiva qualidade e quantidade. Na fase superior, o trabalho já não será meio de vida mas sim a maior necessidade da vida (Lebenbedürfnis). O princípio então será, de cada um conforme a sua capacidade, a cada um conforme a sua necessidade“. Esta fórmula de Enfantin em1831, é parafraseada por Louis Blanc em 1839 e depois usada por Marx. Em O Estado e a Revolução, 1917 Lenine usou-a de modo que se tornou um dos ícones semânticos do comunismo russo. O contexto táctico da distinção reforça a visão de que o comunismo final é remoto (está a décadas de distância segundo Marx, a séculos segundo Lenine) enquanto a fase imediata é de pós-revolução. Os erros repetidos das explicações e das tácticas comunistas acerca do falhanço do milénio como passo necessário e inevitável para o respectivo advento, acabaram por cair no ridículo após a 1ª Grande Guerra, sendo estigmatizadas por Karl Kraus como o tic-tac dos tác-ticos marxistas.

1.7. Triunfo político do marxismo.

Num artigo de Enciclopédia de1914, Lenine faz curta biografia de Marx e depois expôe o Materialismo Filosófico, baseando-se no Anti-Dühring, na dialéctica em Engels e Feuerbach e na concepção materialista da história, da página famosa da Crítica da Economia Politica. Depois vem luta de classes e doutrina económica, socialismo e táctica. Não há uma só palavra sobre o “reino da liberdade” e as suas precárias realizações. Deste modo, Lenine e os leninistas recuperaram a tensão revolucionária no domínio da necessidade mas perderam-na ao nível da liberdade. A passagem do tempo obrigava-os a considerarem cada vez mais os acontecimentos históricos como passos tácticos. Após 1917 continuou a debater-se se aquela era mesmo a grande revolução, se apenas o seu começo, se deveria ser expandida no mundo, se estaria segura enquanto não fosse mundial, se poderia ser num só país, quanto tempo levaria o Estado a desaparecer,etc. Como após o triunfo russo não surgiu o Pentecostes da liberdade, surgiu a inquietação. O jogo da táctica servia para os dirigentes mas o comum não o entendia. Passaram dez, vinte anos, e o Estado não desaparecia. E a relevância doutrinária de Estaline consiste em ter encontrado um substituto para o milénio – a pátria do socialismo. A injecção de patriotismo no comunismo russo é um apocalipse substituto para massas que não podem viver em permanente tensão revolucionária. Mas a táctica do descaminho não desaparece só porque uma paragem táctica foi oferecida às massas.

2.1. Dialéctica invertida. A formulação da questão.

A dialéctica da matéria é uma inversão consciente da dialéctica hegeliana da ideia, e corresponde a processos semelhantes praticados por sofistas, iluministas e anarquistas. Sob a designação mais respeitável de “materialismo histórico” ou mesmo “interpretação económica da história e da política” é correntemente aceite e surpreende que o diletantismo filosófico de tais teorias não abale a sua influência maciça. Dialéctica é um movimento inteligível das ideias, quer na mente quer noutros domínio do ser ou, então, em todo o universo. Hegel interpretava a história dialecticamente por considerar o logos incarnado na história. No Prefácio à 2ª ed. de O Capital, 1873, afirma Marx que “o meu método dialéctico nos seus fundamentos não só difere do dos hegelianos mas é o seu oposto directo“. Na 1ª ed. declarava-se um discípulo do grande pensador contra os autores medíocres que o tratavam como um “cão morto”. Considera que na forma mistificada hegeliana, a dialéctica é glorificação do que existe. Na forma racional marxiana “explica a forma do devir no fluxo do movimento“. Ao compreender criticamente o que existe positivamente, também implica a compreensão da sua negação e desaparecimento.

A intenção marxiana de inverter (umstülpen ) Hegel, considerado como de pés para o ar, assenta numa incompreensão da dialéctica. Para Hegel a ideia não é o demiurgo do real, no sentido de “real” significar o fluxo de realidade empírica que contém elementos que não revelam a ideia. Hegel debate se a realidade empírica é apenas um fluxo ou se tem uma ordem; como filósofo, tem de discernir entre a fonte de ordem e os elementos que nela não cabem. A dialéctica da Ideia é a sua resposta a este problema. Mas Marx abole o problema filosófico da realidade precisamente antes de praticar a inversão; não inverte a dialéctica: recusa-se sim, a teorizar. Trinta anos antes mostrara na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel,1843 que compreendia o problema da realidade mas que preferia ignorá-lo. Criticara então a concepção hegeliana por não estar à altura de conceito de realidade. (Cf. notas à secção 262 de CFDH). Os filósofos têm o hábito de questionar a realidade. Em vez de deixar a essência como predicado da realidade existente, extraem-na para sujeito, “die Prädicate selbst zu Subjekten gemacht“. Mais do que censurar Hegel, Marx estava a atacar a filosofia. Os filósofos, de facto, não deixam a realidade em paz nem se conformam que a ordem seja produto do real.

2.2. A proibição-de-perguntar ou Fragesverbot.

Mas se afinal Marx compreendia perfeitamente Hegel, como revela a passagem da Crítica da Economia Política, p.lv., onde mostra que a filosofia crítica discorda de visão pré-crítica, foi talvez por desonestidade intelectual que deliberadamente se fez desentendido. É um problema de pneumopatologia: receava os conceitos filosóficos, sofria de logofobia. Engels no Anti-Dühring, ed 1919, pp.10 e ss., dissera que o materialismo moderno é dialéctico pois dispensa uma filosofia acima do discurso das ciências. Enquanto a dialéctica pesquisar leis e processos de evolução, a filosofia é supérflua. Cada ciência quer clareza no contexto total das coisas e dos conhecimentos das coisas (Gesamtzusammenhang ); mas uma ciência particular do total é supérflua e pode ser dissolvida em ciência positiva da natureza e da história. Também aqui, apenas uma pneumopatologia pode conferir sentido a estas afirmações de Engels. Os conceitos críticos conduziriam ao contexto total da ordem do ser ou ordem cósmica. Um contexto total não deve existir para o sujeito autónomo de que Marx e Engels são insignificantes predicados; a existir, é só como predicado de todos os sujeitos, nomeadamente Engels e Marx.

Atingimos aqui o estrato profundo da revolta marxiana contra Deus. A análise levaria a reconhecer a ordem do logos na constituição do ser, esclarecendo como blásfémia inútil a ideia marxiana de estabelecer um reino da liberdade e de mudar a natureza do homem através da revolução. Como Marx se recusa a utilizar uma linguagem crítica, temos de compreender os símbolos a que recorre. Marx criou um meio específico de expressão: quando atinge um ponto crítico, apresenta metáforas que forçam as relações entre termos indefinidos como se viu no já citado passo do Prefácio, p.xvii “ o ideal nada mais é que o material transformado e traduzido na cabeça do homem “. Seria uma afirmação brilhante se condensasse numa imagem o que já fôra dito de modo crítico. Mas o problema é que não existe esse contexto crítico. O que é “pôr na cabeça” ? É milagre fisiológico ? Actividade mental ? Acto cognitivo ? Processo cósmico ? Atente-se de novo na passagem da Kritik p.lv:

1ª “Na produção social dos seus meios de existência, os seres humanos efectuam relações definitivas e necessárias que são independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um estádio definido de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais“. O estilo é fraco mas passagens anteriores explicaram cada um destes termos. 2ª “O agregado destas relações de produção constitui a estrutura económica da sociedade“. Nada a dizer. 3ª “A estrutura económica da sociedade é a base real na qual uma superestrutura jurídica e política surge e a que correspondem formas definitivas de consciência social“. Por que razão é a economia a base ? Nada no texto o justifica. 4ª “O modo de produção dos meios materiais de existência condiciona todo o processo da vida intelectual, social e política“. Mas que significa condicionar ? Não se explica ! 5ª “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é, pelo contrário, o seu ser social que determina a sua consciência“.Então passa-se sem mais de condicionar para determinar ? E o que é ser e consciência ? Esta passagem célebre ilustra como Marx salta de problemas concretos de economia e de sociologia para uma especulação com símbolos não-críticos. A metáfora é um intrumento ditatorial que impede o debate. E em rigor, é impossível uma análise crítica da doutrina marxiana, porque não existe uma teoria marxiana do materialismo histórico.

2.3. Especulação pseudológica.

Então que faz Marx ? Para referirmos a sua “teorização” efectuada com uma linguagem não-teórica, podemos falar de especulação pseudológica, uma teoria aparente apresentada como teoria genuína e que supôe uma filosofia genuína do logos que pode ser pervertida. A inversão marxiana é a transformação pseudológica da especulação de Hegel. Não inverteu Hegel porque o material não é a realidade de Hegel nem o seu ideal é a ideia de Hegel. A vulgata materialista afirma que tudo é disfarce de interesses materiais (económicos, políticos, etc.). Marx era um pouco mais sofisticado. Reteve a visão de Hegel de que a história é a realização do reino da liberdade. E Engels louva Hegel que se ocupou da ordem inteligível da história mas aponta-lhhe a contradição entre a lei dinâmica da história e a insistência de que já existe o Inbegriff , o total da verdade absoluta. Censura a tentativa de interpretar a história como desdobramento de uma ideia que alcançou conclusão no presente. Reconhece, portanto, a falácia da gnose histórica: o decurso empírico da história não deve ser interpretado como o desdobramento da Ideia.

Mas Engels engana-se redondamente ao argumentar que o processo da história, por natureza, não encontra conclusão natural mediante a descoberta de uma verdade absoluta. Pelo contrário, esse seria o único modo possível de encontrar uma conclusão para o decurso empírico da história; pela mesma razão, a história não é fechada mas permanece processo transcendental. A falácia desta gnose consiste na imanentização da verdade transcendental. Se quissesse dizer a verdade, Engels deveria afirmar que o fim-da-história imanentista não pára a historia e, portanto, não deve ser usado. Mas para Engels apenas a realidade empírica tem significado como desdobramento da ideia mas sem a conclusão, um eterno fluxo de Heraclito. A realidade hegeliana do desdobramento da ideia é abolida e fica só a realidade empírica como se fosse uma Ideia. Do mesmo modo se explica a incompreensão do problema de Hegel por parte de Marx como-se-fosse deliberada. Arrasta-se o significado da ideia para a realidade, sem encontrar o problema da metafísica da ideia.

A confusão entre realidade empírica e a realidade da Ideia arrasta a dialéctica da ideia para a realidade empírica. O marxiano apresenta o filósofo como uma criança da escola que ainda acredita na conclusividade dos sistemas metafísicos. Mas então o marxismo não seria também um dia ultrapassável ? Na confusão em que Engels se move, as dificuldades deste género são ultrapassáveis pelo simples esquecimento. Cem páginas adiante, Engels reconhece que Hegel descobriu que o decurso da história é a realização da liberdade; Hegel compreendeu que a liberdade é a intuição da necessidade.”A necessidade é cega apenas enquanto não compreendida“. A liberdade da vontade é apenas a capacidade de tomar decisões baseadas em conhecimentos (Sachkentnnis). E a liberdade progride com as descobertas tecnológicas. A máquina a vapor é a promessa da “verdadeira liberdade humana“. Que a incarnação do logos seja substitida pela máquina a vapor é bem um sintoma da indisciplina intelectual de Engels, na qual se conjugam várias tendências da desintegração ocidental.

1. A gnose de Marx-Engels difere da de Hegel apenas por afastar um pouco o fim-da-história, para abarcar a curta etapa da revolução.

2. Como só a forma da conclusão intelectual é de Hegel, não a substância, o intelecto programático torna-se o portador do movimento. Há um salto revolucionário para a natureza revolucionada do homem. Elimina-se o bios theoretikos. Só fica o conhecimento do mundo exterior. Quem conhecer o problema do propósito que causa indecisão, será livre. E Lenine, que se baseia mais em Engels do que em Marx, louva aquele no artigo de Enciclopédia em1914 sobre Os Ensinamentos de Marx por transformar a coisa-em-si em coisa-para-nós. É a destruição da substância humana.

3. A fórmula de que a liberdade consiste no domínio do homem sobre a natureza e sobre si próprio, lembra as posições de Littré, Mill e de outros intelectuais positivistas e liberais que são fontes de Engels. Há bastante espaço entre as capas do livro para desenvolver esta especulação pseudológica. Apesar de ter dissolvido a existência humana, Engels ocupa-se da moral cristã-feudal, burguês moderna e da moralidade proletária. Não existe outra ética absoluta a não ser o sistema proletário, tema maior daEndgültigkeit como sistema moral de sobreviver no fim.

2.4. Inversão.

Vimos de que modo o ataque anti-filosófico marxiano, estabelecendo a realidade empírica como objecto de investigação, utiliza um meio linguístico especial; a destruição logofóbica dos problemas filosóficos. Dentro do novo meio de expressão, nada se inverte; a gnose hegeliana é traduzida em especulação pseudológica. A inversão surge numa terceira fase em que o resultado das duas primeiras operações é construido como uma interpretação dos reinos do ser a partir da base da hierarquia ontológica.

Para analisar esta tarefa de Marx, seria aqui necessária uma filosofia da cultura. Seria preciso explicar: 1) A natureza dos fenómenos culturais; 2) Que tais fenómenos podem ser considerados a partir de uma base da existência, por exemplo, a matéria; 3) E finalmente, o que é esta base da existência. Marx só fornece a fórmula de que a consciência é condicionada pela existência. Surgem ainda passagens sobre “ideologia”. KPO pp.lv e ss. As revoluções começam na esfera económica e arrastam a superestrutura. Se isso significa que o conteúdo da cultura mais não é senão luta pelo domínio da esfera económica, não é verdade.

Em relação à base do fundo da existência, veja-se a nota 89 de O Capital, 1 sobre a tecnologia. A história dos elementos produtivos é mais relevante e mais fácil que a história das plantas e dos animais de Darwin porque, como afirma Vico, foi o homem que fez a história do homem. A tecnologia revela o comportamento do homem perante a natureza e portanto as concepções mentais, geistigen Vorstellungen, que delas provêm. É também mais fácil encontrar o cerne terreno das religiões, do que ir pelo caminho oposto e desenvolver as formas tornadas celestiais,”verhimmelten Formen” fora da relação com a vida. Um dos defeitos do naturwissenschaftenlichen Materialismus é excluir o processo histórico. Marx critica pois a história psicologizante que se reduz aos motivos terrenos das religiões. As religiões têm motivos económicos, como se lê no Anti-Dühring, p.31: é preciso um princípio. E são estas as ideias que abalam o mundo?

 

 

A loucura triunfante

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 27 de abril de 2000

Durante décadas, a esquerda acreditou que havia neste país duas burguesias: uma nacionalista, empenhada em desenvolver a nossa economia; outra, aliada aos interesses norte-americanos e decidida manter o Brasil na condição de fornecedor de matéria-prima barata. A estratégia era portanto simples: aliar-se com a “burguesia nacional” contra o imperialismo.

A fórmula de Luiz Carlos Prestes, do agrado de Moscou que então advogava uma linha de luta eleitoral pacífica, tinha a vantagem de tornar o comunismo palatável a muitas famílias de ricaços e de abrir assim aos comunistas o acesso a altos postos no governo.

Na década de 60, a aliança rompeu-se. A incapacidade dos “burgueses progressistas” para reagir contra o golpe militar deixou os comunistas órfãos e eles entraram num surto de autocrítica do qual a estratégia de Prestes emergiu desfeita em cacos. O livro de Caio Prado Jr., A Revolução Brasileira, publicado se não me engano em 1969, teve um formidável impacto desagregador. Ele alegava que não havia burguesia nacional nenhuma, que eram todos uns malditos imperialistas. Logo, o melhor era mandar a estratégia eleitoral às favas e partir para a luta armada, conclusão endossada por um livreto infame, também de muito sucesso, Revolução na Revolução, de Régis Debray. Tudo parecia muito científico, mas deu no que deu.

Os anos seguintes foram marcados pelo estancamento das fontes francesas, pelo desmantelamento do comunismo no Leste Europeu e pela formidável ascensão da “nova esquerda” norte-americana, que tão bem soube se aproveitar dos movimentos de direitos civis e juntar suas forças com a avassaladora onda psicótica da New Age que ia dissolvendo, um por um, os pilares da cultura tradicional norte-americana. Somou-se a isso a disseminação das idéias de Antonio Gramsci, o fundador do Partido Comunista Italiano, que em vez da tomada violenta do poder por uma organização monolítica pregava a lenta penetração da esquerda na administração estatal e nos órgãos formadores da opinião pública por meio de redes flexíveis de colaboradores informais. Ao mesmo tempo, as nações ricas começavam a implantar o projeto de globalização e governo mundial, causando revolta entre os nacionalismos, mas, sobretudo, atraindo o concurso de ambiciosos intelectuais esquerdistas de todos os países, que, na esperança de aplicar a estratégia de Gramsci em escala global, iniciaram a “longa marcha” para dentro dos organismos internacionais, onde hoje reinam soberanos sobre os “movimentos sociais” plantados por engenheiros comportamentais no Terceiro Mundo e sobre os programas educacionais que vão moldando a mente da Humanidade futura.

A esquerda brasileira assimilou confusamente essas transformações, endossando a esmo os slogans dos novos movimentos sociais globalistas – feminismo, gays, “minorias raciais”, etc. -, e enxertando-os, aos trancos e barrancos, no ideário híbrido onde reminiscências da guerrilha já se mesclavam absurdamente a apelos nacionalistas herdados da aliança com a “burguesia progressista”.

Por isso é que hoje nossos esquerdistas podem, ao mesmo tempo, bufar de indignação patriótica ante o leilão de empresas estatais e inflamar-se de entusiasmo belicoso no apoio a protestos grupais divisionistas, insuflados por organizações estrangeiras para debilitar o poder nacional. Por isso é que podem berrar contra o “desmanche do patrimônio nacional”, ao mesmo tempo que aderem fanaticamente a uma visão afro-indigenista da História que resulta em negar a legitimidade da existência do Brasil enquanto nação. Por isso é que podem clamar contra a política do FMI e servir às organizações que lhe dão suporte no plano cultural e psicossocial. Por isso é que podem, ao mesmo tempo, querer salvar a economia e destruir o País.

Nossa esquerda, em suma, enlouqueceu. Mas enlouqueceu enquanto subia na vida. Encontrando as portas abertas pela omissão covarde de todas as outras correntes de opinião e pela ajuda de empresários idiotas que repetem às tontas “o comunismo morreu”, a esquerda colhe hoje os louros de 30 anos de “longa marcha”, imperando sobre os meios de comunicação, sobre o aparelho educacional e sobre a administração pública, repetindo, do alto do pódio, seu discurso monológico e insano. Ela nunca teve tanto poder e tanto medo.

Ela tem todos os meios à sua disposição: mas já não tem nada a transmitir exceto os germes de sua decomposição intelectual.

Foi o contágio da loucura esquerdista que transformou os festejos dos 500 anos numa palhaçada grotesca e masoquista. É ele que está no fundo de toda a angústia e a incerteza da vida brasileira hoje em dia.

Drogas e prioridades

Olavo de Carvalho

Folha de S. Paulo, segunda-feira, 24 de abril de 2000

O dr. José Carlos Dias, ao sair do Ministério da Justiça alertando o governo para “não transigir com os reacionários e a direita”, mostrou que estava no cargo menos para combater o tráfico de drogas do que para fazer política de esquerda. Que esses objetivos fossem conflitantes, nada mais natural: a esquerda fez a apologia das drogas desde a década de 60 e é moralmente responsável pela disseminação do vício. Se, passados quarenta anos, a troca de gerações no poder eleva um esquerdista à posição de repressor oficial do tráfico, ele pode até se esforçar para dar uma aparência verossímil ao seu desempenho, mas acabará se traindo mais dia menos dia e confessando que sua luta não era contra os traficantes e sim contra “a direita”. De fato, como poderia desejar mover guerra ao tráfico um adepto confesso da liberação das drogas? E o ex-ministro não se limitou a suportar como formalidade incômoda seu papel de comandante nessa luta, mas arrogou à sua pessoa o controle dos meios práticos de combate, condenando as iniciativas independentes. Como explicar o ciumento apego desse homem ao comando de uma guerra que declaradamente não era a sua, exceto pela hipótese de que ao assumi-lo ele tivesse outros objetivos, mais discretos e a seu ver mais relevantes?

Para um esquerdista, a luta ideológica é tudo. Todos os demais objetivos e desejos humanos, por mais elevados e urgentes, devem ser subordinados a essa exigência primeira, única e obsediante: derrubar a democracia capitalista, instaurar em seu lugar o império da nomenklatura. O combate às drogas não constitui exceção. Se nas circunstâncias do momento ele serve acidentalmente ao supremo objetivo político, pode até ser usado. Se é inútil ou indiferente a esse fim, deve esperar pacientemente na longa fila de prioridades. E se por acaso se opõe aos intuitos revolucionários, deve ser substituído pela propaganda das drogas e pela resistência a todo esforço repressivo, como o foi nos anos 60 e 70. Os esquerdistas, enfim, não têm nada contra ou a favor das drogas: simplesmente servem-se delas ou da sua repressão conforme lhes convenha.

Não estou pondo em dúvida a moralidade pessoal do ex-ministro, estou apenas dizendo aquilo que sempre disse: que não existe nem pode existir esquerdista intelectualmente honesto, que esquerdismo é, por definição, desonestidade intelectual. Essa desonestidade pode permanecer disfarçada durante algum tempo, mas desponta em toda a plenitude da sua feiúra sempre que um esquerdista sobe a um cargo de poder no “Estado burguês”: aí não é mais possível esconder a dupla lealdade que o compromete, de um lado, com a defesa do Estado, de outro, com a sua destruição. Por mais elevada que seja sua intenção, ele terá de apelar a todas as complacências dialéticas de uma moralidade frouxa para se acomodar a uma condição objetivamente contraditória. Ninguém pode passar por isso sem se corromper interiormente e sem espalhar no ambiente os germes da sua inconsistência. Ser esquerdista, nessas horas, é necessariamente incorrer na maldição bíblica: bilinguis maledictus, maldito o homem de duas línguas.

Isso tornou-se patente não só no caso do ex-ministro Dias como também no do ex-subsecretário da Segurança do Rio de Janeiro, Luís Eduardo Soares, criatura bifronte, que com uma de suas cabeças perseguia os policiais envolvidos com o tráfico e com a outra dava respaldo ao amigo banqueiro para ajudar um traficante a estudar guerrilha. A explicação do aparente paradoxo reside, como sempre, na unidade do critério ideológico subjacente às ações opostas: há um tráfico bom e um tráfico mau. O mau é aquele que se alia a velhas elites policiais comprometidas com o passado, com o regime militar e, numa palavra, com a “direita”. O bom é aquele que almeja fazer parceria com os guerrilheiros de Chiapas para armar no Brasil a maior guerra civil de todos os tempos e instaurar aqui o “reino de Deus na Terra”, que é como Frei Betto, uma indiscutível autoridade em assuntos celestes e terrestres, denomina o regime cubano. A Banda Podre não é podre por ser podre, mas por ser “de direita”. A podridão esquerdista é pura e sem mácula como uma hóstia consagrada. Confirma-o a beatificação de João Moreira Salles, celebrada na Sala da Cinemateca pela fina flor do radicalismo chique quando do lançamento do filme “Notícias de uma Guerra Particular”, um ataque moralista ao hediondo costume que os policiais têm de atirar nos traficantes que atiram neles. Contra esse modo “militaresco” (sic) de lidar com os pobres e oprimidos capitães do tráfico, o seráfico cineasta propõe um método alternativo mais humano e cristão: dar-lhes dinheiro para que vão ao Exterior aprimorar seus conhecimentos da técnica de matar.

Perseguir os traficantes, ajudá-los ou simplesmente esquecê-los é, pois, para a mentalidade esquerdista, uma simples questão de oportunismo. Prioridade, mesmo, só existe uma: eliminar a execrável “direita”, seja com a ajuda dos traficantes, seja a despeito deles, seja enterrando-os na mesma cova com os “reacionários”. O ex-ministro Dias pode, na sua imaginação subjetiva, ter tentado levar a sério o papel de supremo-comandante do combate às drogas. Mas seu velho comprometimento ideológico, mais durável e exigente que as obrigações passageiras de um cargo público, acabou por prevalecer. Outro tanto passou-se na alma do Dr. Luís Eduardo Soares.

Se fosse possível existir um esquerdista intelectualmente honesto, esse homem de exceção compreenderia que a erradicação do flagelo das drogas é um objetivo que deve estar acima de toda picuinha ideológica, que esquerdistas, direitistas e quantas mais facções políticas existam devem unir-se incondicionalmente numa guerra qual depende a salvação das futuras gerações. Mas esse homem não é o ex-ministro Dias, como também não é o dr. Soares.

13 de abril de 2000

Apêndice

Apelo dramático ao sr. Caio Aguilar Fernandes

“No mínimo confusas as idéias do sr. Olavo de Carvalho (“Drogas e prioridades”, Folha de S. Paulo, 24 de abril de 2000): abusando da adjetivação e de generalizações mancas como argumento de autoridade, vincula a esquerda nacional à disseminação das drogas na atualidade. Nada mais intelectualmente honesto que isso.”

Caio Aguilar Fernandes
( Ribeirão Preto, SP)

“Painel do Leitor”, Folha de S. Paulo, 25 de abril de 2000.

Nota de Olavo de Carvalho

Se alguém conhece o signatário da coisa acima reproduzida, favor solicitar-lhe que forneça, para alívio do perplexo e inconsolável autor do artigo mencionado, os seguintes itens:

  1. Lista das confusões que observou no artigo e provas de que elas estão no texto, não na cabeça do leitor.
  2. Lista dos adjetivos sobrantes, e razões pelas quais os referidos seriam dispensáveis.
  3. Lista das generalizações mancas e provas de que mancam.
  4. Explicação de como uma generalização afirmada pelo próprio autor de um texto pode ser ao mesmo tempo um argumento de autoridade invocado por ele.

1 de maio de 2000

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