Yearly archive for 2000

Ainda Sacco e Vanzetti

Olavo de Carvalho

Zero Hora (Porto Alegre), 8 de outubro de 2000

Como alguns leitores me escreveram mostrando curiosidade sobre as coisas que eu disse do episódio Sacco e Vanzetti, vou dar aqui mais algumas informações. A importância do caso não é só histórica. O mito Sacco e Vanzetti é um dos fundamentos da credibilidade da esquerda no imaginário popular, e aliás foi inventado exatamente para isso. Tal é o motivo da ira com que o “establishment” esquerdista reage a toda investigação séria do assunto: se você deixa de acreditar na inocência ultrajada de Sacco e Vanzetti, deixa de acreditar em muitas outras coisas em que ele precisa que você acredite.

Quem inventou a lenda não foi propriamente Willi Münzenberg. Foi Fred Moore, um advogado cocainômano que trabalhava para o Comitê de Defesa organizado pelos anarquistas. Quando Willi Münzenberg se apossou do Comitê em 1925, foi com o objetivo de angariar simpatias entre a população imigrante, acumular autoridade moral para a esquerda e extorquir dinheiro. Ele chegou aos EUA investido dessa precisa missão e logo percebeu o potencial do caso. O fato de os acusados serem anarquistas e não comunistas cabia como uma luva na “política da retidão”. O processo já ia perdendo interesse da mídia, mas Münzenberg o ressuscitou em grande estilo, fazendo dele um espetáculo de escala mundial. Passeatas, congressos e coletas foram organizados por toda parte, de Paris a São Paulo. Em Montevidéu a massa reunida ameaçou matar o cônsul americano se os apelos da defesa não fossem atendidos. Até hoje, de tempos em tempos, a máquina é reativada. Só na década de 70 apareceram, até onde sei, dois musicais, um filme, uma tela de Ben Shahn exposta no Whitney Museum e duas canções, uma de Woody Guthrie, outra de Ennio Morricone, interpretada por Joan Baez.

A própria magnitude desse aparato desmascara a tese da conspiração capitalista armada para condenar inocentes militantes. Pois a lenda da inocência ultrajada sempre teve a seu lado toda a força do capital e da mídia, sem que nada de comparável se erguesse em favor da versão da promotoria, que só subsistiu em livros e teses universitárias fora do alcance da multidão.

Um desses livros foi “Tragedy in Dedham”, de Francis Russel (1962). Mas livros nada podem contra musicais, filmes, discos e passeatas, que acabaram produzindo a absolvição “post mortem” assinada em 1977. Em 1986 Russel voltou à carga, trazendo uma novidade temível: o último sobrevivente do Comitê, um militante anarquista de nome Ideale Gambera, deixara uma declaração assinada, registrada em cartório e lacrada, para ser aberta após sua morte, que veio a ocorrer em 1982. O novo livro de Russel, “Sacco and Vanzetti: The Case Resolved” baseava-se nesse documento, no qual Gambera confessava que todos os membros do Comitê estavam cientes da culpabilidade de Nicola Sacco e decidiram mentir em prol da causa.

O próprio Sacco, autor do disparo fatal contra o guarda da fábrica de sapatos em Braintree, mentira o tempo todo, pois sabia que Vanzetti fôra apenas testemunha do crime. Só que, para inocentar o companheiro, Sacco precisaria admitir sua própria culpa, desmontando a farsa. O esforço de sustentar a mentira sob pressão foi a causa das sucessivas crises psicóticas que acometeram Sacco e da tentativa de suicídio que o levou ao hospital em 1923. Vanzetti, por seu lado, não mentiu ao alegar inocência, e sim ao recusar-se a delatar seu execrável amigo. Foi homem digno, que se tornou cúmplice “ex post facto” por lealdade à causa anarquista, mas também pelo sentimento de auto-exaltação histérica que lhe inspirava inflamados discursos sobre seu próprio heroísmo. No caso dele pode-se falar, sim, em inocência sacrificada: mas ela foi sacrificada no altar da propaganda esquerdista.

Essas revelações, no entanto, são inócuas contra a força onipresente da indústria de espetáculos. Também não bastou para desfazer a lenda, a partir de 1992, a abertura dos arquivos da KGB (depositária dos documentos de suas antecessoras, GPU e NKVD), que revelou o lado financeiro da encenação. Sacco & Vanzetti tornaram-se de fato uma próspera empresa, mas pouco benefício receberam dela: do meio milhão de dólares coletados pela campanha de Münzenberg ao redor do mundo entre 1925 e 1927 (uma fortuna monstruosa, para a época), o Comitê de Defesa recebeu apenas 6 mil dólares. O resto foi financiar serviços de espionagem. O sucesso da operação elevou às nuvens a credibilidade de Münzenberg ante o governo soviético e lhe valeu a promoção para a chefia da cadeia de jornais e estúdios de cinema comunistas em Paris, cargo no qual ele viria a organizar a rede de “companheiros de viagem” europeus, tornando-se virtualmente o diretor de cena no teatro de fantoches que foi a vida intelectual européia na década de 30.

Da piedade ao orgulho

Olavo de Carvalho

Época, 7 de outubro de 2000

O trajeto do catolicismo de esquerda termina na beatificação do Mal

“Lênin era completamente indiferente ao sofrimento humano, que só o comovia quando apto a sublinhar seu ódio ao capitalismo.” Quem diria que essa observação de Franz Borkenau sobre o inimigo jurado do cristianismo viria um dia a poder aplicar-se, ipsis litteris, aos sacerdotes da Igreja de Cristo?

No entanto, quem ler as declarações de certos bispos brasileiros nos últimos anos haverá de reparar que, nelas, a piedade e a compaixão, longe de ocupar o centro e o topo de seu universo de valores, estão sempre subordinadas a um projeto político, reduzidas a instrumentos e adornos retóricos da luta de classes: não é qualquer sofrimento que merece a atenção dessa gente – é só aquele que, exposto, sirva para despertar o ódio e a revolta contra o governo, os ricos ou o FMI.

Isso é empiricamente verificável por simples análise textual, e basta para comprovar que tais indivíduos não são cristãos nem mesmo num sentido remoto e figurado da palavra. São simplesmente comunistas. São movidos pela mesma ambição milenarista que tornava Lênin tão insensível ao padecimento alheio quanto sensível às oportunidades de aproveitá-lo politicamente.

Compaixão é sofrer junto, é partilhar de uma dor que nem sempre se pode aliviar. É afeição que não entra em nosso peito sem trazer consigo a lembrança de nossa fragilidade, portanto a exigência incontornável da humildade e da paciência. Um dos atrativos mágicos do socialismo é justamente a perspectiva de nos libertar desse sentimento constrangedor, absorvendo-o e superando-o na síntese moral de um serviço prestado à História. O Bem, aí, identifica-se com a vitória sobre o presente, com a criação do “mundo melhor”. A convicção de servir ativamente a esse Bem infunde no homem tamanho amor-próprio que ele já não precisa das virtudes passivas, restos sombrios de uma era de submissão e impotência.

Por isso o comunista não se deixa afetar pelo sofrimento de seus contemporâneos. Ele já lhes deu o que há de melhor: sua luta pelo futuro, sua promessa de construção do socialismo. Que mais poderiam exigir?

Com as velhas virtudes abandonadas, vai embora também a consciência de culpa – e o neovirtuoso, com a maior naturalidade, subtrai-se aos julgamentos humanos. Aponte-lhe os pecados, e ele não verá em você senão a obstinação do Mal antigo que resiste ao advento do novo Bem. Já não há outro pecado no mundo senão o “reacionarismo”: quem está livre deste é puro por definição e eternamente imaculado e imaculável, faça o que fizer.

É por isso que o saldo de 100 milhões de mortos e a miséria indescritível criada pelas economias socialistas não abalam em nada a boa consciência esquerdista, imersa de uma vez por todas numa atmosfera embriagante de autobeatificação que transfigura em expressões supremas do Bem e do amor todos os crimes e desvarios: L’amour en action voilà la révolution. É também por isso que com tanta desenvoltura a mais anticristã das ideologias se adorna do encanto residual de um cristianismo em dissolução. Esse fenômeno encontra sua cabal explicação, com séculos de antecedência, na fórmula de Agostinho: “Todos os vícios se apegam ao Mal, para que se realize; só o orgulho se apega ao Bem, para que pereça”.

É dos pastores desse novo culto que o rebanho foge, buscando abrigo nas igrejas evangélicas.

Socialismo e cara-de-pau

Olavo de Carvalho


O Globo, 7 de outubro de 2000

Um dos mais notórios apóstolos do socialismo nestas plagas, cujo nome não declinarei para que não digam que é perseguição, gabava-se outro dia de que a esquerda sempre foi a primeira a reconhecer o fracasso da URSS.

Quatro décadas de experiência não bastaram para me habituar à cara-de-pau esquerdista. Ainda me surpreendo quando, batendo nela com os nós dos dedos, ouço o inconfundível “toc-toc” da madeira velha. Como os livros anticomunistas foram desaparecendo de circulação desde os anos 60, enquanto seus contrários abarrotavam cada vez mais as prateleiras das livrarias (mostrando que a censura extra-oficial das patrulhas foi muito mais persistente do que a censura governamental), é uma delícia, para essa gente, poder falar à platéia jovem com a plena segurança de que ela ignora tudo da história do socialismo, ou pelo menos de que só a conhece pela versão conveniente.

Nenhum sujeito com menos de 50 anos conhece hoje os nomes de Viktor Kravchenco, Walter Krivitsky, Elizabeth Bentley, Whittaker Chambers. Se os conhecesse, saberia a que prodígios de falsificação e difamação organizada a esquerda pôde chegar para ocultar a divulgação de qualquer notícia que pudesse manchar a santa imagem do comunismo.

Kravchenco, um exilado russo em Paris, publicou em 1946 o primeiro testemunho detalhado sobre os campos de concentração soviéticos. Imediatamente ergueu-se contra ele o vozerio maciço da intelectualidade francesa – numa gama que ia do comunista Roger Garaudy e seu “companheiro de viagem” Jean-Paul Sartre até as revistas católicas “Esprit” e “Témoignage Chrétien” (pois na França os Boffs & Bettos já abundavam naquela data) – para acusá-lo de ser um mentiroso a soldo da CIA. Homem simples, Kravchenco enfrentou com brio a assembléia de vacas sagradas, processando seus detratores e trazendo para diante do júri dezenas de ex-prisioneiros, entre os quais Margarete Buber-Neumann, neta do eminente filósofo Martin Buber, que confirmaram de ponta a ponta seu depoimento. Sartre et caterva foram condenados a pagar indenização, mas o vencedor, velho e extenuado, morreu logo depois da batalha. Então foi fácil para seus inimigos fazer baixar sobre o caso uma pesada e durável cortina de silêncio. O livro de Kravchenco, “Escolhi a liberdade”, é hoje impossível de encontrar exceto em sebos.

Whittaker Chambers e Elizabeth Bentley, ex-agentes do Comintern, descreveram as operações secretas de que tinham participado nos EUA, deixando claro que o Partido Comunista americano e sua rede de colaboradores informais nos meios elegantes não eram senão uma fachada da espionagem soviética. O establishment universitário fez o possível para desqualificar os depoimentos de ambos, ainda que confirmados pelo de Krivitsky, um general com alto posto na NKVD que fugiu para o Ocidente e, logo após contar o que sabia, apareceu morto a tiros num hotel em Washington, sendo sua memória sepultada sob densas camadas de material acadêmico difamatório. As memórias de Chambers, “Witness”, um dos mais belos livros da língua inglesa, desapareceram dos catálogos das editoras.

Após o fim da Guerra Fria, os governos ocidentais suspenderam todo esforço sistemático de propaganda anticomunista. A esquerda, em vez de retribuir o gesto cavalheiresco, aproveitou-se da trégua unilateral para consolidar sua posição nos meios intelectuais. Nas décadas de 70 e 80, a produção de teses anti-Kravchenco, anti-Chambers etc. foi tão intensa que, na entrada dos anos 90, a doutrina de que a esquerda americana era puramente autóctone e sem qualquer ligação significativa com a URSS podia se considerar triunfante. Então… Bem, então veio a queda da URSS e a abertura dos arquivos da KGB. Aí houve choro e ranger de dentes. Toneladas de telegramas, de bilhetes cifrados, de ordens de serviço, de recibos milionários vieram à tona. Hoje não é mais possível ocultar: cada palavra de Kravchenco, de Krivitsky, de Bentley, de Chambers era verdade, assim como as de Robert Conquest, o primeiro historiador científico dos Processos de Moscou, fartamente difamado entre seus pares. O estado de espírito atual, entre acadêmicos que estudam o assunto, pode ser resumido nos títulos de dois livros de pesquisadores que mergulharam a fundo nos arquivos de Moscou. O primeiro é o de John Lewis Gaddis, publicado pela Oxford University Press: “We now know”, “Agora nós sabemos”. O segundo é o de Richard Gid Powers (Yale University Press), “Not without honor”, “Não sem honra” – o reconhecimento de que o anticomunismo americano não foi uma sórdida campanha de mentiras, mas um sério esforço de fazer prevalecer a verdade sob o fogo cerrado de um exército mundial de prestigiosos vigaristas. Até ao remoto Brasil a onda de revelações trouxe alguma luz, mostrando que o famoso “ouro de Moscou”, longamente explicado como invenção maldosa da CIA, havia com efeito tilintado nos bolsos de nossos grotescos heroizinhos comunistas.

Depois disso, que mais restava à esquerda senão passar um tardio e vergonhoso recibo do fato consumado? Foi assim que em 1997 apareceu o “Livro negro do comunismo”, que, comprovando item por item as denúncias direitistas que a esquerda mundial desmentira desde a década de 30, ainda procurava diminuir a extensão quantitativa do desastre mas não conseguia reduzir o número de vítimas do comunismo para baixo da cifra dos cem milhões. Mesmo assim, o livro não saiu sem provocar reações indignadas (tipo “Onde já se viu dar munição ao inimigo?”), nem sem suscitar a produção de um atabalhoado e ineficacíssimo contraveneno, o qual, sob o título “O livro negro do capitalismo”, só é levado a sério, precisamente, pela anônima figuraça aludida no início deste artigo, cujo anonimato preservo, também, por julgar que esse deveria ser o seu estado natural.

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