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Comentários às refutações borrônicas

25 de outubro de 2000

Ao publicar nesta homepage os presentes comentários, enviei ao mesmo tempo a seguinte carta à redação de Época:

Senhor redator: Preferindo guardar meu espaço em Época para coisas mais importantes, coloquei em meu websitehttp://www.olavodecarvalho.org, uma resposta detalhada ao blefe pueril com que, na edição de 21 de outubro, o sr. Luca Borroni-Biancastelli fingiu refutar minhas críticas a Lord Keynes.

Olavo de Carvalho

No meu artigo “Palmas para Keynes” (Época, 16 set. 2000), fiz as seguintes afirmativas: 1. Keynes protegeu o círculo de espiões soviéticos de Cambridge. 2. A proposta econômica de Keynes resultava em fazer do Estado o maior dos capitalistas. 3. O New Deal inspirado em Keynes deu errado e só foi salvo pela eclosão da guerra (que, por definição, favorecia o controle estatal da economia). 4. A famosa sentença “A longo prazo estaremos todos mortos” pode ser lida como resposta de Keynes à crítica de que transformar o Estado em empreendedor geraria inflação através do aumento dos gastos públicos. 5. Os admiradores que louvam Keynes como salvador do capitalismo são sobretudo burocratas esquerdistas aos quais ele deu um lugar de honra no seu novo modelo pseudocapitalista.

Prometendo arrasar mediante seu saber econômico de grosso calibre a minha “pseudo-análise” de leigo, o prof. Luca Borroni-Biancastelli (Época, 21 out. 2000) responde com evasivas às duas primeiras afirmações, nada diz quanto à terceira, falseia os dados históricos para fingir que desmente a quarta, e por fim dá uma boa confirmação involuntária à quinta com sua ira de esquerdista ferido pelas críticas liberais a seu idolatrado Keynes.

Se isso é uma refutação, o prof. Borroni é um triângulo isósceles. Mas não me espantaria que ele acreditasse ser um triângulo isósceles, já que pensa também que meu artigo é uma “pseudo-análise” da teoria de Keynes, quando obviamente não há ali análise nenhuma, quer genuína, quer postiça, mas, precisamente ao contrário, a simples expressão sintética de um julgamento.

É compreensível que quem não sabe distinguir análise de síntese também não saiba a diferença entre uma refutação e a simples expressão de uma discordância irritada, sublinhada pela ostentação grotesca de sentimento de superioridade perfeitamente ilusório que denota antes uma mentalidade de adolescente.

Mas, além de tomar a síntese por análise, o prof. Borroni ainda acredita que ela é sobre a teoria de Keynes. Basta ler meu artigo com atenção para verificar que sobre o conteúdo das idéias de Keynes ele contém, no total, uma só frase, e que essa frase não fala da teoria e sim da proposta prática que o autor dessa teoria houve por bem deduzir dela. Análise é divisão de um todo nas suas partes constituintes, e não se vê como seria possível fazê-la, autêntica ou facticiamente, numa sentença breve e única que, além do mais, não fala de nenhuma delas e se contenta com apontar um efeito histórico do conjunto.

Para ser pseudo-alguma-coisa é preciso ter ao menos uma vaga semelhança com essa coisa, e meu artigo não se parece em nada com uma análise. Ele pode portanto ser tudo o que o prof. Borroni queira, pode ser até um aglomerado de bobagens, mas não pode, em hipótese alguma, ser uma pseudo-análise.

Para um carrancudo Ph. D. empenhado em defender sua jurisdição acadêmica contra o leigo intruso, o prof. Borroni não se revela muito hábil no domínio dos instrumentos elementares de toda linguagem científica.

Para ajudar o ilustre sábio a superar essa sua dificuldade, esclareço, a título de exemplo pedagógico, que o primeiro parágrafo destes comentários é um desmembramento analíticodas partes do meu artigo “Palmas para Keynes” e que o segundo é uma síntese dos defeitos que encontrei na argumentação de seu crítico, os quais, para maior clareza, passo a analisarcriticamente:

1. Em resposta à minha afirmativa de que Lord Keynes favoreceu a espionagem soviética em Cambridge, o prof. Borroni diz: “Quanto às inclinações ideológicas do grande economista, a verdade é que Keynes sempre execrou as idéias de Marx.” Ora, uma acusação de cumplicidade em espionagem não pode, obviamente, ser refutada mediante a alegação das convicções ideológicas do suspeito. Espionagem não é militância, que subentende adesão mental. Espionagem pode-se fazer por profissão, por suborno, por interesse político, por envolvimento forçado, por chantagem, por espírito de aventura, por mil e um motivos dos quais a ideologia não é nem de longe o mais relevante. No círculo de espiões em Cambridge, o autor da mais importante contribuição à URSS foi Ludwig Wittgenstein, cujas crenças políticas estavam ainda mais distantes do marxismo que as de Keynes. Da alegação extemporânea do prof. Borroni só se pode concluir que ele ignora não apenas o que é refutação, mas também o que é espionagem e, ademais, tudo o que aconteceu em Cambridge.

2. À minha afirmativa de que “A mágica besta da economia keynesiana consistia em fazer do Estado o maior dos capitalistas”, o prof. Borroni oferece duas respostas. A primeira assegura, com ponto de exclamação, que “Keynes nuncadefendeu tal tese!”. A segunda, linhas adiante, declara que, para Keynes “o governo só deve assumir a tarefa de promover a retomada do crescimento econômico quando as condições do sistema não permitirem a atuação eficaz do capital privado”. Bem, desde logo seria melhor o prof. Borroni escolher uma das duas respostas, pois elas são incompatíveis: ou Keynes não admitiu que se adotasse nunca a proposta de um Estado-empresário, ou admitiu adotá-la em determinadas circunstâncias. A diferença é, precisamente, a que existe entre nada e alguma coisa. Essa distinção pode ser obscura e dificultosa para o prof. Borroni, mas não creio que o seja para o restante da humanidade.

Ademais, há nesse caso um outro aspecto que, como aliás praticamente todos os demais, passou despercebido ao nosso Ph. D.: é que, se Keynes só admitia o Estado-empresário em certas circunstâncias, isto é, “quando as condições não permitirem a atuação eficaz do capital privado”, essas eram precisamente, segundo ele próprio, as circunstâncias  vigentes no momento em que ele publicou sua Teoria e, de modo geral, em toda a fase histórica que vai do fim da I Guerra Mundial até… a morte de Keynes! Ou seja: Keynes “nunca” admitiu a transformação do Estado em empresário, exceto… durante o tempo todo em que viveu.

A resposta do prof. Borroni é, portanto, apenas uma tentativa frustrada de lançar uma cortina de fumaça sobre aquilo que todo mundo sabe: malgrado todas as mediações e atenuações teóricas possíveis, que na prática ficaram sem efeito, a proposta de Keynes consistiu, sim, em fazer do Estado o maior dos empresários, aumentando desmedidamente os gastos públicos e elevando a inflação a alturas estratosféricas.

3. Embora a afirmação do completo fracasso da aplicação das propostas keynesianas nos Estados Unidos esteja no centro mesmo do meu argumento contra Keynes, o prof. Borroni nada lhe responde. A omissão é significativa, pois, se um sujeito ameaça dar cabo de nossas opiniões e depois, em vez de mirar bem no coração e acertá-las com um tiro mortal, fica tentando roer pelas bordas com uma boca sem dentes, a única conclusão possível é que não estamos diante de um adversário sério, mas de um ignorante muito fraco e abusado.

4. Segundo meu artigo, à crítica de que transformar o Estado em empreendedor geraria inflação através do aumento dos gastos públicos Keynes teria respondido com sua célebre evasiva “A longo prazo estaremos todos mortos.” O prof. Borroni acusa-me de citar a frase fora do contexto e informa que ela, na verdade, foi uma crítica a Alfred Marshall.

Bem, é certo dizer que coloquei a citação fora do contexto, mas o prof. Borroni faz pior: coloca-a num contexto falso.

Na verdade puramente textual, a frase não foi dita nem para defender a teoria do próprio Keynes nem para atacar a de qualquer outro. Foi apenas uma observação a propósito de empréstimos de guerra concedidos pelo Tesouro inglês em 1917 e cujo retorno estava demorando mais do que o esperado. (1)

Eu e o prof. Borroni, portanto, ambos cometemos o mesmo delito. Não é delito grave, em si mesmo. Uma frase dita em determinada ocasião por um pensador pode ser perfeitamente usada para resumir ou parafrasear coisas que ele disse em outra ocasiâo, caso o sentido geral coincida ao menos esquematicamente. Por exemplo, Karl Marx não disse em parte alguma de O Capital que “a moderna sociedade burguesa não eliminou os antagonismos de classe”. Ele disse isso noManifesto Comunista, trinta anos antes, mas a frase resume, de antemão, páginas e páginas de O Capital. Portanto, num texto jornalístico, sem obrigatória fidelidade literal ou remissão científica a fontes textuais, não haveria nada de mais em usar essa frase como alusão à doutrina de O Capital.

Identicamente, não é abuso usar da frase de Keynes sobre o empréstimo de 1917, seja para resumir sua atitude ante as advertências de seus críticos, seja para condensar sua crítica a Marshall, pois o sentido é esquematicamente o mesmo em ambos os casos e em ambos trata-se apenas de aludir e resumir sem distorcer. Na verdade, o uso dessa frase como uma espécie de síntese da atitude intelectual de Keynes tornou-se geral entre economistas e não-economistas, keynesianos ou antikeynesianos, mais ou menos como se faz com o “Eppur si muove” de Galileu ou o “Cogito ergo sum” de Descartes, também citados abundantemente fora de contexto, sem qualquer prejuízo do sentido geral das idéias que resumem. Não há nisso nada de especialmente perverso.

A perversão começa no preciso momento em que o prof. Borroni tenta induzir o leitor a crer que, das duas alusões deslocadas, uma é abusiva troca de contexto e a outra, a sua, uma rigorosa citação textual. Aí já abandonamos o terreno da licença jornalística e entramos no da falsificação de fontes.

Nossos delitos, pois, não são o mesmo. A diferença é a que existe entre uma figura de estilo usada para abreviar a explicação e uma fraude concebida para fins difamatórios.

5. Que os louvores a Keynes como salvador do capitalismo venham sobretudo de pessoas que teriam tudo para odiá-lo se ele realmente o fosse, é coisa que não preciso provar, pois o próprio prof. Borroni o prova no momento em que qualifica minhas críticas de “apologia da direita econômica mais obtusa”. A palavra “direitista”, certamente, só pode ser um insulto desde o ponto de vista da esquerda, e é este o ponto de vista que o prof. Borroni subscreve ao fazer a apologia de Keynes.

O tom irritado das suas observações, o nervosismo de uma lógica que se atropela e esborracha em autocontradições a cada linha bem mostram que o prof. Borroni ressentiu minhas críticas a Keynes como uma ofensa intolerável à dignidade do ofício de economista que ele crê, por motivos insondáveis, representar muito bem. E tão piamente ele se imagina a encarnação mesma do saber acadêmico nessa área, que, sem a menor suspeita de que possa ter-se enganado, ele supõe que quem quer que diga as coisas que eu disse de Keynes só pode tê-las aprendido de ouvir-dizer ou de introduções populares de segunda-mão escritas por leigos.

Bem, mesmo que essa conjetura fosse verídica, ela não bastaria para impugnar essas críticas como “velhos chavões desprovidos de qualquer fundamento científico”, precisamente porque o valor de uma crítica não está no prestígio acadêmico da sua fonte, mas na veracidade do seu conteúdo.

Mas o fato é que, ao embarcar nessa suposição com fé de carbonário, o prof. Borroni só revela a sua completa ignorância de que tais críticas a Keynes – e outras muito mais graves – não constam só de livretos populares e sim de obras fundamentais da economia, que, por não as conhecer, ele imagina inexistentes e impossíveis de existir.

Ludwig von Mises, por exemplo, o mestre da escola austríaca, e indiscutivelmente um clássico da ciência econômica, diz que a esperança de corrigir as distorções da economia mediante a intervenção do Estado “é a fábula de Papai Noel elevada por Lord Keynes à dignidade de doutrina econômica, entusiasticamente apoiada por todos aqueles que esperam obter vantagens pessoais com os gastos do governo” (2). É o mesmo que eu digo em “Palmas para Keynes”. O prof. Borroni pode alegar que isso é “de direita” e que ser de direita é o supremo pecado. Mas terá a cara de pau de alegar que é opinião de não-economista ou citação extraída de manual popular? Do mesmo modo, não será um excesso de presunção crer, sem exame, que nada se pode alegar contra Keynes exceto “velhos chavões sem valor científico”, quando a própria doutrina de Keynes é descrita por von Mises como uma coleção de “crenças populares racionalizadas e elevadas à categoria de uma doutrina quase-econômica”?

Por que ludibriar o público, levando-o a imaginar que está diante de um confronto entre o saber especializado e a ignorância leiga, quando os ataques a Keynes não partem de fontes estranhas à ciência econômica, mas de economistas muito mais qualificados que um milhão de Borronis?

Mais adiante, diz von Mises: “Na prática, todos esses expedientes de uma suposta política de pleno emprego mais cedo ou mais tarde conduzem à instauração de um socialismo modelo alemão (nazismo).” Terá o prof. Borroni a desfaçatez de negar que a política econômica keynesiana do governo Roosevelt se apoiou em medidas policiais e repressivas, com campo de concentração e tudo? Se tem, que leia então John T. Flynn, The Roosevelt Myth (3), e depois opine com conhecimento de causa, em vez de presumir que a exibição caipira de títulos acadêmicos substitui com vantagem a informação exata e o estudo sério.

O mais curioso no texto do prof. Borroni é sua confissão final de que Keynes tinha “escasso interesse pela máquina burocrática estatal” e que isso constitui “um ponto frágil” da sua doutrina, bem como, aliás, da de Marx. Ora, esse desinteresse, mais que mera fragilidade teórica do pensamento de Keynes, revela nele (como também em Marx) uma espantosa leviandade e um imoral desinteresse pelos meios práticos de realização de suas idéias. Pois, se a burocracia é o instrumento por excelência da mudança, ignorá-la é simplesmente falsear por completo o próprio raciocínio econômico, produzindo a impressão de que o Estado é um Deus ex machina que pode agir sobre a economia sem depender dela, sem ser sustentado por ela, dando miraculosamente ao povo algo que não tomou desse mesmo povo. É desencadear conseqüências econômicas, políticas e sociais monstruosas, cuja previsão deve constituir motivo de inquietação para todos, exceto para o teórico nefelibata que, do alto da sua torre de marfim, considera o mundo um jogo intelectual e, seguro de estar morto a longo prazo, faz dos destinos da humanidade um brinquedo, como O Grande Ditador de Charlie Chaplin.

Por isso mesmo, não considero imprópria a linguagem com que falei de John Maynard Keynes. Segundo o prof. Borroni, é linguagem “de taberna”, porque usa o termo “desgraçado”. Mas “desgraçado” é termo religioso: designa aquele que foi excluído da Graça. Keynes e seu círculo de amiguinhos em Cambridge estavam bem cientes de sua radical inimizade a um Deus que não chegavam a declarar inexistente. Por isso mesmo, numa caricatura explícita, denominaram “Os Apóstolos” a seu grupo, unido não no amor de Cristo, mas na mútua sedução erótica e na comum afeição a jogos intelectuais de um artificialismo sem par, entre os quais o mais divertido era a espionagem a serviço de uma ideologia assassina na qual nem sequer acreditavam: se podiam brincar com o inferno, por que não haveriam de brincar com os destinos da Terra?

Esse aspecto das coisas é fundamental para quem deseje compreender a inspiração que movia o grupo de Cambridge. Posso falar dele com mais detalhe, numa outra ocasião. Mas ele está tão longe do círculo de visão do prof. Borroni quanto a burocracia estava longe das cogitações daquele que, brincando, brincando, entregou a ela as chaves da onipotência. Por isso, em vez da associação bíblica que o autor do texto teve em vista, a palavra “desgraçado” só traz ao seu pretenso crítico a evocação extemporânea de um ambiente de taberna em cuja conversação, decerto, predominam expressões de teor bem diverso, provavelmente até mais adequadas a descrever o caráter de Lord Keynes. Nisto, como em tudo o mais, o prof. Borroni passou longe da questão. Talvez assim seja melhor: ele não tem ainda nem o saber nem a maturidade espiritual necessários para tomar consciência do tipo de jogo em que se meteu.

Olavo de Carvalho

Notas

(1) Collected Works, vol. IV, p. 65.

(2) Ação Humana. Um Tratado de Economia, trad. Donald Stewart Jr., Rio, Instituto Liberal, 2a. ed., 1995, p. 748.

(3) Old Greenwich, Connecticut, Popsvox Publishing, 1997.

Trágica leviandade

Olavo de Carvalho

Época, 21 de outubro de 2000

Incapazes de transformar a si mesmos, os esquerdistas buscam transformar o mundo

Jamais conheci um esquerdista que chegasse a sê-lo por etapas, por experiência acumulada e avaliação ponderada dos fatos. Todos tomam posição logo de cara na entrada da adolescência, antes de saber coisa alguma do mundo, e passam o resto da vida julgando tudo à luz dessa opção inicial. Nada lhes parece mais normal, portanto, que presumir que as opiniões contrárias às suas tenham se originado de escolhas igualmente irracionais, apenas com signo invertido.

Acontece que a quase totalidade dos pensadores anticomunistas é constituída de indivíduos que um dia foram comunistas e depois mudaram de idéia por um lento, difícil e doloroso processo de autodesmascaramento. As obras de Arthur Koestler, Irving Kristol, David Horowitz, Whittaker Chambers, Milovan Djilas, Daniel Bell e tantos outros – hoje excluídas do mercado livreiro – não são apenas “argumentações” em favor de uma “posição”: são expressões de uma experiência longamente amadurecida no isolamento e na árdua conquista de si. Cada um desses homens pagou um alto preço moral por suas idéias, enquanto as dos comunistas foram recebidas, prontas e gratuitas, de um ambiente juvenil onde circulavam como frases feitas.

É verdade que, para muitos comunistas, sua escolha ideológica trouxe provações e riscos. Mas justamente isso lhes deu um pretexto edificante para que se dispensassem de questionar as doutrinas às quais tinham oferecido a vida. Quem, depois de passar por perseguições, prisão, tortura, há de querer reconhecer que sofreu tudo isso por uma mentira? Assim, o heroísmo esquerdista é de ordem apenas física e social, sem profundidade interior: quanto mais o militante tem a coragem de padecer por suas crenças, mais covardemente foge do risco de se decepcionar com elas. Ademais, seu sofrimento tem sempre o reconforto da solidariedade coletiva, organizada, mundial. Sozinho, no cárcere, ele tem a certeza de que milhões lutam a seu lado. Quem haverá de querer, no fundo do poço, abdicar desse último consolo?

Mas é precisamente esse heroísmo em dose dupla que se encontra nos homens que, após sofrer perseguição de seus adversários políticos, consentiram em suportar, solitários, o ódio de seus antigos companheiros. Heroísmo, na verdade, triplo, pois entre a primeira e a segunda provação vem o mais difícil: a travessia do deserto, a luta para vencer a si mesmo. Por isso os clássicos do anticomunismo têm aquela tensão moral, aquele peso das decisões plenamente responsáveis e aquela high seriousness que faltam por completo às obras de seus adversários. Se as biografias pessoais de Marx, Lênin, Mao, Stálin e Fidel são uma galeria de baixezas (envolvem desde rituais satanistas e crueldade para com os familiares até pedofilia), não são menos deprimentes os perfis intelectuais de um cínico imoralista como Brecht (o homem que disse dos acusados no Processo de Moscou: “Se eles são inocentes, merecem ser fuzilados precisamente por isso”), de um sabujo profissional como Lukács, sempre pronto a mudar de opinião sob comando, ou de um palhaço verboso como Jean-Paul Sartre, sem falar nas dúzias de vigaristas acadêmicos que o famoso experimento Sokal desmascarou definitivamente.

Há uma trágica leviandade em homens que, incapazes de transformar a si mesmos, se dispõem a “transformar o mundo”. Que mundo pode nascer daí senão uma pantomima sangrenta?

O futuro da liberdade

Olavo de Carvalho

O Globo, 21 de outubro de 2000

Na sua última entrevista, publicada postumamente em setembro de 1997, François Furet dizia que o maior problema da sociedade liberal-capitalista é sua dificuldade de construir um corpo político, pois a idéia mesma que funda o liberalismo, a doutrina da autonomia individual, resiste a encarnar-se na forma de uma estrutura política, de um Estado. O sucesso do comunismo e do fascismo, prosseguia o historiador, deveu-se ao fato de que, em contraste com essa incapacidade crônica do liberalismo, pensavam o corpo social como unidade e davam a essa unidade uma expressão política também unitária, por meio do Partido-Estado.

Esse diagnóstico fornece a melhor explicação para o fato de que no próprio seio do liberalismo as tendências centralizadoras e estatizantes ressurgem ciclicamente sob novas roupagens e novas denominações, algumas delas diabolicamente enganosas porque alegam inspirar-se nos próprios ideais do liberalismo.

A constatação desse estado de coisas sugere automaticamente uma pergunta: uma sociedade politicamente centrífuga não tem outra alternativa senão ceder de vez às ofertas de unificação totalitária ou viver eternamente de arranjos de ocasião entre a liberdade de jure e as concessões de facto a um crescente poder centralizador?

Furet não dá nenhuma resposta, mas passa de raspão por ela e nem percebe que é uma resposta. A dificuldade de encontrar uma fórmula política, segundo ele, manifestou-se da maneira mais patente naquela sucessão de crises que foi a Revolução Francesa, ao passo que “permaneceu escondida no caso da Revolução Americana, revolução demasiado fácil, transcorrida sob as bênçãos da religião a um povo cristão, que não teve a necessidade de renegar um passado aristocrático e feudal e teve ainda a sorte de encontrar uma centena de grandes homens políticos”.

Não é muito certo dizer que os americanos tiveram “dificuldade” de encontrar uma fórmula política. O que eles tiveram foi uma profunda indiferença pela busca dessa fórmula. O testemunho é de Aléxis de Tocqueville: meio século depois da independência, as pequenas comunidades, núcleos da vida americana, ainda se orgulhavam de viver à margem de toda autoridade central, unidas às comunidades vizinhas tão-somente pelos laços de comércio, religião e cultura. A dificuldade apareceu mais tarde e, de certo modo, artificialmente. Apareceu por iniciativa da própria classe política, que buscou forçar a unificação jurídico-administrativa do país, condição prévia para a consecução dos grandes planos imperiais que tinha em vista. Conforme assinalei em meu livro “O jardim das aflições” (cinco anos antes da dupla Negri & Hardt a quem a nossa intelectualidade símia credita essa descoberta), as ambições centralizadoras e imperialistas germinavam no espírito dessa classe já antes mesmo da Revolução e cresceram inteiramente por fora das aspirações da sociedade americana, a qual, sendo indiferente ao Estado, teria de sê-lo mais ainda ao crescimento dele para além-fronteiras.

Se essa sociedade pôde evitar os conflitos que viriam a marcar a História da França, foi graças a três fatores. Primeiro, a religião, uma religião tanto mais arraigada na alma do povo quanto mais livre da contaminação estatal, pois fora justamente para proteger seu culto religioso de toda interferência governamental que os pioneiros tinham vindo para o Novo Mundo. Essa religião, popular e extra-oficial, mas ao mesmo tempo conservadora e apegada às tradições, dava aos americanos sua unidade moral, mais funda e decisiva que qualquer unidade política. Em segundo lugar, a economia. Sua base, religiosa até à medula, era a “sociedade de confiança” de que fala Alain Peyrefitte, ou a “ethics of loyalty” enaltecida por Josiah Royce: a liberdade de comprar e vender, fundada na comum expectativa da lealdade espontânea de todos para com todos.

Por fim, a cultura. Até hoje a elite americana – presidentes de empresas, oficiais do Exército, homens de letras – provém de uns 200 colégios particulares, que, desprezando os supostos avanços tão afoitamente assimilados pela pedagogia estatal, conservaram quase intacto o método educacional de antes da Revolução, baseado nos “três rr” – reading, writing, arithmetics – e na leitura dos clássicos: a boa e velha liberal education. Esse método produziu a “centena de grandes homens” que decidiu o destino da América.

Religião livremente fiel às tradições, economia sã fundada na moral religiosa e uma elite de homens conscientes dos valores básicos da civilização: eis os três fatores que puderam superar a contradição entre liberalismo e estrutura política, poupando ao povo americano os fracassos sangrentos da Revolução Francesa. Pois esta, em contrapartida, ocorreu numa sociedade onde a religião era burocratizada e infectada de mundanismo, a economia era centralizada pelo Estado sanguessuga e a cultura era um festival de insanidades, obra da nova classe intelectual leviana e fútil, vaidosa e cheia de afetado desdém pelo que estivesse acima da sua compreensão. Não podendo apostar nem na religião, nem na cultura, nem na economia, a França arriscou tudo – e tudo perdeu – na busca insana do corpo político perfeito.

Eis aí a lição que François Furet nos deu sem perceber: o futuro de uma sociedade baseada na liberdade individual não depende do utópico e insaciável “aperfeiçoamento das instituições”, mas da religião sincera, da ética nos negócios e da formação intelectual da elite: de tudo aquilo, enfim, que é desprezado por um país louco que, à imitação da França revolucionária, deposita todas as suas esperanças na política e no Estado.

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