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Diplomacia de sonâmbulos

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 31 de maio de 2010

Pergunto-me se alguém, no nosso governo, tem alguma compreensão do pano-de-fundo religioso, místico e esotérico das manobras do presidente iraniano Mahmud Ahmadinejad. A resposta é evidentemente “Não”. A simples idéia de que em política a religião possa ser algo mais que um adorno – ou disfarce – publicitário é absolutamente inalcançável para os brucutus do Palácio do Planalto e para os galináceos engomados do Itamaraty. Toda vez que essa gente toma decisões em assuntos que pairam infinitamente acima de seus neurônios e arrastam o povo na direção de um destino que este compreende menos ainda, a liderança intelectual, política, empresarial e militar deste país deveria bater no peito e, genuflexa, recitar: Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. O Brasil está se transformando no instrumento mais passivo, bocó e inconseqüente de políticas internacionais desastrosas que, nas presentes condições, não podem sequer ser objeto de um debate público sério por absoluta falta de debatedores informados.

A ideologia dominante no mundo moderno apregoa que a sociedade política é uma realidade auto-subsistente, dentro da qual, e como parte subordinada da qual, existe um fenômeno chamado “crenças”, cujo exercício o Estado, conforme lhe dê na telha, protege ou reprime.

Essa visão das coisas, hoje tida como dogma do senso comum, é diretamente contraditada pela realidade histórica. Não existe no universo um só Estado ou nação que não tenha surgido desde dentro das religiões, como capítulo fugaz da história dos seus antagonismos internos e externos. O elemento durável e decisivo na História são as religiões: o Estado, a nação e, no fim das contas, tudo o que hoje se denomina “política” são apenas a espuma na superfície de uma corrente que se constitui, em essência, da história das religiões, tomado o termo num sentido amplo que abrange os movimentos ocultistas e esotéricos, incluindo os que se travestem de materialistas e agnósticos (o marxismo é o exemplo mais nítido: leiam Marx and Satan, do pastor Richard Wurmbrand, e To Eliminate the Opiate, do rabino Marvin Antelman, e entenderão do que estou falando).

Obscurecido pela ilusão da “política”, o predomínio absoluto do fator religioso na História mostrou uma vez mais sua força no instante em que o projeto de governo global, muito antes de se traduzir em medidas políticas concretas, teve de se constituir, já desde os anos 50, numa engenhoca espiritual que acabaria por tomar o nome de United Religions Initiative (cito uma vez mais Lee Penn, False Dawn: The United Religions Initiative, Globalism and the Quest for a One-World Religion, leitura obrigatória para quem quer que deseje entender o mundo de hoje).

Mas, se as lideranças globalistas estão bem cientes desse fator, ele continua ignorado pela massa dos analistas políticos, comentaristas de mídia e “formadores de opinião” em geral, apegados, por força da sua formação universitária, ao mito do “Estado leigo”, como se a razão de ser deste último não fosse, precisamente, o advento final de algo como a United Religions Initiative.

O único lugar do planeta onde a consciência do poder da religião como força modeladora da História está viva não só entre os intelectuais como até entre a população em geral, é o Islam. Por isso é que milhões e milhões de muçulmanos têm um senso de participação consciente em planos estratégicos de longuíssima escala – em escala de séculos – para a instauração do império islâmico mundial. Esse senso, aliado à completa invisibilidade dessa escala no horizonte histórico estreito dos políticos ocidentais, basta para explicar que o Islam tenha hoje a maior militância organizada que já se viu no mundo – um poder avassalador a cuja marcha triunfante os países mais ricos e supostamente mais fortes não sabem nem podem oferecer senão uma resistência verbal perfeitamente inútil.

Habituados a raciocinar em termos de poderes estatais, militares, econômicos e burocráticos, os estrategistas do Ocidente perdem freqüentemente de vista a unidade profunda do projeto islâmico ao longo do tempo, nublada, a seus olhos, por divergências momentâneas de interesses nacionais que, para eles, constituem a única realidade efetiva. E nisso refiro-me aos estrategistas das grandes potências, não a seus macaqueadores de segunda mão que hoje constituem a “zé-lite” da diplomacia luliana. Estes não têm sequer a noção de que exista, para além dos lances do momento, um projeto islâmico de longo prazo, ao qual servem sem atinar com o sentido daquilo que fazem ou dizem. Movem-se na cena do mundo como sonâmbulos errando entre sombras, imitando o soneto célebre de Fernando Pessoa:

“Emissário de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anômalo sentido.”

Primores de ternura – 1

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 14 de outubro de 2009

Leio no site da Previdência Social: “O auxílio-reclusão é um benefício devido aos dependentes do segurado recolhido à prisão, durante o período em que estiver preso sob regime fechado ou semi-aberto.” Ou seja: no Brasil você pode matar, roubar, sequestrar ou estuprar, seguro de que, se for preso, sua família não passará necessidade. O governo garante. Se, porém, como membro efetivo da maioria otária, você não faz mal a ninguém e em vez disso prefere acabar levando dois tiros na cuca, quatro no estômago ou três no peito, ou então uma facada no fígado, esticando as canelas in loco ou no hospital, aí o governo não garante mais nada: sua viúva e seus filhos podem chorar à vontade na porta do Palácio do Planalto, que o coração fraterno da República solidária não lhes concederá nem uma gota da ternura estatal que derrama generosamente sobre os bandidos.

É, as coisas são assim. Se elas o escandalizam, é porque você está muito desatualizado. Afagar delinqüentes, estimular o banditismo, é uma das mais antigas e veneráveis tradições do movimento revolucionário, que o nosso partido governante personifica orgulhosamente.

Veja o que pensavam alguns dos mentores revolucionários mais célebres:
Mikhail Bakunin, líder anarquista: “Para a nossa revolução, será preciso atiçar no povo as paixões mais vis.”

Serge Netchaiev, terrorista que Lênin adotou como um de seus gurus: “A causa pela qual lutamos é a completa, universal destruição. Temos de nos unir ao mundo selvagem, criminoso.”

Willi Münzenberg, o gênio organizador da propaganda comunista na Europa Ocidental e nos EUA: “Vamos corromper o Ocidente em tal medida, que ele acabará fedendo.”

Louis Aragon, poeta oficial do Partido Comunista Francês: “Despertaremos por toda parte os germes da confusão e do malestar. Que os traficantes de drogas se atirem sobre as nossas nações aterrorizadas!”

V. I. Lênin: “O melhor revolucionário é um jovem desprovido de toda moral.”

De tal modo a paixão pelo crime se impregnou na mente revolucionária, que acabou até produzindo fenômenos paranormais. Em 8 de março de 1855, o poeta Victor Hugo, um ídolo dos revolucionários, recebeu numa sessão espírita, para satisfação aliás de suas próprias expectativas, esta mensagem do além: “A verdadeira religião proclama o novo evangelho: é uma imensa ternura pelos ferozes, pelos infames, pelos bandidos.”

Os exemplos poderiam multiplicar-se indefinidamente. E nada disso ficou no papel, é claro. Nem se limitaram aquelas almas cândidas a cantar em prosa, verso e filme as virtudes excelsas da criminalidade (v. meu artigo “Bandidos e Letrados”, de 26 de dezembro de 1994, em www.olavodecarvalho.org/livros/bandlet.htm). Já em 1789 os revolucionários franceses abriram as portas das prisões, libertando indiscriminadamente milhares de assassinos, ladrões e estupradores que em poucos dias espalharam o caos nas ruas de Paris (mesmo na célebre Bastilha não havia um só prisioneiro político: só delinqüentes). Logo após a tomada do poder pelos comunistas na Rússia, a política oficial era fomentar o sexo livre, criando assim uma geração de jovens sem família para incentivar a criminalidade juvenil e liquidar pela confusão o que restasse da “ordem burguesa”. A idéia foi de Karl Radek (o chefe de Willi Münzenberg), que, ironia cruel, ao cair em desgraça perante Stalin acabou sendo assassinado a murros e pontapés por jovens delinqüentes numa prisão.

O voto de Louis Aragon foi cumprido à risca a partir dos anos 50, quando a URSS começou a treinar agentes para que se infiltrassem nas então incipientes redes de tráfico de drogas – especialmente na América Latina – e as dominassem por dentro, criando uma futura fonte local de subsídios para o movimento revolucionário, que estava saindo caro demais para o bolso soviético. Essa foi a origem remota das Farc, Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, que hoje dominam o narcotráfico no continente. A história é contada em detalhes pelo general tcheco Jan Sejna, que participou pessoalmente da operação (v. Joseph D. Douglass, Red Cocaine. The Drugging of America and the West, London, Harle, 1999).

Mentalidade criminosa

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 3 de novembro de 2005

A estratégia de defesa adotada pela Presidência da República para esconjurar suspeitas por atacado e reprimir nas consciências o direito mesmo de suspeitar é o mais eloqüente sinal não somente das culpas que carrega, mas também de sua total falta de disposição de submeter-se à ordem legal que lhe incumbe representar e defender.

Nenhum dos presidentes anteriores, acusado do que quer que fosse, teve jamais o desplante, o cinismo supremo de negar à mídia o direito de publicar indícios, de pedir investigações, de destampar impiedosamente quantos ralos e latrinas fosse necessário para que a transparência que todos diziam desejar não fosse somente a de um véu de retórica eleitoral por cima de uma montanha de obscuridades criminosas.

Só mesmo o governo chefiado por um semi-analfabeto pode exigir “provas” de uma denúncia de imprensa e ameaçar criminalizá-la por falta delas. Esse homem que se gaba de nunca ter lido um livro só mostra, com essa atitude, que não sabe nem ler jornal; mas seus assessores espertos, que o sabem perfeitamente, prevalecem-se da ignorância presidencial para se fazer eles próprios de ignorantes e impingir à opinião pública critérios de julgamento que nenhum cidadão letrado pode aceitar. Isso é, em sua forma mais pura e evidente, exploração da boa-fé popular. “Provar” a veracidade de uma declaração está infinitamente acima da capacidade e dos deveres do jornalismo. Tudo o que o jornalista pode fazer é mostrar a fonte do que disse e demonstrar que reproduziu suas palavras o mais fielmente possível. Veracidade ou inveracidade do conteúdo dependem da fonte e somente dela. E só a justiça pode confirmar ou negar uma ou a outra. Ao jornalista não cabe antecipar-se à justiça, provando tudo logo na primeira denúncia, mas apenas levantar indícios razoáveis, sob a forma de documentos ou testemunhos — exatamente com fez Veja no concernente à ajuda ilegal de Cuba à candidatura Lula –, para justificar a investigação judicial que, esta sim, dirá se a acusação era verdadeira ou falsa.

Mesmo num processo judicial não se exige que a parte denunciante forneça provas cabais desde o início. Elas são oferecidas no curso do processo, que se chama “processo” justamente por isso e por nada mais. Se fosse preciso provar tudo de cara, não haveria processo nenhum. O processo é o processo da descoberta progressiva da verdade . Dos primeiranistas de faculdade aos juízes do STF não há em todo o universo judicial brasileiro quem ignore isso. O único que o ignora está no Palácio do Planalto: é o sr. Luiz Inácio Lula da Silva. O povo brasileiro precisaria ser tão ignorante quanto ele — ou ser reduzido artificialmente a essa ignorância por uma feroz campanha de desinformação — para aceitar a idéia de que o jornalista, se não pode provar desde logo e por seus próprios recursos a veracidade de declarações colhidas de uma fonte, é um criminoso. Criminosos são os assessores presidenciais que querem enganar a opinião pública, levando-a a acreditar que esgares ameaçadores são justiça, quando são apenas a justiça da Rainha de Copas. Criminoso não é denunciar sem provas cabais: criminoso é exigir provas cabais no início para impedir que elas sejam obtidas no fim.

Tanto mais intolerável é esse procedimento porque vem justamente de indivíduos e grupos que, tendo promovido a cassação do ex-presidente Fernando Collor às pressas, sem esperar por provas judiciais de qualquer natureza, não tiveram sequer a honestidade mínima de retratar-se de seus discursos de acusação quando a própria Justiça, anos depois, sentenciou que essas provas simplesmente não existiam. Se esses mesmos, agora, numa inversão kafkiana da lógica judicial, requerem provas não somente como exigências prévias para a investigação que deveria buscá-las, mas como condições legitimadoras do direito mesmo de pedir uma investigação, revelam com isso o quanto é arraigada e natural, nos seus corações, a crença de que deve haver uma lei dura e exigente para seus inimigos e outra, branda e generosa, para eles próprios. Só que essa crença o traço mais básico e inconfundível da mentalidade criminosa.

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