Posts Tagged Lula

El mayor

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 18 de novembro de 2015

         

O ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva leva uma vida invejavelmente rica e apaixonante, mas num ponto ele tem razão de se queixar: é o homem mais incompreendido do Brasil.
Nunca um personagem foi tão falado, comentado, analisado, louvado e achincalhado sem critério nem senso de observação, sem comparações objetivas nem conceitos descritivos apropriados. Cada um exerce ferozmente, a respeito dele, a paixão humana de juntar palavras no vazio para obter, da contemplação da mera ordem gramatical, a sensação voluptuosa de ter dito algo de importante.
Das muitas teorias que circularam sobre o personagem, talvez a mais imbecil seja aquela que o considerava um imbecil. Eu mesmo, confesso, me senti de início tentado a julgá-lo um incapaz, um trapalhão de comédia da Atlântida.
Como tantos outros, fui levado a isso pela impressão da sua aparência entre desleixada e grotesca, da sua retórica populista, das suas hediondas metáforas futebolísticas, da sua dislalia renitente que trocava os “ss” por “ff”.
Mas nenhum homem pode ser julgado pela falta de qualidades que nunca lhe interessaram. É preciso medi-lo pelo que ele tentou fazer e pelos resultados que obteve.
E o fato é que, após um começo difícil, Lula veio caminhando de vitória em vitória, desnorteando os adversários, articulando com mão de mestre os grupos mais heterogêneos e os interesses mais incompatíveis, até concentrar nas suas mãos mais poder que qualquer dos governantes que o antecederam, reduzindo a pó as oposições e transformando o Estado inteiro numa máquina dócil aos seus interesses partidários. Isso ele quis fazer, e fez. Isso foi o objetivo da sua vida, e foi exemplarmente realizado. A seus inteligentíssimos e refinadíssimos desafetos só restou, como prêmio de consolação, a pose de desprezo fingido, camuflagem do ódio impotente.
Como seria possível um tolo grosseirão ter uma carreira tão espetacular?
A impressão visual era, sem dúvida, enganosa. Se comparassem o homem com personagens reais, em vez de modelos de perfeição estereotipados, perguntariam: afinal, que encantos físicos ou indumentários possuía Josef Stálin? Que grandes tesouros de cultura havia na cabeça de Benito Mussolini? E qual é o problema com os “ss” e “ff”, se Lênin jamais conseguiu pronunciar o “r” russo e seus discursos soavam como fala infantil?
No mesmo intuito de depreciar o que não se consegue derrotar, mas indo um pouco além na presunção interpretativa, muitos liberais brasileiros, esses tipos sublimes, se viram levados a classificar Lula como “populista” porque lhes parecia inculto demais para ser comunista.
“Como falar em marxismo se Lula sequer leu uma página de Marx?”, perguntava o  indefectível Marco Antônio Villa, que não perde uma oportunidade de julgar o que não conhece (aqui).
A premissa embutida na pergunta é que o líder comunista tem de ser um intelectual, capaz de orientar-se no mare magnum de O Capital e dar lições eruditíssimas sobre as três leis da dialética materialista. Um tipo como Plekhanov ou Caio Prado Júnior.
Mas isso é a visão de um observador leigo. Dentro do movimento comunista, ao contrário, a condição de intelectual sempre foi um handicap, um sinal de alerta para o risco de hesitações pequeno-burguesas.
Credencial infinitamente mais prezada do que isso era a origem proletária puro-sangue. Nos meios comunistas brasileiros, atulhados de intelectuais pequeno-burgueses, a chegada de um genuíno líder operário recém-importado diretamente do ABC foi uma lufada de ar fresco, uma festa e um anúncio de melhores dias.
Em contraste com o sr. Villa, quem estudou a história do comunismo deve lembrar-se da figura do general Fernando Flores Ibarra, um dos líderes máximos da Revolução Cubana, amigo íntimo e homem de confiança de Fidel Castro, além de responsável maior pela matança de opositores, o que lhe rendeu o gentil apelido de “Charco de Sangre”.
Pois bem, Flores não entendia uma palavra de marxismo-leninismo, não conseguia sequer ler Marx e Engels e, rindo muito, até se gabava disso em público.
Se um exemplum in contrarium não basta para impugnar a validade de um modelo geral, cabe lembrar o papel essencial desempenhado, no movimento comunista da África do Sul, por hordas de trabalhadores recém-egressos do meio tribal, que um historiador descreveu como “incultos, mas possuidores de um elevado senso de solidariedade comunista” (A. B. Davidson, South Africa and the Communist International: Bolshevik Footsoldiers to Victims of Bolshevisation, 1931-1939, Psychology Press, 2003).
“Inculto, mas possuidor de um elevado senso de solidariedade comunista” é quase uma descrição literal do Lula. Foi ele quem, atravessando toda sorte de crises internas, conseguiu criar e salvar sempre a unidade do seu partido, depois a de um pool de partidos aliados sem afinidade ideológica nenhuma, por fim a da esquerda latino-americana inteira.
Não há militante que, ouvindo-o dizer “Companheiros!” não se sinta incluído no grande abraço solidário de uma imensa comunidade combatente.
Um líder político não se julga pelo seu grau de cultura letrada, nem pelas suas convicções íntimas, que permanecem para sempre impenetráveis, mas pelas forças históricas reais que ele encarnou e às quais imprimiu indelevelmente a sua marca pessoal.
Quando Barack Hussein Obama disse de Lula “Esse é o cara!”, ele sabia que estava diante da imagem suprema do comunismo latino-americano.
Após ouvir as ponderações de tarimbados comunistas alemães sobre o fracasso do socialismo chileno, Roberto Ampuero escreveu:
“Convenci-me então de que a esquerda chilena tinha sido guiada por políticos amadores e irresponsáveis, por marxistas de salão afetados de incontinência verbal, por ideólogos capazes de persuadir o seu país a dar um salto no vazio, por líderes incapazes de desenvolver um projeto viável e sustentável.”
O mesmíssimo diagnóstico aplica-se com perfeição ao governo João Goulart: bravatas, radicalismo verbal histérico, inabilidade de concentrar poder por meio de alianças e negociações – precisamente as falhas das quais não se pode acusar o sr. Lula.
A imagem que o sr. Villa e similares têm do comunista típico corresponde precisamente à daquilo que os comunistas de verdade chamam de “marxista de salão”.
Daí deriva um segundo erro monumental na imagem que pintam do sr. Lula. Poucas coisas neste mundo me irritam, mas uma delas é ouvir esquerdistas e direitistas – sempre unânimes na estupidez – dizerem que “Lula traiu seus  ideais”.
Uns tentam, com esse artifício verbal, salvar a honra da esquerda, maculada pelo descrédito atual do líder.
Os do outro lado nem percebem que os ajudam nisso ao medir o chefe do Mensalão na régua dos seus próprios valores proclamados, danando a reputação dele mas consagrando esses valores como medida absoluta das ações humanas e concedendo ao adversário uma vitória ideológica geral duradoura em troca de uma vantagem pontual momentânea.
Em ambos os casos, é puro fingimento histérico: uns e outros não raciocinam a partir dos fatos e da História, mas das impressões que desejam incutir na platéia, das quais, para maior verossimilhança do efeito, tratam primeiro de imbuir-se a si próprios. Não são analistas políticos, são marqueteiros, interessados apenas nos resultados imediatos, totalmente insensíveis aos fatores de longo prazo.
Para quem raciocina com base no estereótipo do “idealismo comunista” – uma autoprojeção do espírito pequeno-burguês que nada tem a ver com a realidade dos partidos comunistas –, parece lógico que, se um político de esquerda vai para cama com grandes capitalistas, comete adultério, macula a pureza dos seus “ideais”.
Na história real do movimento comunista, ao contrário, todo idealismo é considerado uma debilidade pequeno-burguesa, e a recusa de fazer alianças necessárias à concentração de poder um pecado mortal.
“Se você tem quatro inimigos – dizia Lênin –, alie-se com três contra o quarto, depois com dois contra o terceiro, depois com um contra o segundo.”
Quanto à intimidade com o grande capital, Stálin, nos anos 30, recomendava ao partido comunista dos EUA que deixasse de lado os proletários e tratasse de conquistar os corações e mentes dos ricos e importantes (V. Stephen Koch, Double Lives).
Foi isso o que mais tarde garantiu à URSS o afluxo de dinheiro americano com que se construiu o parque industrial bélico soviético em tempo de reagir com sucesso à invasão alemã.
Concentrar poder por todos os meios possíveis Como o rótulo de “intelectual de esquerda” já esteve associado a escritores do porte de um Álvaro Lins e de um Sérgio Milliet, é bom advertir que, usado hoje em dia, ele só guarda com o seu objeto a relação distante de um ser vivo com a sua miniatura de plástico.
Nesse sentido, o sr. Mauro Luís Iasi corresponde aproximadamente àquilo que, nos meios comunopetistas, se entende por esse termo na atualidade.
Não lhe faltam, com efeito, os traços essenciais que definem o tipo: um cargo acadêmico, o total desconhecimento dos assuntos em que pontifica e a presunção de superioridade moral, quando não intelectual.
Até pouco tempo atrás, ele não passava de um objeto de consumo interno dos círculos esquerdistas, mas recentemente alcançou notoriedade mais ampla, não mediante algum feito literário ou científico, mas graças à sua proposta singela de matar todos os direitistas.
Como alguns deles lhe respondessem que seria melhor aplicar esse remédio a ele mesmo, ele imediatamente considerou isso uma prova a mais da típica truculência direitista em confronto com o arraigado pacifismo humanista da esquerda, sem nem sequer ponderar a diferença entre os coeficientes de truculência requeridos para matar um só e para matar todos.
Com aqueles ares de inocência ofendida sem os quais é muito difícil subir na vida hoje em dia, ele explicou ainda que foi muitíssimo mal interpretado, que seu desejo de matar não era nada disso, mas uma simples metáfora poética extraída de um texto de Bertolt Brecht, no qual um proletário enragé, discutindo com um burguês, demonstra que matá-lo é apenas uma questão de justiça.
“Para aqueles que não são muito afeitos a poemas e outras manifestações da alma humana, — escreve o sr. Iasi, com infinita piedade pelos pobres ignorantes — é bom explicar que não se trata de uma pessoa e outra conversando, muito menos uma posição pessoal. É uma metáfora de um encontro de classes numa situação dramática, na qual a classe dominante se encontra diante da possibilidade de ser julgada por aqueles que sempre explorou e dominou.”
O estilo é o homem. Desde logo, no trecho citado o que o proletário sugere não é apenas “julgar” a burguesia, isto é, emitir uma opinião sobre ela, mas sim executá-la, mandá-la para o outro mundo. A versão eufemística do sr. Iasi não consegue camuflar o sentido patente do texto. Diante do burguês que se afirma um homem bom e justo, o revolucionário promete:
“Em consideração aos seus méritos e boas qualidades, poremos você diante de um bom muro, atiraremos em você com uma boa bala de um bom revólver e enterraremos você com uma boa pá numa boa terra.”
ASSISTA AQUI:
O revolucionário promete não apenas matar o burguês, mas humilhá-lo post mortem fazendo chacota do seu cadáver. O sr. Iasi confessa que conheceu o poema de Brecht só pela citação que encontrou  num livro de Slavoj Zizek, mas quem leu as obras do dramaturgo sabe que esse tipo de humorismo sardônico voltado contra as vítimas da violência estatal comunista era um dos traços mais característicos do estilo brechtiano de escrever e de ser. Brecht não só aplaudiu entusiasticamente as tropas soviéticas que afogaram num banho de sangue a rebelião popular berlinense de 1953, mas, quando alguém alegou que os condenados nos famosos Processos de Moscou eram inocentes, ele respondeu: “Se eram inocentes, tanto mais mereciam ser fuzilados.”
A ironia macabra não era força de expressão. Para a mentalidade comunista, a culpa ou inocência pessoais do acusado eram, de fato, detalhes menores em comparação com a oportunidade áurea de afirmar, mediante a prepotência da execução arbitrária, a autoridade suprema da Revolução, que não devia satisfações a ninguém senão a si mesma.
A metáfora, se o fosse, não era muito metafórica. Citar Brecht no contexto de um apelo à radicalização da luta esquerdista não é de maneira alguma um adorno literário inocente: é sugerir que os comunistas façam aquilo que Brecht os ensinava a fazer e que aliás eles sempre fizeram.
Mas, para piorar um pouco as coisas, não é uma metáfora. Metáfora é quando uma coisa significa outra coisa, por exemplo o leão significa o Sol ou o Sol significa o rei. Entre o signo e o significado há  uma diferença de espécie. Quando o sr. Iasi explica que “não se trata de uma pessoa e outra conversando, muito menos uma posição pessoal” e sim de “uma metáfora de um encontro de classes numa situação dramática”, ele só prova que não sabe o que é metáfora.
Na figura de linguagem que ele emprega, o proletário e o burguês não significam coisas de outras espécies, mas sim as espécies respectivas a que eles realmente pertencem: o proletário significa o proletariado, o burguês a burguesia. Isso não é uma metáfora de maneira alguma, é uma metonímia – não uma relação analógica entre coisas especificamente distintas, mas a relação lógica entre a parte e o todo. O sentido do trecho citado não é portanto o de uma ameaça de homicídio, mas de genocídio: não é este proletário que deve matar este burguês em particular, mas o proletariado como um todo que deve exterminar a burguesia inteira.
Já é uma palhaçada deprimente que um sujeito que ignora a distinção elementar entre metáfora e metonímia pose de grande conhecedor da literatura e se dirija aos seus leitores como a um bando de iletrados que “não são muito afeitos a poemas”. Porém mais grotesco ainda é que, ao tentar dar à sua convocação truculenta os ares inofensivos de uma “metáfora poética”, ele não percebesse que, com a ajuda de Brecht, estava confessando seu desejo de saltar da escala do homicídio para a do genocídio.
Raramente uma tentativa de fazer-se de coitadinho  resultou tão flagrantemente numa confissão de culpa ampliada. Por isso é que, quando me perguntam se alguém é comunista por burrice ou por maldade, respondo que é por uma união indissolúvel das duas coisas. Nada emburrece mais do que o esforço contínuo de camuflar a própria maldade sob um travesti de inocência ofendida. E ninguém se dedica a esse esforço com mais persistência do que os comunistas.e imagináveis, inclusive mediante alianças com o “inimigo de classe”, é a obrigação número um de todo líder comunista. O sucesso que Lula obteve por esse meio é indiscutível. E é preciso ser uma espécie de PhD em idiotice para medir o coeficiente de comunismo na mente de um político com a régua de um estereótipo moralista pequeno-burguês.
Mais idiota ainda é recusar-se a chamar um comunista de comunista enquanto ele não declarar que o é. Pois nada mais constante, na história do comunismo, do que a sua persistência em parecer outra coisa, em adornar-se com outros nomes: Front Popular, antifascismo, terceiromundismo, “não alinhados”, progressismo, trabalhismo, desenvolvimentismo, o diabo.
Porém o suprassumo da  cretinice é contestar a fidelidade de Lula ao comunismo mediante a alegação de que é um larápio, um corrupto.
Qual grande líder comunista não o foi? Qual não viver como um nababo enquanto seu povo comia ratos? Qual partido comunista subiu ao poder sem propinas, sem desvio de dinheiro público, sem negócios escusos, sem roubo e chantagem? Nada mais desprezível, nos meios comunistas, do que o moralismo pequeno-burguês que se apega às regras da decência formal em vez de seguir a moral marxista segundo a qual o bem é o que aumenta o poder do Partido, o mal o que o diminui.
Corrupção? Ninguém expressou melhor a atitude comunista quanto a esse ponto do que o poeta oficial do Partido Comunista francês, Louis Aragon: “Corromperemos o Ocidente a tal ponto, que ele vai começar a feder.” Ninguém encarnou melhor esse propósito do que Luís Inácio Lula da Silva.
Pelo critério das ações objetivas, Lula entrará para a história como o grande salvador e unificador não só da esquerda brasileira, mas do movimento comunista latino-americano, que sem ele teria ido para a lata de lixo na década de 90, como bem observou o comando das Farc em mensagem enviada ao décimo-quinto aniversário do Foro de São Paulo.
Lula pode não entender grande coisa de economia marxista, mas em matéria de estratégia e tática foi o maior dos maiores, um autêntico mestre da duplicidade dialética .
Chegou ao cume com uma habilidade impressionante, que o próprio Lênin aplaudiria, e cumpriu seu papel na transição revolucionária, instaurando a hegemonia, a concentração poder político e econômico e o aparelhamento do Estado. Quem, na América Latina inteira, conseguiu fazer mais?
Perto dele, Luís Carlos Prestes e Carlos Marighela foram apenas amadores trapalhões, especialistas em fracasso.
Comparem-no, até, com Fidel Castro. Após um começo espetacular, o ditador cubano, desde o fiasco da OLAS com suas guerrilhas, se encolheu à condição de reizinho de um povo faminto e esfarrapado.
Esquecido do mundo, encalacrado na sua ilha, frustradas todas as suas ambições de revolução continental, teria morrido entre espasmos de revolta impotente se Lula não o salvasse do isolamento mediante a idéia genial do Foro de São Paulo, que realizou precisamente o que o generalíssimo jamais conseguiu: elevar ao poder os partidos comunistas e pró-comunistas nos principais países da América Latina.
Não é de estranhar que essa construção tão laboriosamente erigida começasse a desabar justamente no instante em que Lula se retirou da presidência da República, deixando no seu lugar uma trapalhona autêntica, e, debilitado pela velhice e pelas acusações de corrupção, desacelerou suas atividades no Foro de São Paulo para dedicar tempo integral à crise da esquerda local e aos seus próprios problemas com a Justiça. Sem ele, a esquerda latino-americana tem os dias contados. Todas as suas glórias foram obra dele, e sem ele vão para o beleléu.
De longe, e sob todos os aspectos, Lula foi o maior e mais eficiente líder comunista que a América Latina já conheceu – o criador e guru de Chávez, Maduro, Morales e tutti quanti, o articulador da estratégia unificada continental. A direita jamais conseguiu derrotá-lo porque jamais conseguiu compreendê-lo. E não conseguiu compreendê-lo porque insistia em descrevê-lo com os chavões jornalísticos do dia, em vez de medi-lo na escala maior da História.
Nesse sentido, Lula foi, de todas as figuras públicas do Brasil recente, a mais digna de respeito. Não pelas suas virtudes morais, que inexistem, mas pela sua “virtù” no sentido maquiavélico do termo: uma vontade de ferro aliada a uma flexibilidade estratégico-tática totalmente desprovida de escrúpulos e capaz, por isso mesmo, de dobrar a seu talante o curso da História, levando-a para onde bem deseja, ante os olhos atônitos de adversários sonsos que não conseguem nem mesmo descrever o que ele está fazendo.
Não somente em escala nacional, mas continental, o homem que nada sabia de marxismo conseguiu realizar o objetivo de Antonio Gramsci, elevando o seu partido às dimensões de “um poder onipresente e invisível como o de um imperativo categórico, de um mandamento divino”.
Ninguém, na política brasileira ou continental dos últimos quarenta anos, pode se ombrear com ele em envergadura, em capacidade de ação eficaz, em amplitude das ambições realizadas.
Os que empinam os narizinhos para depreciá-lo são como pulgas que criticam o cachorro que as transporta, sem saber para onde as leva.
Sim, ele merece respeito.  No mínimo, é como num filme que vi há tempos, cujo título me escapa, no qual o líder local de uma aldeia mexicana era tão temido e respeitado que todos o chamavam de “El Mayor”. E só na intimidade, a uma distância segura dos ouvidos do tirano, ousavam declarar o nome por extenso: “El Mayor Hijo de Puta”.

Em louvor de Lula

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de setembro de 2015

          

Na peça teatral “Processo e Morte de Stalin”, de Eugenio Corti – escritor da estatura de um Manzoni ou de um Tolstoi –, o ditador soviético convida alguns de seus ministros e assessores para um jantar na sua casa de campo, na intenção de prendê-los e sacrificá-los num dos seus célebres “expurgos”. Eles descobrem o plano e decidem virar o jogo. Desarmam os guardas da casa e já estão quase liquidando com um tiro na nuca o velho companheiro, quando surge a idéia de lhe dar uma última oportunidade de se explicar perante o tribunal do materialismo histórico.

O que se segue é uma obra-prima de argumentação dialética, na qual Stalin logra demonstrar, ante os olhos estupefatos de seus executores, que os crimes que perpetrou não foram jamais traições aos ideais revolucionários, mas sim a realização fiel, exata e genial dos princípios do marxismo-leninismo nas circunstâncias históricas dadas. Os conspiradores admitem que ele tem razão, mas resolvem matá-lo mesmo assim.

Para confirmar o dito de Karl Marx de que as tragédias históricas se repetem como farsas, alguém deveria escrever uma peça similar sobre o sr. Luiz Inácio Lula da Silva. Qualquer estudioso de marxismo que tenha feito a sua lição de casa – um tipo que, admito, é uma raridade absoluta tanto na esquerda quanto na direita hoje em dia –, tem a obrigação de perceber que, do ponto de vista da estratégia revolucionária, Lula nada fez de errado.

Ao contrário. Seguiu a receita fielmente, com um fino senso dialético das condições objetivas, dos momentos e das oportunidades, logrando realizar o quase impossível: salvar da extinção o movimento comunista latino-americano e colocá-lo no poder em uma dúzia de países. Fidel e Raul Castro jamais puseram isso em dúvida. As próprias Farc reconheceram-no enfaticamente, na carta de agradecimento que enviaram ao XV aniversário do Foro de São Paulo.

Mais ainda: no seu próprio país, Lula foi o líder e símbolo aglutinador da “revolução cultural” que deu aos esquerdistas o completo controle hegemônico das discussões públicas, ao ponto de que praticamente toda oposição ideológica desapareceu do cenário, sobrando, no máximo, as críticas administrativas e legalísticas que em nada se opunham à substância dos planos revolucionários. Isso nunca tinha acontecido antes em país nenhum. O próprio Lula, consciente da obra realizada, chegou a celebrar a mais espetacular vitória ideológica de todos os tempos ao declarar que, na eleição presidencial de 2002, o Brasil havia alcançado a perfeição da democracia: todos os candidatos eram de esquerda.

É fácil chamá-lo de ladrão, de vigarista, do diabo. Mas o fato é que essas críticas se baseiam num critério de idoneidade administrativa que só vale no quadro da “moral burguesa” e que, em toda a literatura marxista, não passa de objeto de zombaria. O que aconteceu foi apenas que Lula, como todo agente do movimento comunista internacional que não chega ao poder por meio de uma insurreição armada e sim por via eleitoral, como foi também o caso de Allende no Chile, teve de fazer alianças e concessões – inclusive e principalmente ao vocabulário da “honestidade burguesa”—com a firme intenção de jogá-las fora tão logo começassem a atrapalhar em vez de ajudar. Tanto ele quanto seu fiel escudeiro Marco Aurélio Garcia foram muito explícitos quanto a esse ponto: ele, em entrevista a Le Monde; Garcia, a La Nación.  Mover-se no meio das  ambigüidades de uma conciliação oportunista entre as exigências estratégicas do movimento revolucionário e os interesses objetivos dos aliados capitalistas de ocasião é uma das operações mais delicadas e complexas em que um líder comunista pode se meter. Mas, pelo critério dos resultados obtidos – o único que vale na luta política –, o sucesso do Foro de São Paulo é a prova cabal  de que Lênin, Stálin ou Fidel Castro, no lugar de Lula, não teriam feito melhor.

Nem mesmo o enriquecimento pessoal ilícito pode ser alegado seriamente contra ele, pelos cânones da moral revolucionária. De um lado, em todos os clássicos da literatura comunista não se encontrará uma única palavra que sugira, nem mesmo de longe, que o compromisso de fachada com a “moral burguesa” deva ser cumprido literalmente como guiamento moral da pessoa do líder, ou mesmo do menor dos militantes.

De outro lado, é fato histórico arquicomprovado que todas as estrelas maiores do cast comunista enriqueceram ilicitamente – Stalin, Mao, Fidel Castro, Pol-Pot, Allende, Ceaucescu –, sendo uma norma tácita que tinham até a obrigação de fazê-lo, de preferência com contas na Suíça, para ter os meios de resguardar-se e reiniciar a revolução no exterior em caso de fracasso do projeto local. O próprio Lênin só não chegou a poder desfrutar do estatuto de nababo porque semanas após a vitória da Revolução a sífilis terciária, cumprindo seu prazo fatal, o reduziu a um farrapo humano. Como dizia Yakov Stanislavovich Ganetsky (também chamado Hanecki), o mentor financeiro de Lênin, “a melhor maneira de destruirmos o capitalismo é nós mesmos nos tornarmos capitalistas”.

O movimento revolucionário sempre viveu do roubo, da fraude, do contrabando, dos seqüestros, do narcotráfico e, nos países democráticos onde chegou ao poder, do assalto aos cofres públicos. Lula não inventou nada, não inovou em nada, não alterou nada, apenas demonstrou uma habilidade extraordinária em aplicar truques tão velhos quanto o próprio comunismo.

No tribunal da ética revolucionária, portanto, nem uma palavra se pode dizer contra ele. As críticas só podem provir de três fontes:

a) Reacionários empedernidos, frios, desumanos e incompreensivos como o autor destas linhas, que não condenam Lula por desviar-se do movimento revolucionário e sim por permanecer fiel ao esquema de destruição civilizacional mais cínico e diabólico que o mundo já conheceu.

b) Aliados burgueses insatisfeitos de que ele viole de maneira demasiado ostensiva as regras da moral capitalista, sujando a reputação de quem só quer ajudá-lo.

c) Esquerdistas com precária formação marxista, que não entendem a natureza puramente tática da retórica burguesa de idoneidade administrativa e imaginam – ou se esforçam para imaginar diante do espelho — que a roubalheira seja uma traição aos ideais revolucionários.

Os primeiros são os únicos que dizem o português claro: a roubalheira petista não é um caso de “corrupção” igual a tantos outros que a antecederam, mas é um plano gigantesco de apropriação do dinheiro público para dar ao movimento comunista o poder total sobre o continente.

Os segundos, ideologicamente castrados, imaginam poder vencer ou controlar o comunopetismo mediante simples acusações de “corrupção” desligadas e isoladas de qualquer exame da sua retaguarda estratégica. Inclui-se aí toda a grande mídia brasileira, com a exceção de alguns colunistas mais ousados como Reinaldo Azevedo, Percival Puggina e Felipe Moura Brasil.

Os terceiros macaqueiam o discurso dos segundos na esperança de salvar a reputação do movimento revolucionário mediante o sacrifício de uns quantos “corruptos” mais visíveis. Nas suas mentes misturam-se, em doses iguais, a falsa consciência, o fingimento histérico de intenções angélicas e o desejo intenso de limpar com duas palavrinhas tardias uma vida inteira de serviços prestados ao mal.

Não espanta a pressa obscena dos segundos em celebrar estes últimos como heróis nacionais. Vêem neles uma ajuda providencial para tomar do parceiro incômodo o controle da aliança sem ter de passar por anticomunistas, uma perspectiva que os horroriza mais que o risco do paredón.

Basta! Fora!

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 11 de junho de 2015

          

Volto a explicar, agora ponto por ponto, a catástrofe estratégica monstruosa com que o PT destruiu a si mesmo e à nação.
1. No incipiente capitalismo brasileiro, as grandes empresas são quase sempre sócias do Estado, o único cliente que pode remunerá-las à altura dos serviços que prestam.
2. Por isso elas acabam se incorporando ao “estamento burocrático” de que falava Raymundo Faoro: o círculo dos “donos do poder”, que fazem da burocracia estatal o instrumento dócil dos seus interesses grupais, em vez da máquina administrativa impessoal e científica que ela é nas democracias normais.
3. Nesse sentido, o sistema econômico brasileiro não é capitalista nem socialista, mas sim patrimonialista, como destacaram, além do próprio Faoro, vários estudiosos de orientação liberal, entre os quais Ricardo Velez Rodriguez, Antonio Paim e o embaixador J. O. de Meira Penna.
4. Nos anos 70 do século passado os intelectuais de esquerda que sonhavam em formar um grande partido de massas tomaram conhecimento do livro de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder. Formação do Patronato Político Brasileiro, então lançado em aumentadíssima segunda edição, e entenderam que o curso normal da revolução brasileira não deveria ser propriamente anticapitalista, mas antipatrimonialista: o ponto focal do combate já não seria propriamente “o capitalismo”, e sim – com nomes variados — o “estamento burocrático”.
5. A definição do alvo era corretíssima, mas, ao mesmo tempo, o partido, como aliás toda a esquerda nacional, estava intoxicado de gramscismo e ansioso por tomar o poder por meio dos métodos do fundador do Partido Comunista Italiano, que preconizavam a infiltração generalizada e a “ocupação de espaços” destinadas a criar a “hegemonia”, isto é o controle do imaginário popular, da cultura, de modo a fazer do partido “o poder onipresente e invisível de um imperativo categórico, de um mandamento divino”.
6. A aplicação do esquema gramscista obteve mais sucesso no Brasil do que em qualquer outro país do mundo. Por volta dos anos 80, o modo comunopetista de pensar já havia se tornado tão habitual e quase natural entre as classes falantes no país, que os liberais e conservadores, inimigos potenciais dessa corrente, abdicaram de todo discurso próprio e, para se fazer entender, tinham de falar na linguagem do adversário, reforçando-lhe a hegemonia ideológica, mesmo quando obtinham sobre ele alguma modesta vitória eleitoral em troca. Entre os anos 90 e a década seguinte, toda política “de direita” havia desaparecido do cenário público, deixando o campo livre para a concorrência exclusiva entre frações da esquerda, separadas pela disputa de cargos apenas, sem nenhuma divergência séria no terreno ideológico ou mesmo estratégico.
7. O sucesso da operação produziu sem grandes dificuldades a vitória eleitoral de Lula numa eleição presidencial na qual, como ele próprio reconheceu, todos os candidatos eram de esquerda, o que canalizava os votos quase espontaneamente na direção daquele que personificasse o esquerdismo da maneira mais consagrada e mais típica.
8. Com Lula na Presidência, intensificou-se formidavelmente a “ocupação de espaços”, fortalecendo a hegemonia ao ponto de levar ao completo aparelhamento da máquina estatal pelo comando comunopetista, que ao mesmo tempo precisava da ajuda das grandes empresas para cumprir o compromisso assumido no Foro de São Paulo, coordenação estratégica da política comunista no continente, no sentido de amparar e salvar do naufrágio os regimes e movimentos comunistas moribundos espalhados por toda parte.
9. Inevitavelmente, assim, o próprio partido governante se transformou no “estamento burocrático” que ele havia jurado destruir. E, imbuído da fé cega nos altos propósitos que alegava, atribuiu-se em nome deles o direito de trapacear e roubar em escala incomparavelmente maior que a de todos os seus antecessores, sem admitir acima de si nenhuma autoridade moral à qual devesse prestar satisfações. O próprio sr. Lula expressou esse sentimento com candura admirável, afirmando-se o mais insuperavelmente honesto dos brasileiros, ao qual ninguém teria o direito de julgar – e isso no momento em que seu partido, abalado por uma tremenda sucessão de escândalos, já era conhecido no país todo como o partido-ladrão por excelência.
10. Assim, não apenas o PT fortaleceu o patrimonialismo, como frisou o cientista político Ricardo Velez Rodriguez, mas se transformou ele próprio na encarnação mais pura e aparentemente mais indestrutível do poder patrimonialista, soldando numa liga indissolúvel a ilimitada pretensão esquerdista ao monopólio da autoridade moral, os anseios do movimento comunista continental, os interesses de grandes grupos industriais e bancários, o aparato cultural amestrado (mídia, show business, universidades) e, last not least, o instinto de sobrevivência da classe política praticamente inteira.
11. Tal foi o resultado da síntese macabra que denominei faoro-gramscismo — a tentativa de realizar por meio da estratégia de Antonio Gramsci a revolução antipatrimonialista preconizada por Raymundo Faoro: na medida em que, ao mesmo tempo, instigava o ódio popular ao “estamento burocrático” e, por meio da “ocupação de espaços”, se transfigurava ele próprio no inimigo odiado, personificando-o com traços repugnantes aumentados até o nível do absurdo e do inimaginável, o PT acabou por atrair contra si próprio, em escala ampliada, a hostilidade justa e compreensível da população aos “donos do poder”, aos príncipes coroados do Estado cleptocrático.

imagem

“NÓS ENCONTRAMOS O INIMIGO E ELE SOMOS NÓS”, DIZ O PERSONAGEM POGO, CRIADO POR WALT KELLY(1913-1973)
12. Ao longo do processo, a “ocupação de espaços” reduziu o sistema de ensino e o conjunto das instituições de cultura a instrumentos para a formação da militância e a repressão ao livre debate de ideias, destruindo implacavelmente a alta cultura no país e, na mesma medida, estupidificando a opinião pública para desarmar sua capacidade crítica. Ao mesmo tempo, no desejo de agradar a vários “movimentos de minorias” enxertados no Brasil por organismos internacionais, o governo petista fez tudo o que podia para desmantelar o sistema dos valores mais caros à maioria da população, contribuindo para espalhar a confusão moral, a anomia e a criminalidade, esta última particularmente favorecida por legislações que não se inspiravam propriamente em Antonio Gramsci, mas numa fonte mais remota do pensamento esquerdista, a apologia do Lumpenproletariat como classe revolucionária, muito em voga nos anos 60 do século XX.
O Brasil que o PT criou é feio, miserável, repugnante, tormentoso e absolutamente insustentável. Cumprida a sua missão histórica de encarnar, personificar e amplificar o mal que denunciava, o único partido da História que fomentou uma revolução contra si mesmo tem a obrigação de ser coerente e desaparecer do cenário o mais breve possível.
Por isso a mensagem que o povo lhe envia nas ruas, nos panelaços, nas vaias e nas sondagens de opinião é hoje a mesma que, em circunstâncias muito menos deprimentes e muito menos alarmantes, surpreendeu o desastrado e atônito presidente João Goulart em 1964:
– Basta! Fora!

Veja todos os arquivos por ano