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Fora do tempo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 1o de fevereiro de 2006

Tenho dito e repetido, desde há alguns anos, que o socialismo como modelo econômico foi adiado sine die , que o movimento comunista internacional se diluiu ideologicamente de propósito para ampliar sua base de apoio e consagrar-se por inteiro ao objetivo imediato: a formação da aliança mundial anti-americana e anti-israelense. Não creio que seja uma coisa difícil de entender, nem problemática de averiguar. A idéia é simples e as fontes que a comprovam são muitas. No entanto, cada vez que volto a esse tópico, aparece alguém com a mesma resposta: “Não sou comunista, mas não quero os americanos mandando no Brasil.”

O sujeito endossa a tese dos comunistas – que o “imperialismo americano” manda no Brasil –, toma partido deles na única luta em que estão empenhados no momento, e em seguida bate no peito verde-amarelamente: “Não sou comunista!”

Mas quem está ligando para o cidadão “ser” comunista ou não? Tudo o que querem dele é que faça exatamente o que está fazendo: que acredite na balela oficial “anti-imperialista”, junte forças com a esquerda internacional, ajude a colocar o mundo sob o domínio da China, da Rússia e das ditaduras islâmicas e, em seguida, bata no peito, gritando: “Não sou comunista!”

Muita gente pensa que ainda está no tempo de Charles de Gaule, em que era viável ser conservador e anti-americano ao mesmo tempo. Naquela época, a Europa disputava com os EUA quem teria a honra de ser o protetor da civilização ocidental contra o avanço do comunismo. Os americanos achavam os europeus uns ladrões, os europeus desprezavam os americanos como bárbaros iletrados, e ambos os lados estavam de acordo num ponto: ceder à Rússia e à China, nunca. Mesmo os governos islâmicos eram uma garantia contra o comunismo. Você tinha três maneiras de ser anticomunista: era americanista, gaulista ou muçulmano.

Agora tudo mudou: a Rússia e a China não falam mais em “comunismo”. Deixaram isso para depois. Aliaram-se aos muçulmanos, ajudaram-nos a descristianizar, emascular e subjugar a Europa, e agora só têm um problema pela frente: destruir os EUA (e, de quebra, Israel). Enquanto não conseguirem isso, não voltarão a discutir “comunismo”. Para que haveriam de criar atrito com seus parceiros muçulmanos? Se o mundo será socialista, muçulmano ou socialista-muçulmano é assunto que só vai voltar à pauta quando americanos e judeus forem tirados do caminho. Para isso, a complexa parafernália da doutrina marxista sofreu um enxugamento brutal, reduzindo-se a um só item, capaz de unificar sem discussões toda a esquerda mundial: o “anti-imperialismo”, quer dizer, anti-americanismo.

É aí que o brasileirinho entra em cena, gritando contra os EUA e jurando que não é comunista. Como se alguém estivesse ligando para a sua ideologia, para as suas crenças subjetivas. Idéias só importam quando estão em grandes cabeças. De microcéfalos só se espera que ajudem a fazer número, pouco importando as diferenças subjetivas que cada um carregue, para uso próprio, no seu cérebro entorpecido.

Ainda o golpe de estado no mundo

Olavo de Carvalho


O Globo, 12 de julho de 2003

“They must to keep their certainty accuse
All that are different of a base intent;
Pull down established honour; hawk for news
Whatever their loose fantasy invent
And murmur it with bated breath, as though
The abounding gutter had been Helicon
Or calumny a song.”

(W. B. Yeats, “The leaders of the crowd”)

Desde a década de 20 a nata da intelectualidade comunista — Lukacs, Horkheimer, Adorno, Gramsci — percebeu que sua guerra não era apenas contra “o capitalismo”, mas contra um alvo bem mais vasto e difuso: a “civilização judaico-cristã”. A ampliação do objetivo implicava, porém, uma diluição do perfil ideológico do próprio movimento comunista, de modo a que pudesse absorver, sem discussões paralisantes, todas as correntes anti-ocidentais as mais heterogêneas.

Na época, isso não era viável, porque o comunismo triunfante na Rússia ia na direção contrária, buscando consolidar a ortodoxia doutrinal que sustentava a ditadura do Partido.

Para que aquela intuição se disseminasse em círculos mais amplos e se tornasse o eixo articulador de uma nova estratégia mundial, foi preciso chegar às décadas finais do século XX, quando o desmantelamento do império soviético deu razão àqueles pioneiros.

Hoje, é impossível não perceber a aliança mundial de neocomunistas, anarquistas, neonazistas, radicais islâmicos e até budistas contra os EUA e Israel, as últimas fortalezas da civilização condenada, contra a qual, literalmente, vale tudo.

Nebulosa, porém não menos atuante nesse front, é a colaboração de algumas nações européias nominalmente herdeiras do legado judaico-cristão: debilitado seu apego a valores tradicionais pela imigração maciça e por uma longa e incansável sabotagem cultural, deixam-se cegar por interesses imediatos às vezes totalmente ilusórios e se prestam a servir de instrumentos da sua própria destruição.

Também essencial é a ajuda que o esquema recebe de alguns grupos político-econômicos norte-americanos, os quais, enlouquecidos pela ambição de mandar no mundo por meio do Estado global em germe na ONU, se voltam contra o seu próprio país. Se não fosse pelo Partido Democrata, pelas fundações Rockefeller e Ford, pelo New York Times e entidades semelhantes, há muito tempo a santa aliança anti-ocidental já teria se desfeito em cacos.

Nesse vasto front, a ausência de unidade ideológica formal é uma garantia contra polêmicas internas debilitantes. Ao mesmo tempo, serve para desorientar o adversário, que não sabe ao certo contra quem está lutando. A linha divisória, com efeito, não pode ser demarcada em termos de comunismo e anticomunismo, porque os comunistas sacrificaram a urgências maiores a antiga rigidez do seu discurso; nem de capitalismo e anticapitalismo, pois há poderosos interesses capitalistas de ambos os lados; nem de Estados em conflito, porque muitos Estados têm dentro de si inimigos piores que no exterior; nem de guerra civilizacional, como pretende Samuel Huntington, pois seria absurdo jogar sobre as costas do Islam a responsabilidade por uma doutrina tão “ocidental” quanto o marxismo, ainda um fator intelectual importante na luta pela conquista mundial.

O melhor estudo a respeito é “Liberal Democracy vs. Transnational Progressivism“, de John Fonte.

Mas “progressismo transnacional” é apenas um nome provisório para designar a densa cobertura retórica de ódios irracionais e calúnias desencontradas que adorna um movimento cuja unidade estratégica é, no entanto, inegável.

Essa unidade revela-se da maneira mais patente na rapidez com que Estados, partidos, facções e ONGs das mais diversas filiações nominais acorrem disciplinadamente para apoiar todas as causas, mesmo inconexas em aparência, que sirvam para corroer as bases da civilização ocidental. Isto vai desde o anti-americanismo, o anti-israelismo, o anticristianismo explícitos, até as quotas raciais, o desarmamento civil, o casamento gay, o alarmismo ecológico, o abortismo, a imposição do vocabulário “politicamente correto”, a medicalização da sociedade e a liberação das drogas pesadas — com seu complemento dialético infalível, a proibição do tabaco. Todos esses movimentos vêm de fonte única — a intelectualidade ativista entrincheirada nos organismos internacionais –, mas entre eles o observador leigo não enxerga a menor ligação e, colaborando com a parte, não imagina estar ajudando o todo.

O ataque multilateral, além de apagar as pistas da unidade estratégica que o inspira, ainda se prevalece das vantagens da propaganda contraditória, psicologicamente mais eficaz que a persuasão coerente.

Contribui ainda para estontear o observador o fato de que as ações pautadas por essa estratégia não se executam por meio de canais uniformes de fácil identificação, mas de uma complexa rede de organizações diversas, abrangendo partidos, ONGs, jornais, canais de TV, igrejas, escolas, clínicas de psicologia, instituições assistenciais de fachada e até entidades sem existência legal como quadrilhas de traficantes, grupos guerrilheiros ou o nosso MST. Os vínculos ideológicos são aí tão evanescentes quanto são sólidas e manifestas as conexões políticas e financeiras, hoje bem conhecidas.

Nada disso é secreto, nem ao menos disfarçado: é apenas complicado demais para o observador burrinho (o que inclui boa parte das chamadas “elites”), porém simples para intelectuais do porte de Lukacs, Gramsci e seus sucessores.

Não se trata, pois, de uma “conspiração”, mas de uma aposta de grandes estrategistas na estreiteza mental de seus inimigos, os quais, não enxergando o conjunto do tabuleiro, se desgastam em esforços vãos para salvar uma parte da civilização entregando as outras: querem a democracia mas cedem ao desarmamento civil ou às quotas raciais, querem a moralização da sociedade mas cedem ao abortismo, querem a liberdade de opinião mas cedem à chantagem politicamente correta, e assim por diante. Direi que as árvores encobrem o bosque? Não. Elas encobrem o incêndio que já consumiu metade do bosque.

Colaborando com a tragédia

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 01 de janeiro de 2003

Num artigo escrito meses atrás, anunciei que era loucura avaliar a periculosidade do novo governo federal tão-somente por meio de conjeturações quanto à sua política econômica, especialmente no que diz respeito aos investimentos estrangeiros.

Lula, assegurei, nada faria de mau ao investidor estrangeiro, ao FMI ou ao governo americano. A preocupação nacional com os riscos possíveis para essas respeitáveis pessoas e instituições refletia somente a total alienação das nossas elites empresariais, incapazes de pensar desde a sua própria situação existencial e inclinadas a adotar o ponto de vista do interesse alheio, tomado ingenuamente como molde do seu.

Bem ao contrário, a primeira iniciativa do novo presidente, dizia eu, seria a de acalmar os temores estrangeiros, para assegurar a continuidade de um fluxo de capitais sem a qual a consecução de seus planos de transição para o socialismo seria paralisada por falta de proteínas.

Lula seguiria, nisso, o exemplo do próprio Lenin, que imediatamente após a tomada do poder na Rússia enviou aos países investidores o embaixador Abraham Yoffe com uma conversa calmante que funcionou na época e, traduzida em português quase ipsis litteris, funcionou de novo em 2002.

A classe dos idiotas empresariais, com seus consultores pomposos pagos para ludibriá-los, não consegue conceber a estratégia comunista senão como ruptura ostensiva com o capitalismo internacional e socialização imediata dos meios de produção. Se não vêem no horizonte uma coisa nem a outra, acreditam-se a salvo do perigo. Ora, se houve algo que nenhum regime comunista estreante jamais fez foi qualquer dessas duas coisas. Na Rússia, a socialização dos meios de produção só veio 12 anos depois da tomada do poder. Na China, 9 anos. Nesse ínterim, os investidores estrangeiros e seus sócios locais se encheram de dinheiro, acreditando que tudo tinha entrado no rumo da mais linda prosperidade capitalista.

Nenhum governante comunista, quer chegue ao poder por via revolucionária ou eleitoral, é louco de começar por mudanças econômicas radicais que podem pôr tudo a perder. A primeira fase da transição consiste justamente em deixar a economia como está, enquanto se consolida a estrutura do partido e se faz dele a espinha dorsal do Estado. O novo governo já tratou disso, ao anunciar que o PT, em vez dos ministros nomeados, preencherá as vagas na burocracia ministerial. O alcance dessa medida é incalculável, pois coloca o PT no coração do aparato estatal, uma posição que nenhum partido ocupa nas nações democráticas, e faz dele o análogo estrutural do Partido Comunista na ex-URSS ou do Partido Nazista na Alemanha de Hitler. O partido terá aí o poder absoluto, por cima da hierarquia funcional, instituindo o sistema de dupla lealdade, no qual uma carteirinha de militante valerá mais que o cargo nominal. A partidarização da burocracia é o capítulo primeiro e essencial das revoluções, sejam fascistas, nazistas ou comunistas.

Ao mesmo tempo, o novo governo precisa de sossego na área econômica para consolidar seus laços com Hugo Chávez e Fidel Castro. O fato de que, logo após sua intervenção na crise venezuelana, o sr. Marco Aurélio Garcia tenha ido diretamente a Cuba tem, decerto, importância mais que simbólica.

Enquanto o Brasil dá respaldo ao presidente venezuelano contra a população de seus próprio país, Chávez aprofunda sua dependência de Cuba, entregando a agentes da DGI (serviço secreto cubano) a direção de importantes áreas da segurança interna. Segundo a revista Insight, até terroristas islâmicos foram chamados para ocupar posições no esquema policial-militar que está sendo criado para esmagar a resistência venezuelana. É esse o regime com que o nosso governo está solidário, indiferente ao fato de que o clamor popular contra Chávez é mil vezes maior do que aquele que aqui bastou para legitimar a derrubada de Collor (sem que nenhum Lula, na época, chamasse a isso “golpe”). A inserção estratégica do Brasil nessa malha é uma operação complexa e delicada demais para que o novo governo possa empreendê-la sem sentir-se livre de conflitos na área econômica. Mas, aí, ele não terá mesmo com que se preocupar. O imediatismo insano do nosso empresariado fará dele um dócil colaborador daquilo que, a médio prazo, será uma tragédia de proporções colossais.

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