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O espírito da clandestinidade

Olavo de Carvalho

O Globo, 24 de Março de 2001

Quando os comunistas sobem ao poder na Rússia em 1917, eles trazem várias décadas de experiência da clandestinidade e nenhuma experiência da política “normal”, da legalidade democrática vigente nos maiores países europeus e na América. A conseqüência imediata foi que levaram para o governo as técnicas e hábitos da luta clandestina. “Governo revolucionário”, no caso, veio a significar: governo por meios de ação clandestinos: ocultação, traição, engodo, perfídia. O lutador clandestino é aquele que se permite tudo, que não tem compromisso com nenhuma ordem legal ou moral exterior, que inventa livremente sua regra conforme os interesses e contingências da luta pelo poder.

O que distinguiu o poder soviético nascente foi menos o emprego da violência do que o caráter deliberado e calculista da sua brutalidade. Lênin e Djerzhinzski, o chefe da polícia secreta, estavam persuadidos de que a violência funcionava sobretudo pelo seu impacto psicológico, pelo terror que infundia às multidões. Por isto adotaram métodos de uma crueldade que, para a opinião pública civilizada, era simplesmente inimaginável.

O empalamento de prisioneiros foi um deles. Empalamentos são raridade estranha na história ocidental. O conde Vlad, guerreiro romeno mitificado como Drácula, empregou-os contra os invasores turcos porque, usuários habituais dessa prática, eles a temiam acima de tudo. Na opinião dele, era empalar ou ser empalado. O requinte soviético foi que os candidatos a empalamento não foram escolhidos entre empaladores em potencial, mas entre padres e monges, para escandalizar os fiéis e fazê-los perder a confiança na religião, segundo a meta leninista de “extirpar o cristianismo da face da Terra”.

Também as inovações socialistas em matéria de tortura desafiam a imaginação do homem normal. Esfolar prisioneiros, fechá-los numa tumba junto com cadáveres em decomposição, colocá-los na ponta de uma prancha e escorregá-los lentamente para dentro de uma fornalha, encostar na sua barriga uma gaiola sem fundo, com um rato dentro, e em seguida aquecer com a chama de uma vela o traseiro do rato para que, sem saída, ele roesse o caminho no corpo da vítima – eis alguns dos processos então documentados por uma comissão de investigação dos países aliados.

Quem se interessar por esses fatos poderá consultar “A People’s Tragedy: The Russian Revolution 1891-1924” (London, Jonathan Cape, 1996), de Orlando Figes, um dos melhores estudos sobre o período, bem como o clássico depoimento de Sergei P. Melgounov, “The Red Terror in Russia” (London, J. M. Dent, 1925).

Naturalmente serei acusado de mau gosto por relembrar essa parte da história, bem conhecida porém propositadamente esquecida. Mas o esquecimento proposital, com todo o bom gosto que se alegue para justificá-lo, é parte do crime: é o recalque que consolida a neurose e eterniza a repetição dos sintomas. Para ver como isso funciona, basta notar como, desde então, os próprios socialistas se esmeraram em fazer um tremendo escarcéu publicitário em torno de denúncias de tortura, verdadeiras ou falsas, contra ditaduras que, em matéria de truculência, não têm gabarito para concorrer com a tradição leninista. Ninguém tem mais força e eloqüência na retórica de acusação do que o criminoso que oculta suas próprias culpas: ele sabe quanto a revelação de seus crimes o tornaria odioso, por isso é tão hábil em desenhar uma imagem odiosa de seus adversários. Ele tem estampado na alma o modelo do seu discurso.

É assim que se explica que sejam sobretudo os adeptos e servidores locais do regime cubano que exibem em público as mais patéticas emoções do escândalo ao falar das violências do nosso regime militar. Toda tortura é odiosa, mas não consta que a nossa ditadura tenha recorrido sistematicamente a mutilações de prisioneiros, ao passo que o canal dos exilados cubanos, TV Martí, exibe semanalmente uma procissão infindável de dedos cortados, orelhas arrancadas e olhos vazados que atestam a continuidade do leninismo nas prisões políticas de Havana.

É precisamente a consciência reprimida da sua cumplicidade moral com tais crimes que infunde nessas pessoas, pelo arquiconhecido mecanismo de inculpação projetiva, o fogo da eloqüência com que fazem brilhar ante os olhos da multidão o esplendor macabro de crimes incomparavelmente menores.

De modo análogo, a onda mundial de protestos em torno da morte de Orlando Letellier, assassinado no exílio por agentes da ditadura chilena, serviu para acabar de apagar da memória popular o fato de que a prática de mandar matar oposicionistas no exterior foi uma invenção de Lênin — invenção que fez algumas centenas de vítimas em Paris e Londres logo na primeira década da Revolução, e cujo uso se prolongou comprovadamente pelo menos até os anos 50, com o assassinato do general Walter Krivitsky num hotel em Washington.

Nenhum desses episódios teve repercussão publicitária nem de longe comparável à do caso Letellier. Como é possível que um único homicídio suscite mais revolta que centenas deles? A explicação é que a indignação do ser humano normal contra o crime e a violência é mista daquela tristeza que inclina antes ao silêncio do que às grandes efusões de lágrimas públicas: ela jamais pode concorrer, em teatralismo midiático, com as emoções fingidas de sociopatas.

Foi precisamente a síntese indissolúvel de crueldade e fingimento, a mistura de barbárie e cerebralismo, de ação oculta e publicidade histérica que caracterizou o primeiro governo socialista da Rússia, depois imitado fielmente por todos os socialismos revolucionários subseqüentes, da Ásia à América Latina.

O que o socialismo trouxe de novidade ao mundo foi um estilo inédito de ação política, radicalmente diferente de tudo quanto a civilização do Ocidente houvesse conhecido até então. O impacto dessa novidade abriu para o homem do século XX um abismo de oportunidades de degradação moral e espiritual que ultrapassavam, em horror e crueldade, tudo o que a humanidade anterior pudesse imaginar. A história desse século, o mais sangrento da história humana, seria inexplicável sem esse precedente aberto pelo revolucionário que sobe ao governo e leva consigo, para dentro do aparelho de estado, o espírito da clandestinidade.

O leninismo eterno

Olavo de Carvalho

O Globo, 11 de novembro de 2000

Durante anos a imprensa ocidental assegurou que havia um grave conflito entre os governos socialistas da Rússia e da Albânia. A fonte da notícia eram as rádios estatais dos dois países, captadas pelo serviço secreto americano, que transmitiam pesadas recriminações mútuas entre os déspotas soviéticos e os altivos governantes de uma naçãozinha que se cansara de ser satélite. As dissensões internas, afirmavam os comentaristas, prenunciavam a dissolução do monolito soviético, a modernização do regime, a abertura ao Ocidente, o retorno das liberdades civis. Enquanto isso, o intercâmbio diplomático e comercial entre Rússia e Albânia continuava normalmente, os representantes de cada lado eram bem recebidos no outro, mas a imprensa de Nova York e Londres explicava que eles estavam apenas tentando “resolver suas divergências”.

Passados 40 anos, ex-agentes da KGB revelaram que as emissões da rádio albanesa, além de vir em língua praticamente desconhecida na Rússia, só eram ouvidas em Moscou pelos funcionários do serviço secreto, ao passo que as russas nem sequer chegavam até a Albânia, porque não havia retransmissão pelas torres locais. A troca de insultos tinha sido, enfim, uma emissão exclusiva para o público ocidental…

Os habitantes de países democráticos, onde os jornalistas vasculham tudo e a oposição revela documentos secretos dos órgãos de segurança para esculhambar com o Governo, dificilmente podem imaginar a facilidade com que um regime totalitário, controlando as fontes de informação, logra impor, para aquém ou além de suas fronteiras, uma imagem totalmente falsa do que nele se passa.

De modo mais geral, o movimento socialista, no poder ou fora dele, notabilizou-se pelo talento de mostrar-se tanto mais dividido e debilitado – e por isto mesmo menos ortodoxo e mais aberto a inovações democráticas – justamente nos momentos em que mais estreitamente cerrava fileiras para um esforço conjunto em estratégias de longo prazo.

Poucos não-militantes compreendem o sentido dialético do raciocínio socialista, onde cada decisão traz em seu bojo o resultado oposto, calculado para germinar em segredo e vir à luz de repente, pronto e realizado, como se surgido do nada, confundindo e paralisando os adversários. Pelo menos três vezes o truque obteve sucesso em escala planetária, levando o mundo a acreditar que o socialismo havia desistido de sua ortodoxia e de seus planos de expansão, precisamente quando ele se preparava para ampliar seus domínios e exercer sobre eles um controle ainda mais rígido.

A primeira foi em 1921, quando Lenin abriu a Rússia aos investimentos estrangeiros. Foi uma onda mundial de alívio. Capitais acorreram em profusão, celebrando o fim do pesadelo revolucionário. Quando a injeção acabou de produzir seus efeitos curativos sobre a economia russa, veio a brutal antítese dialética: a repentina estatização total da indústria, dos bancos e da agricultura, a consolidação do Estado policial.

A segunda foi a dissolução do Comintern, em maio de 1943, um aceno de boa vontade aos aliados antinazistas, que o interpretaram como prova de que o comunismo abandonara suas ambições revolucionárias e se transformara em puro progressismo patriótico. Franklin Roosevelt chegou a assegurar que Stalin não era comunista de maneira alguma. O resultado, logo depois, foi a ocupação de meia Europa pelos exércitos soviéticos e a implantação do comunismo na China.

A terceira foi a “desestalinização”, em 1956, entre aplausos gerais do Ocidente à cansada ideologia revolucionária que generosamente abdicava de si mesma. Resultados: revolução cubana e expansão formidável do socialismo na Ásia e na África.

Por isso mesmo, não é nada estranho que, quanto mais a esquerda brasileira proclama seu estado de divisão, a perda de sua identidade ideológica e sua conseqüente disposição de abrir-se à modernização capitalista, mais firme e coesa ela avance rumo à conquista do poder, mais ela consolida seu braço armado, seu serviço de espionagem, sua posição de mando na mídia e seu domínio sobre a linguagem, o imaginário e as reações emocionais das classes cultas.

Ninguém mais, fora da esquerda, sabe o que é dialética ou como funciona o princípio leninista do “centralismo democrático”. Por isso ninguém entende que uma aparência de anarquia e pluralismo é a melhor e a mais tradicional fachada para a consecução de uma estratégia unitária de longo prazo.

Pela mesma razão, todas as análises do desempenho eleitoral do PT que li até agora se dividem em duas espécies: metade é falta de informação, a outra metade é desinformação.

Solidamente protegida da luz pela geral ignorância de seus métodos, a estratégia, no entanto, às vezes deixa o rabo à mostra. Numa entrevista recente, o sr. Luiz Inácio Lula da Silva, após dar por implícito que a meta do PT é o socialismo, rejeitou categoricamente a hipótese de uma social-democracia, inviável, segundo ele, num país tão pobre (ou que tal lhe parece). Mas um socialismo, se não é social-democracia, que raio de coisa há de ser senão o bom e velho leninismo?

A velha alucinação

Olavo de Carvalho

Época, 22 de julho de 2000

Cada nova geração de comunistas começa dizendo que os antecessores não entenderam nada

Cada geração de comunistas vive de renegar as antecessoras. O próprio marxismo nasceu de uma crítica arrasadora a seus precursores “utópicos”. Marx prometia que daí para a frente tudo ia ser tremendamente científico, e para isso começou por esconder os dados econômicos recentes, já que as estatísticas atrasadas de 30 anos eram mais apropriadas a sua teoria.

Por esse rigoroso método ele descobriu que uma revolução comunista só podia acontecer num país cheio de proletários. Não era o caso da Rússia, que só tinha condes, camponeses, empregados públicos e estudantes – uma corja de reacionários e oportunistas. Mas, para Vladimir I. Lênin, isso não era problema. Se a Rússia tinha poucos proletários, tinha muitos comunistas: bastava o Partido fazer a revolução em nome dos futuros proletários e, quando estes nascessem, seriam informados, nos bercinhos, de que estavam no poder fazia um tempão. O leninismo formou a classe governante mais poderosa, organizada e implacável que já existiu (implacável até consigo mesma: ninguém no mundo matou mais comunistas do que eles próprios). Quando a revolução estava consolidada e os proletariozinhos começaram a brotar, disseram-lhes que não havia mais vagas na Nomenklatura.

Todavia, a Revolução Russa não desmentiu completamente Marx. Sob um aspecto ela lhe foi bem fiel. Ele dizia que no campo só havia reacionários, um “lixo étnico” (sic) que devia ser varrido do higiênico mundo futuro. Os camponeses russos confirmaram isso em toda a linha, resistindo tenazmente à política anti-religiosa e à coletivização da agricultura, o que obrigou o governo a liquidá-los às pencas.

Na China, porém, o exército revolucionário de Mao Tsé-tung, expulso das cidades, teve de se embrenhar no mato e ficou sem proletários nem funcionários públicos por perto. Daí o Grande Mao tirou a conclusão de que os homens do campo eram os bichos mais revolucionários do planeta, a verdadeira essência mística do proletariado. A nova doutrina estava tão certa que, para tomar e exercer o poder em nome dos camponeses, Mao teve de mandar matar apenas 60 milhões deles.

Mas, para o “eurocomunismo” que veio em seguida, todas essas estratégias históricas não passavam de ilusões. Real, mesmo, só o esquema de infiltração pacífica propugnado por Antonio Gramsci, segundo o qual a revolução seria feita com potes de anestésico – sorrateiramente, sem que ninguém percebesse. Violência, se preciso, só depois, com todos os confortos e garantias do poder. A “revolução passiva” que ele anunciava, porém, foi tão passiva que não aconteceu. O estoque de anestésicos foi ingerido pelos próprios comunistas, que só acordaram com o estrondo da queda do Muro de Berlim.

Cada geração de comunistas começa dizendo que os antecessores não entenderam bem o espírito da coisa, mas que, agora sim, os malditos capitalistas vão ver o que é bom para tosse. Entre fracassos hediondos e sucessos macabros, assim caminha a humanidade: é o eterno script da novela revolucionária. Mas não faz mal. Que são umas dezenas de milhões de mortos como preço da mais fascinante experiência alucinógena que já se inventou?

Por isso, quando ouço falar de uma nova safra de comunistas, saco logo do meu passaporte.

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