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O leite das crianças

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 2 de outubro de 2005

Recentemente alertei aqui contra o uso abusivo de expressões como “lobby das armas” e similares, criadas para incutir no público a impressão de que a luta pelo direito aos meios de legítima defesa é empreendida a soldo de interesses bilionários vagamente perversos, enquanto o desarmamentismo vem de puros ideais brotados espontaneamente no jardim das belas almas.

Onde quer que você leia essas coisas, pode ter a certeza de que está sendo vítima de exploração da boa-fé popular.

Nunca as belas almas forneceram o nome de um só grupo financeiro por trás do antidesarmamentismo, nem poderiam fazê-lo, pelo simples fato de que não há nenhum. Em compensação, nada mais fácil do que nomear os interesses bilionários por trás do lobby desarmamentista – este sim, um verdadeiro lobby .

Outro dia, por exemplo, no Globo , o cientista político Gláucio Ari Dillon Soares, respondendo com quatro pedras na mão a um artigo antidesarmamentista do filósofo Denis Rosenfield, não só fez uso da expressão capciosa como chegou a atribuir as altas taxas de criminalidade em São Paulo, num certo período, ao que ele insinua ser o império local do “lobby das armas”.

Nada preciso responder às alegações do prof. Soares. Rosenfield dará conta delas sem a menor dificuldade. Atenho-me ao detalhe estilístico. “Lobby”, no vocabulário político, significa um conjunto orquestrado de pressões subsidiadas pelas partes interessadas. Mas a única indústria possivelmente interessada no comércio legal de armas no Brasil tem o governo como cliente principal e quase único, faltando-lhe razões para se opor ao desarmamentismo oficial. A campanha contra o confisco dos meios de defesa é uma confluência de políticos oposicionistas e de um punhado de pequenos grupos de cidadãos auto-organizados, sem nenhum respaldo financeiro considerável e em luta desigual contra a santa aliança de mega-empresas jornalísticas, fundações estrangeiras e organismos internacionais como a ONU e a Unesco.

Não existe nenhum “lobby das armas”, exceto, é claro, o dos contrabandistas, que nada têm a perder e tudo a ganhar com a proibição do comércio legal. Indiferente a esse fato, o prof. Soares joga a expressão no ar, seguro da sua eficácia psicológica automática criada por anos de repetição obsessiva, sem nem de longe tentar lhe dar alguma substância factual aliás impossível. É o procedimento-padrão da vigarice intelectual organizada, que já analisei anos atrás tomando como exemplo uns trechos da filosofante Marilena Chauí.

Mas o prof. Soares não age assim por pura maldade. Ele tem razões sérias para fazê-lo, razões do tipo que a fala popular resume na expressão “o leite das crianças”. De profissão, ele é pesquisador do Iuperj, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, vivendo das verbas dessa entidade. De onde vêm elas? Faça o leitor uma experiência. Ligue o computador, vá até a página do Google e clique o nome “Iuperj” junto com o das fundações Ford, Rockefeller, Open Society (George Soros), Carnegie e similares, financiadoras do desarmamentismo em escala mundial. Descobrirá que o instituto carioca não teria subsistido um só dia sem a ajuda dessas entidades, seja fornecida diretamente, seja através de verbas e bolsas concedidas individualmente aos pesquisadores que ali trabalham. Para atenuar essa evidência, pode-se alegar, é claro, que a parte mais substantiva do dinheiro do Iuperj não vem daí, mas do Finep. Tenha então o leitor a bondade de repetir a experiência clicando Finep e Ford, Finep e Rockefeller, etc. Verificará o óbvio: que por vias diretas ou indiretas, o dinheiro chega lá. Mesmo sem levar em conta que o Finep é órgão de um governo abertamente desarmamentista, que aliás também engorda o Iuperj por via do sempre generoso BNDES, será impossível fugir à conclusão de que, fora o dos contrabandistas, que prefere agir em silêncio, o único lobby bilionário presente no debate é o lobby anti-armas, que fornece ao prof. Soares o leite das crianças.

Sabendo das conotações sinistras adquiridas pelo termo lobby no vocabulário corrente da mídia, o prof. Soares então utiliza contra Denis Rosenfield o velho truque recomendado por Lênin para o trato com os inimigos do comunismo: “Acuse-os do que você faz. Xingue-os do que você é.”

Isso, no Brasil, é o máximo de honestidade intelectual que se pode esperar do esquerdismo acadêmico.

Debate assimétrico

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 12 de junho de 2005

O debate político americano opõe duas correntes bem diferenciadas sob o ponto de vista político, econômico, moral, cultural e religioso. De um lado, os “liberals”, ou esquerdistas, com seu programa de intervencionismo estatal, assistencialismo, secularismo, feminismo, multiculturalismo, abortismo etc. De outro, os “conservadores”, com sua defesa da liberdade econômica, do federalismo, da independência individual e da moral judaico-cristã. São duas cosmovisões completas que se enfrentam em todos os domínios de pensamento e de ação, com meios de expressão distribuídos de maneira mais ou menos eqüitativa, com alguma vantagem para a esquerda na grande mídia e no establishment cultural, para a direita na internet e no rádio (só o comentarista Rush Limbaugh, com seus 38 milhões de ouvintes diários, supera a soma das tiragens de todos os jornais esquerdistas chiques de Nova York). A essas correntes de idéias correspondem duas orientações geopolíticas — a esquerda é globalista, a direita nacionalista – e dois esquemas de poder claramente difenciados: o projeto de governo mundial da ONU e o “novo século americano” de George W, Bush (esclarecerei isso melhor num próximo artigo). Por fim, esses dois esquemas têm fontes de sustentação econômica nitidamente distintas: de um lado, George Soros e as mega-fundações tipo Rockefeller e Ford, de outro a indústria petrolífera e o “dinheiro novo”, como o chamava Ronald Reagan, de milhares de pequenos capitalistas em ascensão.

Embora a fronteira entre os dois campos não coincida plenamente com a linha divisória entre democratas e republicanos, o público americano reconhece facilmente os porta-vozes de um e de outro e compreende a natureza do que está em jogo na sua disputa. O que está em jogo não é só o destino dos EUA, mas da humanidade: a luta política americana expressa o resumo perfeito das alternativas com que a espécie humana como um todo se defronta neste começo de século.

Já o debate político brasileiro se caracteriza pela flagrante assimetria. A esquerda dominante, como sua similar americana, combate em todos os fronts – da política econômica ao casamento gay –, com uma persistência e uma agressividade inesgotáveis, enquanto seus adversários, quando não se contentam com a defesa quase envergonhada de interesses grupais ofendidos ou com críticas pontuais de ordem jurídico-administrativa sem nenhum alcance ideológico, chegam, na mais ousada das hipóteses, a argumentar em favor da economia de mercado. Em todos os demais pontos da linha de combate, omitem-se por completo ou aderem logo às teses do secularismo esquerdista, fazendo de conta que as questões educacionais, morais, culturais, filosóficas, religiosas ou civilizacionais não têm a mínima importância num confronto que, em essência, consiste em economia e nada mais.

O primeiro resultado que obtêm com isso é que soam ridículos quando acusam o marxismo de economicista.

O segundo resultado é que convencem a população de que os adeptos do capitalismo só pensam em dinheiro, enquanto seus adversários socialistas estão preocupados com elevadas questões de interesse filosófico e humanitário.

O terceiro resultado é que, descompassado com o debate americano, o bate-boca nacional só serve para cavar mais fundo o abismo entre o Brasil e o universo historicamente significativo, ajudando o establishment esquerdista a fechar o país cada vez mais no círculo compressivo da auto-sugestão.

O quarto resultado é um pouco mais sutil, mas não menos desastroso. Como a estratégia socialista já desistiu faz tempo da estatização total da economia, admitindo a necessidade de reservar pelo menos algum espaço para as empresas privadas, a defesa da economia de mercado é facilmente absorvida e instrumentalizada pelo establishment esquerdista, que pode repetir “ipsis litteris” cada palavra do ideário econômico liberal sem com isso fazer nenhum mal a si mesmo. Desprovido de sua substância cultural, moral ou religiosa, o discurso liberal pode tornar-se nada mais que uma forma inconsciente de colaboracionismo.

A salvação deste país depende de que os adeptos da economia capitalista percam sua inibição de defender, junto com ela, os valores morais, culturais e religiosos que tornaram possível o florescimento dela nos EUA e na Europa.

Tirando a dúvida

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 29 de maio de 2005

Quando um chavão pejorativo reaparece com insistência nas bocas dos vários porta-vozes de uma causa, fixando hipnoticamente a atenção do público num determinado traço odioso da figura adversária, o mínimo de prudência recomenda suspeitar que não se trata de uma polêmica normal, mas de uma campanha de propaganda enganosa.

Suspeita não é, evidentemente, certeza. Pode ser tudo uma infeliz coincidência estilística.

O método para tirar a dúvida é simples. Verifique se o rótulo tem alguma correspondência com a realidade. Se o insultado tem de fato a má qualidade apontada e se ela é tão proeminente que olhando para ele dificilmente se repare em outra coisa, a repetição do insulto talvez traduza apenas a uniformidade de uma impressão geral correta. Milhares de brasileiros repetem que o presidente Lula é campeão internacional de gafes, e não há nisso nenhuma campanha contra ele, apenas a constatação repetida de fatos notórios.

Mas, se o defeito indicado não é saliente a esse ponto, se, ao contrário, ele não é evidente de maneira alguma e, pior ainda, se sua presença no personagem acusado não pode ser comprovada por nenhum meio legítimo, então é claro que a insistência grupal em apontá-lo revela um intuito uniforme e organizado de conquistar o público para uma opinião difamatória, utilizando um cacoete de linguagem para criar um cacoete de pensamento.

A expressão “poderoso lobby da indústria de armas”, que quase infalivelmente reaparece nos discursos dos desarmamentistas para carimbar os adversários da sua campanha como paus-mandados a serviços de interesses milionários, entra nitidamente nessa categoria. Isso pode ser averiguado facilmente pelo método acima apontado.

Desde logo, os usuários desse chavão empregam-no sempre de maneira vaga e genérica, sem jamais esclarecer a quais indústrias de armas se referem nem muito menos qual a ligação delas com as entidades que reagem ao desarmamento.

O motivo é muito simples: não há nenhuma indústria de armas financiando a luta contra o desarmamento. O Brasil tem uma única empresa fabricante de armas, cujo maior e quase único cliente no território nacional é o governo, isto é, o chefe mesmo da campanha desarmamentista.

Quanto a empresas estrangeiras, não existe o mínimo indício de que alguma delas tenha contribuído para as escassas e pobres organizações pró-armas, nem muito menos de que tenha feito algum esforço sério para conquistar o mercado brasileiro.

Em compensação, os financiadores da campanha desarmamentista em todo o mundo são bem conhecidos: ONU, Comunidade Européia, Fundação Ford, Fundação Rockefeller e entidades similares, além do sr. George Soros, é claro.

Quem, então, é o “poderoso lobby”?

Outro dia, no Rio, as colunas sociais noticiaram uma reunião festiva de desarmamentistas chiques. A chamada “nata da sociedade” compareceu ao evento para dar seu apoio à bela causa personificada pelo Dr. Rubem César Fernandes, aquele mesmo que alardeava que o desarmamento iria diminuir a criminalidade e, uma vez obtida a persuasão geral, declarou candidamente que se tratava de um geral auto-engano.

A festa transcorreu sem o menor incidente, mesmo porque o prédio onde se realizava ficou cercado de seguranças armados, zelosos na sua tarefa de proteger as vidas e os bens dos convidados.

Como a lei do desarmamento só proíbe armas pessoais, não seguranças armados, ela terá por efeito imediato e incontornável a divisão dos cidadãos brasileiros em duas classes: a maioria desarmada, que o governo confessa não ter condições de proteger, e a minoria armada até os dentes, que não precisará de proteção oficial porque tem meios de se proteger a si mesma.

É ou não é para o beautiful people comemorar desde já?

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