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Feliz Ano Novo? Que cinismo!

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de dezembro de 2005

O Brasil entra em 2006 nas seguintes condições:

(1) O governo federal está nas mãos de um partido que, subindo ao poder sobre os cadáveres das reputações de seus adversários, usou de sua fama de restaurador da moralidade como camuflagem para poder criar o mais vasto e eficaz sistema de corrupção política já observado neste país.

(2) Ao longo de sua ascensão, apoiada na hegemonia previamente conquistada pela “revolução cultural” gramsciana, esse partido desarmou completamente seus possíveis adversários ideológicos, ao ponto de nas eleições presidenciais de 2002 seu candidato não ter de concorrer senão com imitadores do seu discurso, cada um tentando provar que era o mais esquerdista dos quatro. E tão completo era o domínio exercido pela esquerda sobre a mentalidade pública, que essa disputa em família, com total exclusão de discordância ideológica por mais mínima que fosse, foi celebrada por toda a mídia cúmplice como “a mais democrática de toda a nossa História”. Neurose, dizia um grande psicólogo que conheci, é uma mentira esquecida na qual você ainda acredita. O Brasil continuará doente enquanto não recordar e desmascarar a farsa com que aceitou alegremente colaborar em 2002.

(3) O deslocamento do fiel da balança para a esquerda falseou todo o quadro das opções políticas, ao ponto de que hoje a hipótese mesma de um discurso de direita, na linha do Partido Republicano americano ou do Partido Conservador inglês, se tornou inviável e inconcebível no Brasil. O máximo de direitismo admitido é o do PSDB, partido pertencente à Internacional Socialista e comprometido a implantar no Brasil todas as mutações sociais e culturais defendidas pela esquerda mundial, como o abortismo, o casamento gay, o “direito alternativo” etc. Eliminada a possibilidade de divergências de fundo, sobraram apenas a disputa de cargos e o bombardeio mútuo de acusações de corrupção: a política reduziu-se a um bate-boca entre quadrilhas de ladrões. O PFL, que poderia ter representado a alternativa ideológica ao consenso socialista, abdicou de seu dever e acomodou-se à função de tropa auxiliar de uma das quadrilhas.

(4) Como nem a esquerda petista nem seus adversários tucanos conseguiram conceber nenhuma alternativa viável à política econômica “ortodoxa” do FMI, esta se mantém como orientação dominante desde o governo FHC, sem perspectiva de ser abandonada por qualquer das facções que suba ao poder. À sombra da estabilidade econômica, erigida em único bem digno de ser preservado, a máquina de subversão instalada no governo está livre para transformar o sistema judiciário em instrumento da luta de classes, o ensino público em pregação do ódio anticapitalista, as instituições de cultura em megafones do discurso comunista mais estúpido e grosseiro que o mundo já ouviu. Ninguém liga. A lepra socialista pode se alastrar por todo o corpo da sociedade, dominar as consciências, perverter todas as relações humanas. Enquanto não mexer diretamente nas contas bancárias dos senhores barões, estes continuarão achando tudo lindo. A classe chamada dominante já não domina nada há muito tempo, está cercada e acuada, reduzida a viver de favores mendigados à elite comunista, mas como ainda tem dinheiro para gastar em Londres e Nova York, mantém a pose. E se tentamos lhe explicar o perigo que corre, responde com a clássica reação do covarde orgulhoso: estrangula o mensageiro das más notícias.

(5) A criminalidade triunfante já ultrapassou de há muito os limites dentro dos quais podia ainda se considerar um problema corrigível. Tornou-se um fato consumado, uma constante da natureza, um modo de ser, uma instituição. Segundo dados oficiais da ONU, são 50 mil homicídios por ano. Segundo pesquisas locais do jornalista espanhol Luís Mir, 150 mil. A polícia, intimidada pela superioridade bélica dos narcotraficantes e sobretudo pelo temor que lhe inspira o olhar malicioso da classe jornalística, se ocupa apenas de sobreviver e mostrar-se o mais inofensiva possível. Enquanto isso, o governo continua de namoro com as FARC e a intelectualidade esquerdista clama pela libertação de qualquer agente da narcoguerrilha colombiana que por acaso vá parar na cadeia, onde aliás é poupado de qualquer pergunta comprometedora.

(6) As Forças Armadas, enfraquecidas por sucessivos cortes de verbas, humilhadas e aviltadas por mentiras escabrosas alardeadas na mídia, começam a reagir como vítimas da síndrome de Estocolmo: distribuem condecorações a seus acusadores e buscam lisonjeá-los mediante efusões de anti-americanismo pseudopatriótico (o brigadeiro Ferola e a ESG em geral são ótimos nisso), na esperança de desviar contra um inimigo comum a hostilidade do establishment esquerdista ante o qual generais de inumeráveis estrelas tremem como dozelas assustadas.

(7) Os tribunais são dominados por juízes semi-analfabetos que abertamente desprezam a lei em nome de suas convicções políticas improvisadas, achando que a mais alta missão da Justiça é punir os capitalistas como exploradores do proletariado e libertar os assassinos e narcotraficantes como vítimas da sociedade malvada.

(8) Curiosamente, a maioria da população permanece apegada aos ideais proibidos: moral judaico-cristã, propriedade privada, direito de portar armas etc. Mas já não há ninguém que fale em nome dessa maioria. Mesmo os que compartilham das crenças populares não ousam defendê-las abertamente. O imenso espaço que a decadência de tudo o mais abre para o ingresso de um autêntico partido conservador no cenário nacional não tem quem o preencha. Conservadorismo significa fidelidade, constância, firmeza. Não é coisa para homens de geléia.

(9) Culturalmente, o Brasil está morto e enterrado. Já não tem nada em comum com aquele país dos anos 30-60, que se espelhava numa geração de escritores, pensadores e artistas capazes de ombrear-se aos de qualquer nação do mundo. Na época, “cultura” significava Gilberto Freyre, Graciliano Ramos, Marques Rebelo, Annibal M. Machado, José Guilherme Merquior, Nelson Rodrigues, Heitor Villa-Lobos, Herberto Sales, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Miguel Reale, Vicente Ferreira da Silva, Mário Ferreira dos Santos, Otto Maria Carpeaux, Gustavo Corção. Álvaro Lins, Augusto Meyer. Hoje cultura é o sr. Gilberto Gil, um pseudo-intelectual de miolo mole segundo ele próprio admite, não sem certo orgulho. Os discípulos da grande geração – Carlos Heitor Cony, João Ubaldo Ribeiro – esgotam-se na indecisão entre a fidelidade à consciência literária, que requer a sinceridade das “impressões autênticas”, como as chamava Saul Bellow, e o desejo de agradar os amigos bem situados na vida. Escritores e poetas autênticos – Alberto da Cunha Melo, César Leal, Ângelo Monteiro — vegetam na província, mais ignorados nos grandes centros do que o seriam nos tempos da Colônia. E o gênio fulgurante de Bruno Tolentino, sumido dos debates públicos, desprezado por suplementeiros literários que não seriam dignos de lhe amarrar os sapatos, vai se conformando com um papel obscuro, esquecido da missão de educador literário do Brasil, que um dia lhe coube por natureza e direito.

(10) Espiritualmente, a alma nacional oscila entre o oportunismo sociopático transformado em Ersatz do senso prático e o ódio político transfigurado em sucedâneo da moralidade. Ensinado nas escolas a papaguear slogans politicamente corretos, obrigado por lei a considerar que o canibalismo, os sacrifícios humanos ou rituais para tornar os inimigos sexualmente impotentes são expressões religiosas tão respeitáveis quanto a fidelidade judaica e a piedade cristã, o povo ainda não abdicou de seus velhos sentimentos morais, mas só os vive na esfera dos sonhos, incapaz de lhes dar a menor expressão concreta na vida real. O Papa João Paulo II acertou na mosca quando disse que “os brasileiros são cristãos na emoção, mas não na fé”. Quando querem expressar sua emoção religiosa em atos e palavras, a única linguagem que lhes resta é a da teologia da libertação ou a daquela velha mistura, tipicamente brasileira, de mística positivista-evolucionista, ocultismo vulgar e pseudomessianismo nacionalisteiro.

O mais impressionante de tudo é que a chamada elite, diante dessa destruição completa das bases civilizacionais do país, se recusa a tomar consciência da gravidade da situação e se apega desesperadamente à ilusão de que tudo se resolverá por si, sem nenhuma ação da parte dela.

O cinismo brutal de um lado, a irresponsabilidade covarde de outro – eis os dois pilares da sociedade brasileira do futuro, na qual só mesmo os cínicos e os irresponsáveis podem esperar sentir-se bem.

Votos de Ano Novo? Ora, façam-me um favor! Quem pode fazer votos de que tudo o que está acontecendo pare de acontecer, de que tudo o que não acontece, mas deveria, comece a acontecer? O Brasil não precisa de um milagre. Precisa da mais extraordinária conjunção de milagres que se poderia imaginar. E milagres, mesmo individualmente, jamais acontecem quando os possíveis interessados estão pedindo exatamente o contrário.

Tarados

Um sintoma miúdo, mas revelador, pode ilustrar o estado presente da alma nacional, tal como descrito acima.

Há um grupo de tarados na comunidade Orkut, da internet , que já escreveram mais de trinta mil páginas contra mim e, para cúmulo, esperam que eu leia tudo — como se eu me achasse tão interessante quanto eles me imaginam. Não criticam propriamente minhas opiniões, pois não chegam a apreendê-las com clareza bastante para isso. Fixam-se em detalhes que, por motivos ignorados, os irritam e desconcertam, entre os quais o meu penteado, não sei se demasiado provocante ou inócuo, a minha idade, que consideram um vício moral revoltante, e o fato insólito de eu ter filhas bonitas sem preencher as condições ideológicas requeridas para isso. Descritos com abundância de minúcias, meus defeitos ali apontados abrangem aparentemente toda a gama das possibilidades humanas, pois apareço ao mesmo tempo como gay e homofóbico, anti-semita e fanático sionista, moralista auto-reprimido e putanheiro assanhado etc. etc. Tendo-me colocado assim no centro da coincidentia oppositorum , os redatores do site chegaram a um ponto em que já nada podiam dizer contra mim que não fosse desmentido por alguma acusação anterior. A solução encontrada para essa dificuldade foi inventar-me de novo, moldando a minha figura segundo os requisitos apropriados para uma esculhambação em regra, sem contradições ou ambigüidades. Criaram então uma página especial do Orkut, usando o meu nome e fotografia e fazendo-se passar por mim. Preencheram a página com uma confissão de nazismo e espalharam convites para que os trouxas a freqüentassem, constatando com seus próprios olhos e até cérebros, caso os tivessem, a minha militância nazista em ação. Ficou assim provado ser eu um completo F. D. P., quod erat demonstrandum . Com base em evidências tão sólidas, tornou-se mesmo imperativo reeditar ali uns velhos e já quases esquecidos apelos à supressão física da minha execrável pessoa, acompanhados de indicações, infelizmente um tanto desatualizadas, dos lugares onde os interessados na minha execução sumária podem mais facilmente me encontrar e me pegar de jeito.

Há mais de mil pessoas envolvidas nesse empreendimento, a maioria delas portadora de diplomas universitários e pertencente, destarte, à parcela mais esclarecida da população, pela qual não se chega sequer a formar uma vaga idéia do que poderiam ser as menos esclarecidas.

Nenhuma dá sinal de perceber algo de criminoso nas ações do grupo, e suspeito que muitas, ou quase todas, se informadas de que estão sujeitas às leis brasileiras como quaisquer outras criaturas residentes no país, se mostrariam sinceramente indignadas ante essa pretensão intolerável.

Bem ao contrário, todas se acreditam movidas pelos mais altos sentimentos humanos, pairando angelicamente acima de mesquinharias penais que só um grosseirão inconveniente como eu seria capaz de querer introduzir numa conversação tão sublime.

Somente umas duas ou três vezes examinei o material ali publicado, comentando-o da maneira que me pareceu esteticamente mais adequada ao ambiente, isto é, mediante qualquer gozação sarcástica e cabeluda que me ocorresse no momento.

Eu queria só que vocês vissem a expressão de susto e revolta com que aquelas almas delicadas reagiram às minhas vulgaridades! Nunca vi tanta dignidade ofendida, tanta santidade aviltada, tantas lágrimas de autopiedade coletiva, tantas efusões de consolação mútua, carinho reparador e juras de vingança acompanhadas de menções pejorativas aos membros da minha família. Uma coisa comovente mesmo.

Se eu quisesse inventar essa situação, não conseguiria. Não sou nenhum Franz Kafka, nenhum Karl Kraus, nenhum Eugène Ionesco para conceber personagens como esses. Só a realidade brasileira do momento, moldada por quatro décadas de “revolução cultural”, pode criá-los. E até a capacidade de descrevê-los me falta, como faltaria talvez até àqueles três autores, cuja imaginação do absurdo tinha limites.

Ilusões que se desfazem

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 10 de novembro de 2005

Qualquer tomada de posição nos debates do dia a dia depende de três fatores. Antes de tudo, cada indivíduo opinante traz consigo uma hierarquia abstrata de valores genéricos que orienta suas escolhas. Em segundo lugar, ele possui alguma representação esquemática das forças em disputa, de modo a poder identificar quais delas personificam os seus valores e quais os valores opostos. Mas – terceiro fator — essa representação depende do fluxo de informações que ele recebe da cultura em torno. Um fluxo viciado pode levar as pessoas a apostar em forças que destroem os seus valores em vez de realizá-los. Repetidas desilusões não bastam para reorientar as escolhas se o erro básico não é conscientizado e sua correção sistemática não se integra por sua vez na corrente de informações.

Na política, as escolhas dependem, em última instância, da representação geral dos poderes em conflito no mundo. Há décadas o público brasileiro se deixa guiar por uma representação falsa. Isso vem acontecendo desde que a orientação da cultura deixou de refletir o pluralismo espontâneo das idéias e passou a ser moldada hegemonicamente por uma corrente de opinião organizada, investida dos meios de marginalizar as demais e impor a sua própria visão como se fosse a única. Não o fez de maneira unilinear e dogmática, mas de tal modo que as suas próprias contradições internas, de ordem puramente adjetiva, parecessem esgotar o rol das discussões possíveis, tornando difícil apreender e verbalizar qualquer outra alternativa. A disputa presidencial de 2002, protagonizada por quatro candidatos ideologicamente uniformes, foi a cristalização eleitoral de um longo processo de recorte e moldagem do imaginário coletivo, em resultado do qual os cidadãos permaneciam livres para cultuar os valores subjetivos que quisessem, desde que na prática os personificassem nas forças escolhidas para esse fim pela representação imperante.

Durante um tempo, isso produziu um sentimento geral de unanimismo eufórico, infundindo em todos a ilusão de ter encontrado a fórmula da harmonia entre os valores amados e as forças capazes de realizá-los.

Contradições insolúveis não demoraram a aparecer, rompendo o círculo da falsa harmonia. Se a concorrência política normal já custa muito dinheiro, a hegemonia custa muito mais. Para conquistá-la, impondo-se artificialmente como personificação monopolística dos valores mais altos, a organização dominante teve de recorrer aos meios mais baixos. Nem poderia ser de outro modo. Na ética comunista, isso não tem nada de mais. Mas como explicar isso a eleitores que foram levados a enxergar num partido comunista a encarnação da moral no sentido mais usual e burguês do termo?

Pode-se tentar remendar o véu da ilusão, mas uma contradição ainda mais inconciliável, em escala planetária, ameaça rasgar em breve o que reste dele. Em vista dos resultados políticos desejados localmente, a população nacional foi ensinada a conceber o mundo como um cenário dividido, tal como no filme “Guerra nas Estrelas”, entre um Império global — identificado com os EUA — e as forças esparsas das nações sequiosas de liberdade. A disputa pelo poder sobre a internet desfará, num instante, essa representação grotescamente invertida. A República do Irã, a China, a Arábia Saudita e a ONU, que ao lado do Brasil e da burocracia européia lutam contra a “dominação americana” sobre a rede, jurando com isso defender o pluralismo e a democracia, são notórias censoras da internet , ao passo que o controle nas mãos dos americanos tem assegurado justamente a total ausência de censura. Aqueles que odeiam os EUA mas amam o direito de navegar livremente pela rede não demorarão a perceber, diretamente nas telas de seus computadores domésticos, que seu objeto de ódio é a única esperança de salvar seu objeto de amor. A representação vigente, como um vírus pego em flagrante, correrá então o risco de ser repentinamente deletada de todos os HDs.

Aids, Brasil e Uganda

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de outubro de 2005

O Brasil, como a propaganda governamental não cessa de alardear, conseguiu reduzir pela metade o número de mortes de aidéticos no país. Esse resultado foi obtido por meio da doação maciça de remédios pirateados, que custam aos cofres públicos 300 milhões de dólares por ano. O número de aidéticos em tratamento e portanto a verba para sustentar o programa tendem a aumentar indefinidamente, porque, como qualquer pessoa com QI superior a 12 poderia prever, a distribuição sem fim de camisinhas estatais e a glamurização da homossexidade por meio de anúncios tocantes não reduziram em nada o número de infectados. O Brasil tinha 60 por cento dos casos de Aids da América Latina, e continua tendo. Para completar, o modelo brasileiro não pode ser exportado, porque seu custo ultrapassa tudo o que as nações da África, as mais vitimadas pela doença, jamais ousariam sonhar.

Por ironia, uma dessas nações, a pobrezinha Uganda, conseguiu, com despesa incomparavelmente menor, reduzir a quota de infectados de dezoito para cinco por cento da população. Uma vitória espetacular. Nenhum outro país do mundo alcançou resultados tão efetivos.

Dito isso, dou agora um teste para o leitor avaliar se sabe em que mundo está vivendo: dos dois programas de combate à Aids, qual é aplaudido pela ONU e pela mídia internacional como um sucesso e um modelo digno de ser copiado? Respondeu “o ugandense”? Errou. É o brasileiro. O ugandense, ao contrário, é condenado como um perigo para a população e uma ofensa intolerável aos direitos humanos. O enviado especial da ONU para assuntos de AIDS no continente africano, Stephen Lewis, tem dado  entrevistas para denunciar o abuso, e a ONG Human Rights Watch acaba de publicar um relatório de 81 páginas contra o maldoso presidente de Uganda, Yoweri Museveni, responsável pela coisa toda.

Mas, afinal, qual a diferença entre o modo brasileiro e o ugandense de combater a Aids? Uganda não distribui remédios? Distribui. Não recomenda o uso de camisinhas? Recomenda. Não as distribui à população? Distribui. A diferença é que acrescenta a esses fatores uma campanha pela abstinência sexual antes do casamento e pela fidelidade conjugal depois. Tal é o motivo da sua eficácia, mas também o da profunda indignação da ONU. Essa nobre instituição (que recentemente tirou os EUA e colocou o Sudão na sua Comissão de Direitos Humanos depois de comprovado que a ditadura sudanesa só matou quatrocentos mil dissidentes e não dois milhões como diziam as más línguas) ficou ainda mais chocada porque, embora o governo de Uganda distribua mais camisinhas à sua população do que qualquer outro governo africano, o presidente Museveni e sua esposa Janet chegaram a sugerir repetidamente – em público!, vejam vocês, em público! – que esses artefatos só deveriam ser usados como segunda opção, se falhasse a abstinência dos solteiros e a fidelidade dos casados. Segundo o sr. Lewis, essa insinuação maligna, além de disseminar um preconceito fascista contra o adultério e o sexo pré-conjugal, ainda arrisca desestimular o uso das camisinhas, disseminando a prática do sexo inseguro e matando virtualmente de Aids milhões de ugandenses. Um verdadeiro genocídio. Se o leitor tem alguma dificuldade de entender o raciocínio do digno porta-voz da ONU, pode recorrer à técnica da análise lógica das conclusões para desenterrar a premissa implícita que o fundamenta. Essa premissa é, com toda a evidência, a de que os ugandenses, uma vez persuadidos a tentar a abstinência antes da camisinha, podem eventualmente sentir-se incentivados a continuar prescindindo da camisinha quando desistirem da abstinência. A verdadeira preocupação do sr. Lewis, portanto, deriva do seu temor humanitário de que o quociente de inteligência do povo ugandense seja igual ao dele. A ONU, nesses momentos, chega a ser comovente.

É verdade que, na luta contra a Aids, Uganda é a única nação vencedora (o tão louvado Brasil mal se equilibra num deficitário empate técnico). É verdade também que, em todo o restante do continente africano, onde ninguém prega abstinência nenhuma e todas as campanhas contra a Aids mantêm estrita fidelidade ao dogma da salvação pelas camisinhas tal como formulado ex cathedra pela ONU, as taxas de infecção pelo HiV continuam inalteradas ou crescentes, chegando, em alguns lugares, a trinta por cento da população. O sr. Lewis, por isso, fala com conhecimento de causa. Nada como o fracasso completo para dar a um sujeito (ou a uma instituição) a autoridade de criticar o sucesso alheio. Além disso, ponham a mão na consciência: vocês acham mesmo que alguns milhões de vidas ugandenses salvas valem o sacrifício de não sei quantos minutos de prazer cruelmente negados aos adúlteros e aos homossexuais? É, como se diz, uma questão de princípio: antes sucumbir à Aids do que abdicar do direito ao gozo ilimitado. Eis a alternativa moral que a ONU oferece à humanidade: ou ser salva pela camisinha, ou morrer com dignidade. Ceder à proposta indecente de Yoweri e Janet Museveni, jamais. O jornal inglês Guardian adverte aliás que a proposta tem uma origem das mais suspeitas. Yoweri e Janet Museveni, por inverossímil que isto pareça numa época esclarecida como a nossa, são… cristãos. Parece até mesmo que eles encontraram a idéia na Bíblia.

Esses povos atrasados são mesmo uns jumentos. Nós, brasileiros, um povo iluminado, jamais cairíamos numa esparrela dessas. Nosso negócio é ciência. Já em 2003, pouco antes de passar o cargo a Lula, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que tem entre seus inumeráveis méritos não só a criação do programa de trezentos milhões de dólares mas também a virtude de saber fazer-se de gostosão com muito mais naturalidade do que seu antecessor e xará Fernando Collor, nos ensinou com notável antecedência que essas campanhas de castidade juvenil e fidelidade conjugal não estão com nada. Falando numa conferência em Paris – ele fica tão bem em Paris, vocês não acham? –, ele disse que essas campanhas “só servem para confundir as pessoas”. Como exemplo dessa confusão, ele citou o caso das esposas brasileiras, fielmente monogâmicas, que vão para a cama com seus maridos e contraem Aids. “Elas não usaram camisinhas, porque tinham um parceiro só, e pegaram a doença.” O próprio sr. Lewis não alcançaria a profundidade desse argumento, segundo o qual a fonte do perigo não está nos maridos que traem, mas nas esposas traídas; não está no contaminador, mas na contaminada. O pensamento do grande intelectual uspiano chega, aí, às raias do sublime. Com poucas e fulminantes palavras o autor de Dependência e Desenvolvimento na América Latina – o único livro que se tornou clássico por meio do esquecimento geral – reduz a pó a tese de seu amigo Alain Peyrefitte, de que as sociedades progridem na medida em que nelas imperam os laços de lealdade e confiança. Sociedade normal, sociedade progressista, na doutrina FHC, é aquela na qual a deslealdade está tão generalizada que mesmo as esposas não podem confiar nos maridos. Quando a lealdade falha, como é justo e normal, não se deve portanto fazer uma campanha para restaurá-la, mas, ao contrário, oficializar a deslealdade tornando a camisinha, em vez da fidelidade, uma obrigação moral dos cônjuges. Da minha parte, acreditando piamente que o nosso ex-presidente não seria hipócrita ao ponto de desejar uma moral para as famílias brasileiras em geral e outra para a dele próprio, admito que Dona Rute não deve mesmo, em hipótese alguma, permitir que seu marido venha com coisa para cima dela sem uma camisinha. Talvez até duas. Se ele já veio para cima de nós todos sem nenhuma, é tarde para pensar nisso. Relax and enjoy .

Para quem absorveu os ensinamentos de Stephen Lewis e Fernando Henrique, a inconveniência absoluta de sugerir fidelidade e abstinência salta aos olhos. É de uma clareza lógica formidável, não é mesmo? Só aquela besta do Museveni é que não entende. Ele e a mulher dele. Também, que se pode esperar de uma idiota que acredita no marido? Além de preta, a cretina é cristã. Só falta agora quererem que a gente leve a sério Nossa Senhora Aparecida e a Condoleezza Rice.

Já o relatório da Human Rights Watch enfatiza outro aspecto ainda mais repugnante da campanha ugandense: ela é feita — oh, horror! — com verbas doadas pelo governo americano. É verdade que, no planeta inteiro, os EUA contribuem mais para o combate à Aids do que todos os demais países somados. É verdade, portanto, que a maioria das campanhas anti-Aids em todo o mundo são feitas com dinheiro americano. Até as verbas distribuídas pela própria ONU para esse fim vêm quase todas da mesmíssima fonte. Mas ninguém precisa se rebaixar ao ponto de aceitar, junto com os dólares de Washington, a sugestão maldosa daquele outro casal de carolas, George W. e Laura Bush, de que camisinhas às vezes furam e de que em vez de apostar exclusivamente nelas a vida e a morte, talvez valesse a pena controlar um pouco o desejo sexual.

Uganda, cedendo a essas insinuações, refocilou na lama. Países altivos, briosos, dotados de amor próprio, pegam a grana e mandam George W. Bush enfiar sua religião naquele lugar – com camisinha, é claro. Ou então fazem logo como o Brasil, que rejeita o dinheiro. Se vocês não se lembram, a USAID, pouco tempo atrás, ofereceu 48 milhões de dólares para ajudar o nosso país a comprar remédios para os aidéticos, mas impôs uma condição: que do texto do convênio não constassem palavras que parecessem legitimar a prática da prostituição. O governo petista, que tem dignidade para dar e vender — sobretudo para vender –, não se curvou à imposição degradante. Ser contra a prostituição? Jamais. A reverência ante as marafonas é, entre os políticos brasileiros, arraigada como o amor filial, chegando, em muitos deles, a confundir-se com esse sentimento. Em outros é, como a camisinha do sr. Lewis, uma questão de princípio. Quarenta e oito milhões de dólares é um bocado de remédio para aidético, mas para que fazer uma concessão aviltante à moral burguesa — sobretudo americana, éeeeca! –, quando se pode facilmente subsidiar a honra dos puteiros pátrios com equivalente quantia em moeda nacional extraída aos contribuintes? Vocês todos, leitores e não leitores, pagaram 48 milhões de dólares para o governo nacional não melindrar as – como direi? — prestadoras de serviços eróticos. Tudo pelo direito zumano, né mermo?

 

Prenúncio macabro

Em plena legalidade democrática, um ano depois de assinada a Constituição de 1988, o  dr. Luiz Eduardo Greenhalgh pregava a revolução pelas armas, o desmanche do Exército, da Marinha e da Aeronáutica e a revisão da Lei de Anistia para transformá-la num instrumento de vingança jurídica contra todos os que cometeram o crime eternamente imprescritível de opor-se ao terrorismo comunista no Brasil.

Alertado pela coluna do Cláudio Humberto, fui conferir no livro “A Face Oculta da Estrela”, de Adolpho João de Paula Couto – leitura indispensável para quem ainda acredite que a corrupção petista começou em 2003 –, e de fato estava tudo lá. O programa do homenzinho, simples e brutal, abrangia:

– Remanejamento das Forças Armadas, transferindo para o Norte os oficiais que serviam  no Sul e vice-versa, para afastá-los das frações por eles comandadas, prevenindo possíveis ações armadas contra os planos revolucionários do futuro governo de esquerda.

– Reformar metade dos oficiais da ativa (ele já tinha a lista dos selecionados).

– Extinguir todos os órgãos de Inteligência e abrir seus arquivos para exame de uma “Comissão Popular”.

– Revisão da Lei de Anistia e processo em cima de todos os ex-colaboradores da repressão ao terrorismo.

Para maior claridade do esquema, Greenhalgh concluía: “Só através da luta armada é que conseguiremos garantir a realização do plano.”

Tudo isso, repito, em plena democracia restaurada, em plena legalidade. Mais ostensiva apologia do crime, mais descarado apelo à destruição das Forças Armadas e à derrubada violenta das instituições nunca se viu neste país ou em qualquer outro.

Esse é o indivíduo que o sr. presidente da República quer colocar de ministro do Superior Tribunal Militar. Se isso acontecer, o oficial ou soldado que aceite bater continência a esse sujeito, não digo só que será indigno da própria farda: será indigno de usar calças, se não também cuecas. Fraldão geriátrico, na mais nobre das hipóteses.

Vai acontecer? Não sei. Deveria haver um limite para a capacidade que um ser humano tem de degradar-se sorrindo, de acomodar-se a situações aviltantes com íntima deleitação e até com uma dose de orgulho. Talvez esse limite exista, mas no Brasil de hoje a sensibilidade para percebê-lo e recuar ante o abismo parece ter sido completamente desativada. Para não dar o braço a torcer, para não admitir que está preso numa arapuca comunista de dimensões continentais, cada um vai muito abaixo da fronteira do admissível e se supera, dia a dia, na produção de novos e novos subterfúgios anestésicos.

Podem procurar um precedente histórico. Não encontrarão. Em país nenhum, em época nenhuma a pusilanimidade intelectual se alastrou dessa maneira, ao ponto de constituir-se em princípio básico da vida em comum e atestado obrigatório de saúde mental.

Mas não há imprudência maior do que apostar a vida na possibilidade de fugir indefinidamente da verdade, no poder inesgotável dos derivativos levianos com que, escapando ao confronto com a própria degradação, um ser humano se degrada mais ainda. Pascal chamava essa aposta de “divertissement”. O divertimento pascaliano é o contrário da “alta seriedade” que para Matthew Arnold era a única justificação das criações culturais e, no fim das contas, de todo o convívio social. A mais alta seriedade é o confronto com a realidade da morte, quando cessará todo divertimento. É o instante final do Don Juan de Mozart, quando a festa é interrompida pelo “convidado de pedra”, simbolizando a fixação do destino na forma imutável da morte. A cultura brasileira já foi diagnosticada por vários estudiosos de primeira ordem, como Mário Vieira de Melo e José Osvaldo de Meira Pena, como uma cultura esteticista e lúdica. O que no Brasil da última década levou o nome de “ética” não foi senão um subterfúgio, um “divertissement” com que a esquerda dominante adornou, em sonhos evasionistas, a imagem da sua própria podridão. Todos os que têm alguma influência a ajudaram nisso: intelectuais, políticos, empresários, banqueiros, jornalistas, militares. Todos continuam se evadindo, brincando com o destino, levando o divertimento às últimas conseqüências. Mas a última das últimas conseqüências será a chegada do “convidado de pedra”. A leviandade obstinada e quase devota das classes falantes brasileiras é a autocondenação de toda uma cultura, de toda uma sociedade: é o prenúncio de um final macabro.

Correu de medo

Informado de que os refugiados políticos na Espanha vão pedir a sua prisão pelo fuzilamento de quinze mil cubanos e por mais outros tantos delitos que, segundo o “Livro Negro da Revolução Cubana”, elevam para cem mil o total de vítimas da sua revolução, Fidel Castro pulou fora: anunciou que não vai à Cúpula Ibero-Americana em Salamanca.

Claro: Loco sí, pero no tonto . Perto de Fidel, o general Pinochet é a inocência em pessoa. Mas as personalidades são incomparáveis. Pinochet foi cruel e implacável até o limite da insanidade, mas conservou o senso da retidão, a coragem moral que o fez expor-se ao julgamento popular e submeter-se ao veredito. Fidel Castro jamais teve fibra para isso. Muito menos teria para suportar um rosário de humilhações semelhante ao que Pinochet, velho, fraco e doente, enfrentou nos últimos anos. Fidel não é homem corajoso em sentido próprio, porque a coragem está essencialmente ligada à honra e à dignidade, que ele jamais teve. Ele é apenas um homem violento, um bandido vulgar com um talento invulgar para o histrionismo e a mentira, um sociopata verboso que começou sua carreira oferecendo-se para cometer assassinato político em troca de um cargo e subiu na vida ludibriando seu povo e o mundo. Se querem conhecê-lo, leiam as memórias de sua filha Alina, complementando-as com “Viaje al Corazón de Cuba”, de Carlos Alberto Montaner e “La Mafia de La Habana”, de Luis Grave de Peralta Morell.

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