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Palhaçada total

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 19 de janeiro de 2006

Muitas vezes, ao longo da história, o movimento comunista demonstrou sua capacidade de tirar proveito publicitário do seu próprio descrédito, trocando de pele e fazendo com que, da revelação de cada novo banho de sangue, o carrasco emergisse com as feições imaculadas de vítima sacrificial.

Mas nada se compara à mágica da transmutação que ele operou ao longo da última década e meia. A queda da URSS, os fracassos da economia socialista e a debacle intelectual do marxismo não paralisaram o comunismo internacional, mas lhe deram um novo sentido de direção: despiram-no de seus adornos doutrinais e reduziram seu discurso ao ódio anti-americano puro e grosso.

O enxugamento ideológico, eliminando atritos que antes limitavam seus movimentos, permitiu que seu raio de ação se estendesse ad infinitum , irmanando comunistas, socialistas, “progressistas” de toda sorte, ateístas e secularistas em geral, militantes gays e black power, radicais muçulmanos, neonazistas, revisores do Holocausto, feministas, abortistas, narcotraficantes e, por fim, nacionalistas de direita (fascistas, para dizer o português claro) do Terceiro Mundo.

Que raio de “sociedade melhor” poderia surgir desse melting pot de tudo o que não presta — eis uma pergunta que pessoas educadas não fazem. O pressuposto subjacente é que os antagonismos inconciliáveis se resolverão espontaneamente para produzir um mundo maravilhoso tão logo removidos da cena planetária os últimos obstáculos à felicidade humana: o Grande Satã americano e seu mascote, o Pequeno Satã israelense.

Tal como o novo paraíso terrestre subseqüente ao Juízo Final tornará amigos o leão e o cordeiro, o reino de justiça e paz que deve emergir da eliminação dos EUA e de Israel trará ao mesmo tempo um governo socialista global e a independência das nações, a implantação mundial da shari’a e a legalização dos casamentos homossexuais, a eliminação do racismo e a apoteose da superioridade ariana, a moralização universal e a liberação das drogas, o fim da exploração sexual infantil e o advento do “sexo intergeracional”. Não pergunte como. Não seja um estraga-prazeres.

A internacional comunista não está morta. Ressuscitou como Internacional da Estupidez Humana. Ao contrário de sua antecessora, que não agradava a todos, ela possui um número ilimitado de adeptos potenciais. Mas seu sucesso não se explica só pela atração do abismo: funda-se numa bem montada estrutura de apoio, que abrange desde a malha planetária dos velhos partidos comunistas, com nomes trocados ou não, até a grande mídia internacional praticamente inteira, a militância islâmica onipresente e a rede global de ONGs ativistas subsidiadas por fundações bilionárias como Rockefeller, Soros ou Ford. Já desde a década de 50 uma comissão parlamentar (v. René Wormser, Foundations: Their Power and Influence , New York, 1958) comprovou que muitas dessas fundações se empenhavam na destruição do sistema americano, visando à constituição de um poder mundial de inspiração socialista. Passado meio século, o fruto desses esforços ganhou vida e está gritando pelas ruas. Com um detalhe especialmente perverso: como a maioria delas tem origem e sede nos próprios EUA, sua atuação é facilmente utilizada como slogan publicitário anti-americano, persuasivo ante platéias semiletradas incapazes de captar a sutil ambigüidade da operação. No Brasil, por exemplo, sob a influência de esquerdistas espertalhões infiltrados na ESG, os generais Andrade Nery e Baeta Neves, entre outros, apontam a presença de pseudópodos dessas organizações na Amazônia como argumentos fulminantes contra o Grande Satã. Dando as mãos aos comunistas do Foro de São Paulo e ajudando Fidel Castro a “resgatar na América Latina o que se perdeu no leste europeu”, podem assim condenar como “agente do imperialismo” quem quer que se oponha a esse projeto, ao mesmo tempo que alegam seu passado militar como prova de patriotismo imune a contaminações esquerdistas. É a palhaçada total.

O método Derrida

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 12 de janeiro de 2006

Jacques Derrida era judeu. Diferia dos demais pensadores judeus por duas peculiaridades: (1) seu principal guru era militante nazista; (2) seu principal discípulo também. Quando ele usou de todos os artifícios desconstrucionistas para diluir o duplo vexame, transmutando Martin Heidegger e Paul De Man em vítimas do mundo mau e seus acusadores em guardas de campo de concentração, talvez soubesse que tinha encontrado finalmente a serventia ideal do seu famoso método.

O pressuposto do desconstrucionismo é a lingüística de Ferdinand de Saussure. Enquanto não se conseguiu descrever a língua como estrutura, como objeto, isolando-a das condições vivas da sua utilização, não foi possível inutilizá-la. A isso dedicou-se o autor da Grammatologie , movido pela ambição de provar que todo mundo antes dele estava enganado, que todos os discursos eram autocontraditórios, que não significavam coisa nenhuma e que, no fim das contas, só sobrava a “vontade de poder”.

As análises que ele faz são perfeitas, desde que você entenda que se referem à “língua” de Saussure, não à de Platão, de Dante ou de qualquer um de nós. Aquela não existe: é uma estrutura hipotética, um sistema de regras. Ler nela é impossível, porque aí o sentido de cada palavra se torna apenas a diferença entre ela e as demais, e não algum objeto do mundo, o que implica que ninguém compreenderia uma única palavra se não conhecesse todas as outras. Se fosse assim com as línguas de verdade, o primeiro bebê ainda estaria tentando aprender a primeira palavra.

Felizmente, a “língua” de Saussure não foi feita para ser falada ou escrita, apenas teorizada. Quando você compra um salame no supermercado, o que vem no pacote é um composto de carne, gordura e tripas, não apenas a diferença entre o salame e tudo o mais. Ninguém jamais comeu uma diferença. No mundo real, você pode perfeitamente compreender uma palavra sem conhecer qualquer outra do mesmo idioma. Basta alguém dizer a palavra e apontar o objeto correspondente. A língua não é um sistema: é um aglomerado fragmentário de procedimentos que só é completado pelo sistema do mundo, pela realidade em torno, na qual ela é uma forma de instalação humana, articulada por sua vez com muitas outras. Retirada desse conjunto, considerada “em si mesma”, ela se torna um sistema, mas por isso mesmo não pode mais funcionar: sem os objetos (e aliás também sem o sujeito), sobram rombos demais num tecido feito de meras diferenças; diga você o que disser, o resultado será incongruente.

O empreendimento de Derrida consistiu em traduzir mentalmente todos os livros para a língua saussuriana e, lendo-os, concluir que ficavam perfeitamente absurdos, coisa que até eu que sou mais trouxa teria lhe avisado antes se ele me perguntasse. Feito isso, porém, ele saiu vendendo a conclusão como se valesse para tudo o que os homens disseram em qualquer língua desde os tempos de Cro-Magnon até o advento de Jacques Derrida. Os pedantes que acreditaram nele acabaram falando numa língua que tem mesmo as propriedades daquela que ele descreve: está cheia de contradições e não significa nada. Quando querem convencer alguém de alguma coisa, já não podem portanto nem mesmo tentar ser lógicos e conseqüentes. Gritam frases soltas, barbaramente contraditórias, e fazem uma expressão desvairada, com olhos de fogo, mostrando como você é mau e perverso se não fizer o que eles querem. A filosofia de Derrida não é uma filosofia: é uma pegadinha. A vantagem é que aqueles que caem nela aprendem a pegar os outros e a viver disso. Você não tem idéia de quanto eles conseguem obter por esse meio em subsídios do governo, direitos especiais e proteção da polícia para qualquer besteira que inventem. Realizando assim a primazia da vontade de poder sobre o pensamento racional, provam que Jacques Derrida era mesmo o gostosão. Qualquer semelhança com o método nazista é deplorável coincidência, da qual Derrida está tão inocente quanto Heidegger, De Man, Nietzsche e talvez até o Führer em pessoa.

O império da vontade

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 5 de janeiro de 2006

Se há um esforço inútil, embora inevitável, é o de contestar o relativismo. É inevitável porque objeções relativistas são fáceis de aprender, fáceis de repetir e acessíveis gratuitamente a qualquer bobão interessado em debater o que ignora. Não importa o que você diga, elas começarão a saltar por todo lado como sapinhos histéricos, e você não terá remédio senão sair caçando uma a uma ou admitir que teria sido melhor ficar quieto desde o início.

Não que a dificuldade de caçá-las seja notável. Superar o relativismo é a escola maternal da filosofia (ingressar nele é o berçário). O problema é que, sendo meras combinações automáticas de juízos, prescindindo de qualquer apreensão da realidade, elas têm uma facilidade enorme de reproduzir-se em formatos variados, diferentes só em aparência, sem a menor chance de o interlocutor fazer parar a proliferação mecânica de ranhetices mediante o apelo à percepção dos fatos. É como você discutir online com um programa de computador, sem nenhuma consciência humana para lhe responder do outro lado da linha.

Pior ainda: por serem imunes ao teste da realidade, as objeções relativistas não podem ser objetos de crença. Crer num juízo é crer na realidade do seu conteúdo. Abstraída a realidade, a mente opera num espaço separado onde pode haver apenas autopersuasão hipotética, como num teatro. Não crença efetiva. No mundo real, essas objeções só podem funcionar como atenuantes de crenças positivas, nunca tornar-se elas próprias crenças positivas. Nesse sentido, todo mundo é um pouco relativista quando revê suas idéias (ou as alheias) e as hierarquiza segundo o grau de certeza que parecem ter. Mas ninguém é relativista além desse ponto. Nenhum relativista acredita em relativismo, exceto de maneira experimental e provisória. Debater com ele só pode servir para treinamento ou diversão e para nada mais.

O corolário é incontornável: se ele insiste muito nas objeções, se as defende com o ardor de quem acreditasse nelas positivamente, está fingindo. Ele crê em alguma outra coisa, e usa as investidas relativistas como barreira de proteção para que sua própria crença não seja posta em exame. Todo ataque relativista muito enfático encobre um autoritarismo secreto que mantém o adversário ocupado na defensiva só para poder em seguida triunfar sem discussão. Reparem na presteza com que esse tipo de relativista, ao sair do exame das opiniões adversárias para a defesa das suas próprias, passa do discurso dubitativo às afirmações intolerantes que se ofendem até às lágrimas, até à apoplexia, ante a simples ameaça de objeções. O relativismo militante é um véu de análise racional feito para camuflar a imposição, pela força, de uma vontade irracional. Sua função é cansar, esgotar e calar a inteligência para abrir caminho ao “Triunfo da Vontade”. É um método de discussão inconfundivelmente nazista.

Se você estudar Nietzsche direitinho, verá que toda a filosofia dele não é senão a sistematização e a apologética desse método, hoje adotado pela tropa inteira dos ativistas politicamente corretos. Por trás de toda a sua estudada complexidade, a estratégia do nietzscheísmo é bem simples: trata-se de dissolver em paradoxos relativistas a confiança no conhecimento objetivo, para que, no vácuo restante, a pura vontade de poder tenha espaço para se impor como única autoridade efetiva. Descontada a veemência do estilo pseudoprofético, não raro inflado de hiperbolismo kitsch , não há aí novidade nenhuma. É o velho Eu soberano de Fichte, que abole a estrutura da realidade e impera sobre o nada. É a velha subjetividade transcendental de Kant, que dita regras ao universo em vez de tentar conhecê-lo. É o velho mestre Eckart, proclamando modestamente que Deus precisa dele para existir. É o velho sonho alemão de ser o umbigo do mundo, ou melhor, de fazer do mundo um apêndice do umbigo. Adolescentes vibram com coisas assim. Só alguns deles crescem para perceber a diferença entre essas frescuras e a autêntica filosofia.

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