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Coincidências

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 2 de março de 2006

O crescimento do banditismo veio junto com a ascensão política da esquerda, mas isso é mera coincidência. As gangues do morro foram adestradas em técnicas de guerrilha urbana pelos terroristas presos na Ilha Grande, mas é mera coincidência. Hoje são treinadas pelos guerrilheiros das Farc, mas é também coincidência. As Farc e o PT têm uma estratégia comum traçada nas assembléias do Foro de São Paulo? Coincidência. Toda prisão de narcoguerrilheiros ou seqüestradores estrangeiros vem seguida da imediata formação de um círculo de solidariedade e proteção entre seus correligionários da esquerda local? Coincidência, é claro. Se a epidemia de violência urbana cresceu junto com as ONGs de defesa dos direitos dos delinqüentes, alimentadas por poderosas fundações internacionais, quem verá algo mais que uma estúpida coincidência? Acossada pelos ataques da mídia e temerosa de infringir o decálogo politicamente correto, a polícia recua e entrega as cidades ao império dos bandidos, mas, uma vez mais, é pura coincidência. Todos os teóricos do comunismo ensinam que fomentar um estado de desordem e anomia é a melhor maneira de concentrar o poder nas mãos de um partido revolucionário, mas, se tudo se passa exatamente assim no Brasil, é coincidência, coincidência, coincidência e nada mais.

As mais patentes conexões entre atos e resultados, enfim, nada significam. Tudo é mera coincidência, nada é causa de nada, nada explica nada. O que explica tudo é o “capitalismo”, é a “desigualdade”, é a “exclusão social”. Mesmo o fato de que a criminalidade tenha aumentado justamente nos anos em que, segundo o IBGE, a desigualdade e a exclusão social diminuíram muito não significa absolutamente nada, pelo simples fato de que é um fato, pois ninguém quer saber de fatos. Só o que vale é o fetiche teórico da luta de classes, que permite estabelecer relações infalíveis de causa e efeito sem a menor necessidade de consulta à execrável realidade, reacionária como ela só.

Com base nessa premissa, hoje amplamente aceita como dogma incontestável por todo o ensino universitário nacional, qualquer agente revolucionário, com ou sem treinamento em Cuba, está apto a explorar o desespero geral e utilizar as promessas mesmas de restauração da ordem pública como instrumento para gerar novos fatores de insegurança e aumentar um pouco mais o poder do partido salvador da pátria.

O truque é simples: basta confundir o fato brutalmente concreto da criminalidade com o conceito abstrato das suas causas sociais hipotéticas — quanto mais remotas, melhor — e condicionar a eliminação do primeiro à erradicação das segundas. Isso adia formidavelmente a punição dos criminosos e ainda garante, nesse ínterim, inumeráveis vantagens para o partido que os protege. Qualquer cidadão comum no pleno uso dos seus neurônios sabe que a criminalidade se elimina prendendo os criminosos. Mas um intelectual ativista tem razões que a própria razão desconhece. Ele demonstrará, por a mais b sobre y, dividido pela integral de x e subtraído do logaritmo da p. q. p., que quem compra armas no Líbano para trocá-las por toneladas de cocaína das Farc não são traficantes milionários, mas pobres garotos excluídos, vítimas da desigualdade. Tendo demonstrado essa sublime equação, ele proclamará que só reacionários simplistas podem achar que crime é caso de polícia. As pessoas inteligentes como ele, ao contrário, entendem que tudo são problemas sociais e que, no fim das contas, é preciso liberar mais não sei quantos bilhões de reais para clubes esportivos, escolas de balé, salões de manicure, praças cívicas e centros de doutrinação marxista que atacarão o mal nas suas raízes mais profundas. Quando tudo isso não funcionar de maneira alguma, como fatalmente acontecerá, ele lhes dirá com ar de tocante modéstia que, de fato, eram só paliativos beneméritos, que o que falta mesmo é acabar de vez com o maldito capitalismo. E o povo, atônito e exausto de tanto não entender nada, pode acabar lhe dando razão.

Quem fiscaliza os fiscais?

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 23 de fevereiro de 2006

Não existe a mais remota semelhança entre as táticas de pressão psicológica usadas pelos americanos nos terroristas presos e as torturas mutilatórias, incapacitantes ou mortais empregadas em escala incomparavelmente mais vasta contra civis em países comunistas e islâmicos. As primeiras são substancialmente idênticas às que foram aplicadas aos prisioneiros nazistas após a II Guerra Mundial. As segundas são iguais às usadas pelos próprios nazistas contra os opositores do regime. A diferença é estridente. Nenhum ser humano em seu juízo perfeito pode achar que empurrões, gritos, tapas e exposição a vexames sejam o mesmo que amputações, espancamentos, fraturas, choques elétricos e outras práticas usuais da velha Abu-Ghraib de Saddam Hussein ou dos oitocentos presídios da ilha de Fidel Castro, entre as quais a Guantanamo originária, poço de horrores comparado ao qual a homônima prisão americana é um hotel de cinco estrelas.

Qualquer órgão de mídia que continue apelando à mesma palavra, “tortura”, sem distinções comparativas, para designar por igual as duas coisas, é indigno da confiança dos leitores. Ao alardear cobertura honesta, comete delito de propaganda enganosa, infringindo o Código de Defesa do Consumidor.

Jamais vi um único jornal brasileiro — e raramente algum americano — que estivesse inocente desse delito, com o agravante de que o destaque concedido em todos eles às denúncias contra os EUA forma um contraste obsceno com a míngua de notícias sobre tortura e assassinato de prisioneiros em Cuba, na China, no Vietnã, na Coréia do Norte ou nas ditaduras islâmicas. A distribuição do espaço, inversamente proporcional à quantidade e gravidade das informações disponíveis, comprova a adesão da classe jornalística a um código de valores no qual a veracidade deve ser sacrificada aos interesses da corrente política mais brutal e criminosa que já existiu no mundo.

A desproporção a que me refiro pode ser facilmente demonstrada por meio de aferições objetivas do espaço e do realce dado às notícias. Desafio publicamente todos os órgãos de mídia deste país a submeter suas publicações a um teste desse tipo, a provar que não estão ocultando milhares de crimes monstruosos por trás da ênfase obsessiva e espetaculosa concedida a maldades chinfrins, ampliadas pela impropriedade vocabular proposital.

Certa vez o diretor de um grande jornal de São Paulo, ao qual eu apontava essa distorção sistemática da realidade, tentou mesmo justificá-la, alegando que os delitos americanos mereciam mais atenção justamente porque os EUA eram uma democracia, da qual se esperaria conduta melhor. Esse argumento, observei, era o suprassumo da perversão jornalística: equivalia a decretar que pequenos deslizes de homens honestos deveriam ser denunciados com mais alarde do que crimes hediondos cometidos por assassinos habituais.

Se me perguntam como e por que a mídia brasileira chegou a esse ponto, não respondo com uma teoria, mas com um exemplo factual. Quando em 1993 a CUT admitiu que tinha oitocentos jornalistas na sua folha de pagamentos, ninguém reconheceu o óbvio: que essa confissão justificava a imediata abertura de uma CPI para apurar a mais vasta operação de suborno já registrada na história dos meios de comunicação na América Latina. Se a hipótese dessa investigação não chegou a ser cogitada, não foi por coincidência. Na mesma época, parlamentares da CPI das empreiteiras reconheciam abertamente que sua atividade consistia apenas em endossar com servilismo canino as denúncias saídas nos jornais e noticiários de TV. Comprometida até à medula, a classe jornalística tinha se tornado, por autopromoção, a mais temida autoridade moral deste país, à qual ninguém ousaria desagradar. Mas é evidente que a honestidade jamais poderá imperar num país em que o hábito da mentira interesseira se impregnou na mente dos próprios formadores de opinião, dos próprios fiscais do bom comportamento geral.

Algo de limpo no reino da Dinamarca

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 16 de fevereiro de 2006

A onda de indignação islâmica contra as caricaturas dinamarquesas é tão forçada, tão tardia, tão histericamente exagerada, que se torna quase irresistível buscar para ela uma causa racional por trás dos pretextos aparentes que a legitimam. Se ninguém faz isso, é porque o dogma imperante na mídia chique reza que, no mundo, só quem tem interesses ocultos e planos secretos, invariavelmente sinistros e gananciosos, é o governo americano. O resto da humanidade é transparência pura, sinceridade transbordante que raia a candura angélica.

Nessas condições, não é de espantar que mesmo condutas patentemente farsescas como essa de agora sejam aceitas a priori como expressões ingênuas de motivos literais, mesmo quando isso implique apostar na hipótese de que estrategistas capazes de intimidar o Pentágono sejam apenas os fanáticos extravagantes e idiotizados que eles fingem ser.

Se você consentir em deixar essa hipótese de lado por cinco minutos, posso lhe fornecer, para explicar a epidemia de ódio anti-dinamarquês, um belo motivo racional que você não lerá em parte alguma e que aliás não tem nada a ver com charges nem com religião.

A Dinamarca é, na Europa, a campeã absoluta da pesquisa de fontes renováveis de energia — fontes que, quando saírem da fase experimental para entrar no mercado, podem libertar o Ocidente da escravidão ao petróleo árabe (e venezuelano).

Em 1998, uma pequena ilha de 114 quilômetros quadrados, Samsoe, foi escolhida pelo governo dinamarquês como sede de um experimento inédito: criar uma comunidade integralmente servida por energia renovável, limpa e barata. Soren Hermansen, gerente do projeto, afirmou na ocasião que precisava de uma década para isso. Transcorridos oito anos, o sucesso passou na frente do cronograma: cem por cento dos 4.400 habitantes da ilha, mais os turistas, têm suas moradias e locais de trabalho servidos por energia renovável produzida no local. O complexo de recursos tecnológicos desenvolvido em Samsoe deve ser lançado no mercado mundial por volta de 2008.

A União Européia já começou a investir no projeto. Uma coisa era falar de energia renovável nos anos 60, quando o único motivo para buscá-la era o temor ecopsicótico de que os recursos da Terra se esgotassem a breve prazo. Outra coisa é colocar esse produto no mercado num momento em que só dos EUA a gangue petrolífera internacional arranca 600 milhões de dólares por dia.

Os donos do petróleo sabem o que o possível sucesso da Dinamarca significa: é a sua sentença de morte. É o fim da OPEC. É o fim dos potentados árabes. E, cá entre nós, é o fim de Hugo Chavez.

Daí a urgência de acossar e intimidar por todos os meios o governo dinamarquês. É a reação de um gigante moribundo contra o pigmeu assustadoramente saudável que ameaça acabar com a sua festa obscena. O futuro pode estar nascendo em Samsoe — e a massa islâmica enfurecida, ludibriada para imaginar que luta por altos valores religiosos, foi convocada para estrangulá-lo.

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Segundo Tim Rutten, colunista do Los Angeles Times , a quase totalidade da grande mídia americana decidiu não publicar as charges dinamarquesas, para não ferir suscetibilidades. Tirou do público o direito de julgar por si próprio, obrigando-o a curvar-se à sentença ex cathedra das autoridades islâmicas. Enquanto isso, os muçulmanos europeus reproduzem as charges abundantemente nos seus jornais, para incitar o ódio ao Ocidente; a Sony promete para breve, sob aplausos gerais, um filme baseado na obscena invencionice anticatólica de Dan Brown, “O Código Da Vinci”; e a mídia islâmica mundial, inclusive nos países ocidentais, continua publicando cartoons anti-semitas brutais sem ser perturbada por ninguém. A chantagem emocional é fonte de privilégios.

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Moralmente, o caso dos cartoons não tem significação nenhuma. Um jornaleco empenhado em cantar louvores ao laicismo moderno e levando pauladas de bandidões islâmicos não é coisa que me comova. Dinamarqueses fazem até campanhas em favor das FARC. Pedem para apanhar.

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