Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 16 de fevereiro de 2006

A onda de indignação islâmica contra as caricaturas dinamarquesas é tão forçada, tão tardia, tão histericamente exagerada, que se torna quase irresistível buscar para ela uma causa racional por trás dos pretextos aparentes que a legitimam. Se ninguém faz isso, é porque o dogma imperante na mídia chique reza que, no mundo, só quem tem interesses ocultos e planos secretos, invariavelmente sinistros e gananciosos, é o governo americano. O resto da humanidade é transparência pura, sinceridade transbordante que raia a candura angélica.

Nessas condições, não é de espantar que mesmo condutas patentemente farsescas como essa de agora sejam aceitas a priori como expressões ingênuas de motivos literais, mesmo quando isso implique apostar na hipótese de que estrategistas capazes de intimidar o Pentágono sejam apenas os fanáticos extravagantes e idiotizados que eles fingem ser.

Se você consentir em deixar essa hipótese de lado por cinco minutos, posso lhe fornecer, para explicar a epidemia de ódio anti-dinamarquês, um belo motivo racional que você não lerá em parte alguma e que aliás não tem nada a ver com charges nem com religião.

A Dinamarca é, na Europa, a campeã absoluta da pesquisa de fontes renováveis de energia — fontes que, quando saírem da fase experimental para entrar no mercado, podem libertar o Ocidente da escravidão ao petróleo árabe (e venezuelano).

Em 1998, uma pequena ilha de 114 quilômetros quadrados, Samsoe, foi escolhida pelo governo dinamarquês como sede de um experimento inédito: criar uma comunidade integralmente servida por energia renovável, limpa e barata. Soren Hermansen, gerente do projeto, afirmou na ocasião que precisava de uma década para isso. Transcorridos oito anos, o sucesso passou na frente do cronograma: cem por cento dos 4.400 habitantes da ilha, mais os turistas, têm suas moradias e locais de trabalho servidos por energia renovável produzida no local. O complexo de recursos tecnológicos desenvolvido em Samsoe deve ser lançado no mercado mundial por volta de 2008.

A União Européia já começou a investir no projeto. Uma coisa era falar de energia renovável nos anos 60, quando o único motivo para buscá-la era o temor ecopsicótico de que os recursos da Terra se esgotassem a breve prazo. Outra coisa é colocar esse produto no mercado num momento em que só dos EUA a gangue petrolífera internacional arranca 600 milhões de dólares por dia.

Os donos do petróleo sabem o que o possível sucesso da Dinamarca significa: é a sua sentença de morte. É o fim da OPEC. É o fim dos potentados árabes. E, cá entre nós, é o fim de Hugo Chavez.

Daí a urgência de acossar e intimidar por todos os meios o governo dinamarquês. É a reação de um gigante moribundo contra o pigmeu assustadoramente saudável que ameaça acabar com a sua festa obscena. O futuro pode estar nascendo em Samsoe — e a massa islâmica enfurecida, ludibriada para imaginar que luta por altos valores religiosos, foi convocada para estrangulá-lo.

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Segundo Tim Rutten, colunista do Los Angeles Times , a quase totalidade da grande mídia americana decidiu não publicar as charges dinamarquesas, para não ferir suscetibilidades. Tirou do público o direito de julgar por si próprio, obrigando-o a curvar-se à sentença ex cathedra das autoridades islâmicas. Enquanto isso, os muçulmanos europeus reproduzem as charges abundantemente nos seus jornais, para incitar o ódio ao Ocidente; a Sony promete para breve, sob aplausos gerais, um filme baseado na obscena invencionice anticatólica de Dan Brown, “O Código Da Vinci”; e a mídia islâmica mundial, inclusive nos países ocidentais, continua publicando cartoons anti-semitas brutais sem ser perturbada por ninguém. A chantagem emocional é fonte de privilégios.

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Moralmente, o caso dos cartoons não tem significação nenhuma. Um jornaleco empenhado em cantar louvores ao laicismo moderno e levando pauladas de bandidões islâmicos não é coisa que me comova. Dinamarqueses fazem até campanhas em favor das FARC. Pedem para apanhar.

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