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Um negócio quase honesto

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 13 de abril de 2006

Ao mesmo tempo que o Exército Brasileiro comunicava a prisão de agentes das Farc na Amazônia, a IstoÉ de 12 de abril informava: documentos apreendidos com Fernandinho Beira-mar “comprovam a antiga suspeita de que o bandido fornecia armamentos e munições às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia em troca das toneladas de cocaína com que abastecia pontos-de-venda de droga no Brasil”. Uma agenda, preenchida pelo traficante com o registro de suas operações no ano 2000, “é a prova cabal da aliança entre Beira-Mar e as Farc”, assegura a revista.

Beira-Mar não decerto é o principal amigo brasileiro dos delinqüentes colombianos. A Resolução número 9 do X Foro de São Paulo, de 7 de dezembro de 2001, condenou a repressão à narcoguerrilha como “terrorismo de Estado” e como “verdadero plán de guerra contra el pueblo”. Entre as assinaturas estava a do sr. Luís Inácio Lula da Silva, então ainda presidente do Foro.

No mesmo ano, líderes das Farc foram recebidos como hóspedes oficiais pelo governo petista do Rio Grande do Sul.

Mas seria injusto dizer que a colaboração do PT com as Farc se limitou à troca de gentilezas. As duas organizações publicam juntas uma revista, “America Libre”, dirigida pelo sublime dr. Emir Sader, na qual defendem seus interesses comuns contra o governo da Colombia e dos EUA, o Exército brasileiro e outras entidades malignas. Pelo menos até 2004, o chefe de gabinete do presidente Lula, Gilberto Carvalho, estava no Conselho Editorial da publicação ao lado do comandante das Farc, Manuel Marulanda Vélez, o famigerado “Tiro Fijo”. Lá estava também o impoluto deputado Greenhalgh — aquele mesmo que propunha controlar a criminalidade mediante o desarmamento geral das vítimas.

Quando o porta-voz das Farc, Olivério Medina, contou que a organização tinha dado dinheiro para a campanha eleitoral do PT, houve uma correria geral para persuadir o público de que tudo não passava de bravata. Mas, logo depois, a elite petista organizava um movimento de protesto para libertar da prisão o homem acusado de manchar a reputação do partido com fanfarronadas irresponsáveis. Em vez de enxergar algo de suspeito em tamanha incongruência, a nação preferiu acreditar que o PT era um partido cristianíssimo, que retribuia o mal com o bem.

Em 2002, três dos quatro concorrentes à presidência eram membros de partidos aliados às Farc no Foro de São Paulo, e o quarto, José Serra, informado de tudo, preferiu perder a eleição de bico fechado, provando fidelidade estóica às suas raízes esquerdistas. Enquanto a mídia local celebrava a lisura do pleito, o vencedor confessava ao “Le Monde” que a eleição tinha sido “apenas uma farsa, necessária à tomada do poder”, sendo confirmado nisso pelo sr. Marco Aurélio Garcia em declaração ao jornal argentino “La Nación” de 5 de outubro de 2002. Em julho de 2005, o então já tarimbado presidente admitia ter tomado decisões de governo em reuniões secretas do Foro de São Paulo, longe do Congresso e da opinião pública.

A troca de cocaína pelas armas que Fernandinho Beira-Mar trazia do Líbano era feita na Tríplice-Fronteira (Brasil-Argentina-Paraguai). Semanas atrás, o promotor do Distrito de Manhattan, Robert Morgenthau, conseguiu fechar um canal de dinheiro pelo qual três bilhões de dólares de drogas, seqüestros, contrabando e outros crimes tinham fluído dessa região para organizações terroristas muçulmanas, por meio de um banco de Nova York. Quando a existência desse canal foi denunciada pela primeira vez, a esquerda brasileira protestou com veemência, dizendo que era tudo uma sórdida mentira imperialista.

Aos poucos, a verdade está aparecendo. Mas ela é ainda grande e feia demais para os olhos sensíveis de uma nação que se deixou enfraquecer por uma longa dieta de mentiras cor-de-rosa. O Brasil talvez precise de mais alguns anos para entender que, comparado à trama do Foro de São Paulo, o Mensalão é quase um negócio honesto.

Monumento às vaidades

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 6 de abril de 2006

O país inteiro está hoje mergulhado numa atmosfera turva de incerteza e temor. As denúncias que se sucedem nada esclarecem: só fazem aumentar a suspeita de que cada crime revelado oculta em seu bojo outro ainda pior, como sombras dentro de sombras, emergindo sem parar de um buraco sem fundo, alastrando-se por toda parte, encobrindo progressivamente o horizonte e o mundo.

Mais que a debacle da moralidade, é a humilhação completa da inteligência, bracejando em desespero num mar de trevas, incapaz de enxergar um caminho, um sinal, uma esperança.

Não se chega a uma situação dessas sem uma longa e geral acumulação de mentiras, que pareceram convenientes no momento em que foram inventadas, mas cujo efeito global, ultrapassado um certo limite, arrisca ser nada menos que a supressão de todas as possibilidades de uma ação corretiva.

Não empreguei à toa as palavras “longa” e “geral”. A ocultação das forças essenciais em jogo começou há muito tempo. Remonta pelo menos a 1990, data da concepção do Foro de São Paulo. Ao longo de uma década e meia, enquanto o sr. Luís Inácio Lula da Silva resolvia os destinos do país em conversações secretas com Hugo Chavez e Fidel Castro e os três punham suas decisões em ação através de uma malha gigantesca de quase duas centenas de organizações legais e ilegais fielmente obedientes à linha de conjunto, a opinião pública brasileira, ignorante de tudo, tinha sua atenção absorvida inteiramente nas picuinhas parlamentares e administrativas do dia, como se não houvesse nada de mais importante acontecendo, como se estivéssemos na mais estável e aprazível das democracias européias, sem nada a discutir senão orçamentos e impostos. Jamais um povo foi privado, por tanto tempo, do conhecimento dos fatores fundamentais que moldavam o seu destino. Como esperar que, à sombra de tão profunda e duradoura alienação, não germinassem a trapaça e o crime em doses incontroláveis?

Mas quem, precisamente, foi o culpado por estender sobre os debates públicos esse manto de obscuridade, camuflagem ideal para as práticas mais obscenas do “partido ético”? Mais fácil seria fazer a lista dos inocentes. Não passam de umas dezenas. Todos os outros — líderes políticos, empresários, jornalistas, intelectuais, comandantes militares –, na mais branda das hipóteses, foram cúmplices da grande farsa de 2002, uma eleição em família, pré-moldada na escuridão do Foro de São Paulo e apresentada aos votantes, numa apoteose de ufanismo cínico, como “a mais transparente da nossa História”.

Será que agora, diante da imoralidade triunfante, esses indivíduos entendem que foram eles próprios que deram ao PT o salvo-conduto para delinqüir?

Será que um dia, neste país de tantos homens espertos, sempre com um sorrisinho de superioridade irônica no canto da boca, alguém vai aprender que esperteza é muitas vezes burrice, teimosia sonsa de uma aposta contra a verdade?

Parece que não. Admiradores de Maquiavel, nem sabem que o secretário florentino, mestre dos espertalhões, foi sempre um perdedor, um derrotado, bom de bico como literato, mas crédulo e bobo em todas as situações da política prática, um deplorável infeliz sem nada a ensinar a ninguém senão a miséria de um ressentimento incurável. 

Nada debilita mais a inteligência do que a obstinação orgulhosa na astúcia fracassada.

Entre a esperteza e a força, dizia Napoleão, a força sempre vence. E de onde vem a força? Vem da coragem de admitir a verdade, da franqueza na palavra e na ação, da clareza de propósitos, da imunidade a subornos financeiros ou, principalmente, psicológicos. Mas quanta gente, que nem pensaria em vender-se por dinheiro, não se vendeu por uns afagos da esquerda chique, pela delícia de sentir-se politicamente correto?

O preço do monumento que ergueram às suas pequenas vaidades é a humilhação sem fim de quem já não pode brandir a verdade contra o inimigo por medo de que a lâmina resvale na sua própria carne.

A ousadia da ignorância

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 30 de março de 2006

A convocação iluminista à “autonomia de pensamento”, condensada na palavra-de-ordem kantiana Aude sapere! (“Ouse saber!”), é compreendida vulgarmente como um apelo a que cada um se livre de autoridades externas e siga apenas a sua própria razão.

A liberdade iluminista opõe-se então à coerção tradicional como a discriminação prudente se opõe à credulidade irrefletida, a inteligência ao temor irracional, o conhecimento à ignorância, a luz às trevas.

Mas isso é só uma imagem popular, um slogan publicitário. Serve para excitar a massa adolescente, camuflando o verdadeiro sentido do programa iluminista.

A divisa Aude sapere! associa-se intimamente a outro topos da filosofia de Kant, a “revolução copernicana” da estrutura do saber. Kant entendia por esse termo a inversão radical da hierarquia do conhecimento, operada com o objetivo de fazer com que a razão, em vez de se amoldar à realidade dos fatos, assuma o comando da situação e imponha aos fatos a sua própria ordem. Esta é conhecida mediante a análise das condições necessárias a “todo conhecimento possível”: a estrutura da percepção e a estrutura da razão. A razão tem, por definição, validade universal, mas, por si, ela só conhece formas gerais abstratas. Tudo o que conhecemos da realidade concreta vem filtrado pela nossa estrutura de percepção, de modo que nada sabemos das coisas em si, mas apenas daqueles seus aspectos – os “fenômenos” ou aparências — que passam por esse filtro. Mas, como o desenho do material sensível é determinado pelo nosso aparato de percepção, é forçoso concluir que, fora do que esse aparato pode captar, o mundo é apenas uma massa caótica de sinais. Essa massa adquire forma, ordem e sentido quando passa pelo filtro da nossa percepção e em seguida é validada pelos princípios universais da razão. Mas, se tudo o que nos é acessível vem do nosso aparato de percepção, e se as percepções por sua vez têm de ser enquadradas nas categorias do pensamento racional, o resultado é que nossa razão é soberana em face de todo objeto de conhecimento possível: ela não tem de prestar satisfações a nenhuma “realidade” externa, mas, ao contrário, ela determina as condições que essa realidade tem de cumprir para ser admitida no mundo do conhecimento.

A famosa “autonomia do pensamento”, então, não consiste essencialmente em estar livre de autoridades clericais ou governamentais, mas em desprezar a coerção externa dos fatos. Tal é o sentido da “revolução copernicana” no pensamento. Na ciência antiga, medieval e renascentista, a ordem total do mundo em que vivemos era o juiz soberano do conhecimento. A razão humana não passava de uma manifestação parcial e limitada dessa ordem total que, em nós, se reconhecia a si mesma na medida das nossas possibilidades, restando sempre um horizonte de mistério que recuava a cada novo avanço do conhecimento. Com Kant, a razão humana proclamava sua independência do mundo externo, mudando radicalmente o sentido da “verdade”. Antes, a verdade consistia na coincidência do pensado com a ordem dos fatos conhecidos. Agora, passava a ser a obediência a uma filtragem racional predeterminada, a um método livremente concebido pela razão por meio da análise kantiana de si mesma. O que quer que estivesse fora do método, por mais patente que fosse sua presença, era desprezado como irrelevante, nulo e por fim inexistente. E assim é até hoje nos círculos bem-pensantes, onde uma autoridade censória mais burra e intolerante do que todas as anteriores recorta o mundo no formato da sua ignorância, abolindo continentes inteiros da realidade. A sentença “Se os fatos não confirmam a minha teoria, pior para os fatos” é de Hegel, mas ela expressa antes a quintessência do iluminismo kantiano. O sentido interior, esotérico, do “Ouse saber”, é no fim das contas “Ouse ignorar”: entre os fatos e o método, prefira o método. Obscurantismo é o nome secreto do iluminismo.

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