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Antes da tragédia

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 16 de novembro

Quem não lê as colunas de Ann Coulter e não ouve o programa de Rush Limbaugh no rádio não tem a menor idéia do que se passa na política americana. Se ambos são superlativamente odiados pela esquerda, não é tanto por suas opiniões, similares às de outros conservadores quaisquer, mas por um detalhe que os torna indigeríveis: eles têm as informações essenciais, e não hesitam em publicá-las quando a mídia em geral as ignora ou prefere sacrificar a verdade no altar das conveniências.

O que li no último artigo de Ann Coulter é indispensável para uma avaliação realista da vitória dos democratas: para todo presidente americano reeleito, perder a base parlamentar no meio do segundo mandato é regra, não exceção. Aconteceu a Roosevelt, Eisenhower, Kennedy-Johnson, Nixon-Ford, Reagan e Clinton. Por que não aconteceria a George W. Bush? Com uma diferença: Bush perdeu muito menos cadeiras no Senado e na Câmara do que seus antecessores em situação idêntica. O ganho total da oposição foi o menor que já houve num sexto ano de presidência.

Conclusão: não houve nenhuma “derrota arrasadora” dos republicanos, nenhum “tsunami eleitoral”, nenhuma “rejeição maciça” da guerra iraquiana. Quem diz que houve está tentando alterar criar um simulacro de realidade por meio de pura ênfase verbal. Isso não é jornalismo, é propaganda.

Quanto a Limbaugh, sem ele eu não teria jamais sabido que até poucos dias antes do 11 de setembro praticamente todos os altos postos de segurança no governo de Washington ainda estavam nas mãos dos clintonianos, cujos aliados parlamentares, de pura má-vontade, haviam adiado por meses confirmação dos substitutos nomeados pelo presidente. Se você não sabe disso, não percebe que a gritaria democrata contra a “imprevidência” dos serviços de segurança do governo Bush foi puro fingimento maquiavélico. Para mim, isso não é surpresa: há quarenta anos vejo que a esquerda só sai espumando de cólera justiceira quando tem algum crime a esconder, não raro o mesmo que ela denuncia, em geral algum muito pior. Mas o grosso da população brasileira ainda não notou essa constante.

Nos EUA, felizmente, Coulter está na lista de best sellers e o programa de Limbaugh tem 38 milhões de ouvintes (38 vezes a tiragem do New York Times).

O erro básico dos conservadores americanos é continuar acreditando que os esquerdistas são políticos normais, que podem ser combatidos por meio do voto. O instrumento principal de ação da esquerda é o crime, e oferecer a criminosos a chance da concorrência eleitoral é dignificá-los e fortalecê-los. A única arma que pode vencê-los é o ativismo judicial, do qual eles mesmos se servem com tanta desenvoltura hipócrita. É preciso colocá-los no banco dos réus antes que eles subam à tribuna da acusação, da tribuna saltem para os palanques, dos palanques para os postos de governo e daí para o poder absoluto. E é preciso agir rápido, porque, uma vez que eles cheguem à última etapa, a Justiça já nada poderá contra eles. Isso já está acontecendo no Brasil, mas, se acontecer nos EUA, será uma tragédia de alcance mundial.

A vitória da ficção

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 2 de novembro

Notável na eleição de domingo foi a facilidade com que provas cabais do que governo fez no passado acabaram parecendo, aos eleitores, menos dignas de crédito do que invencionices artificiosas quanto àquilo que a oposição pretenderia fazer no futuro. Nada indicava que Alckmin planejasse eliminar os programas sociais ou privatizar a Petrobrás. Tudo evidenciava que Lula era corrupto e mentiroso. Nas urnas, a ficção prevaleceu sobre a realidade.

O motivo do aparente absurdo, no entanto, é simples e claro. Durante vinte anos a corrupção nacional foi descrita na mídia em termos de luta de classes: era a “elite” roubando a multidão dos coitadinhos. Nesse contexto, o “partido dos pobres” parecia ser mesmo o partido dos puros. Então ficava realmente difícil acreditar que uma organização tão sacrossanta se transfigurasse, da noite para o dia, numa gangue de ladrões.

A criminalidade petista é diferente da dos outros partidos: enquanto nestes floresce a paixão avulsa do enriquecimento pessoal, o PT delinqüe por sistema e obrigação revolucionária, dentro de uma estratégia abrangente de poder total e inserção do Brasil nos planos do Foro de São Paulo.

A oposição, porém, toda ela formada sob a prestigiosa influência da luta esquerdista contra o regime militar, via com horror a hipótese de desmoralizar, junto com o PT, o esquerdismo em geral. Esforçou-se, pois, para isolar uma coisa da outra, encobrindo as ligações do partido com organizações subversivas internacionais e apresentando os crimes petistas como banais delitos de corrupção, só distintos de seus antecedentes pelo volume inaudito, que os tornava, aos olhos do povão, ainda mais inverossímeis.

A única vez em que o nome “Farc” apareceu associado ao PT foi quando eclodiu a suspeita de ajuda secreta à campanha eleitoral de 2002. Apresentada pela mídia como um caso de contribuição ilícita igual a qualquer outro, a notícia ignorava a longa colaboração entre o partido político e a organização narcoguerrilheira, dando a entender que aí nada havia de errado, desde que ninguém ganhasse dinheiro com isso. Era como se vantagens políticas obtidas da parceria com o crime não fossem elas próprias criminosas, como se a proteção dada pelo PT às Farc não tivesse ajudado em nada os índices de violência no Brasil a alcançar a taxa astronômica de 50 mil homicídios anuais, mesmo sabendo-se que a quadrilha colombiana vendia cocaína e dava treinamento paramilitar às gangues locais. Autoneutralizadas pela ocultação do essencial, pela inversão da escala de gravidade dos crimes e, em última análise, pela cumplicidade tácita com o acusado, as denúncias da oposição não poderiam senão levantar suspeita contra elas próprias e fortalecer a candidatura Lula. Parecem ter sido calculadas justamente para esse fim, mas, tenha ou não havido um pacto abominável entre PT e PSDB, a força residual da solidariedade esquerdista basta para explicá-las. O amor nacional aos eufemismos pode chamar a omissão tucana de “moderação”. Mas moderação na defesa da verdade é serviço prestado à mentira. Tal como em 2002, o PSDB foi o autor da comédia eleitoral que deu a vitória ao PT.

Piu-Piu na cadeia

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 2 de novembro

Em artigo publicado em 30 de outubro, anunciei: “Como Lula promete para o seu segundo mandato a ‘democratização dos meios de comunicação’, os órgãos de mídia que se calaram quanto aos crimes maiores do presidente serão recompensados mediante a oficialização da mordaça” (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/061030dc.html).

Não se passaram 48 horas e, como invariavelmente acontece há quinze anos, os petistas me deram razão. Saíram espancando e intimidando jornalistas, clamando por mais controle estatal da mídia e até caprichando na mesquinharia ao ponto de boicotar o pagamento de aposentadoria a um de seus recentes desafetos.

Dos perseguidos, nenhum era direitista, pró-americano, sionista ou cristão conservador. Eram todos “companheiros de viagem” que passaram a década ajudando a encobrir o eixo Lula-Castro-Chávez-Farc, a idealizar a imagem do “presidente operário” e a realizar o sonho gramsciano de dar ao esquerdismo a autoridade moral onipresente e invisível de um imperativo categórico. Foram punidos apenas porque, depois de ter servido a essa autoridade com o melhor de suas forças, engolindo gentilmente sapo em cima de sapo, chegaram ao limite de elasticidade das suas consciências e recuaram ante o derradeiro upgrade de abominação que o governo lhes exigia: não quiseram compactuar com uma roubalheira que não os beneficiava. Por essa malcriação anêmica e tardia – o máximo de independência mental que se concebe no Brasil de hoje –, foram rotulados de servos do imperialismo, filhotes da ditadura e reacionários fascistas, padecendo o destino que a “democracia ampliada” reserva a esses tipos execráveis. Depois disso, ainda hesitam em admitir o óbvio e, infectados até à medula da “síndrome do Piu-Piu” (para uma descrição desta sintomatologia, v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/041204globo.htm), insistem em perguntar, como Veja: “Fatos isolados ou política de governo?” É claro: tendo dado persistente sumiço a atas e documentos do Foro de São Paulo, sentem repulsa de confessar que os planos ali anunciados estão sendo levados à prática. Imagino-os, em breve, trancafiados numa prisão comunista, interrogados por oficiais cubanos (como já acontece na Venezuela) e perguntando-se uns aos outros: “Será que eu vi um gatinho?”

Parece mesmo impossível explicar a essas pessoas que há alguma diferença entre a modernização capitalista usada para consolidar um regime constitucional e para financiar a construção discreta de uma “democracia popular”. É a diferença entre Margaret Thatcher e Vladimir Iilitch Lênin, mas fica difícil enxergá-la quando se acredita no poder libertário automático da economia de mercado – uma sugestão hipnótica que após a queda da URSS consultores comunistas meteram na cabeça do empresariado para desarmá-lo ideologicamente. Imbuídas dessa fé mágica, publicações como Veja e a Folha acham que é possível livrar-se do comunismo recusando-se a enxergá-lo e reprimindo severamente toda tentação anticomunista. Deu no que deu, mas a existência ou inexistência do gatinho ainda continua uma dúvida metafísica insolúvel.

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