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A ideologia da anti-ideologia

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de setembro de 2007

O sonho de um mundo “sem ideologias”, onde tudo seja resolvido por meio de critérios “pragmáticos” e “de mercado”, orienta hoje não só muitas decisões da classe empresarial mas a política externa de vários países e boa parte das opiniões em circulação no debate público sobre os mais variados assuntos.

Para muita gente, o pragmatismo supra-ideológico – chamemo-lo assim, em falta de outro nome — adquiriu estatuto de sabedoria convencional ao ponto de que já quase ninguém percebe que ele próprio é uma ideologia, e aliás uma das mais grosseiras que o mundo já conheceu.

A estrutura interna do pensamento ideológico caracteriza-se pela compressão forçada da realidade para dentro de uma única dimensão, portanto pela recusa ou proibição de examinar os fatos e aspectos que não caibam no padrão escolhido.

Em geral os fundadores de uma ideologia sabem que ela é objetivamente falsa. Não a defendem porque crêem que ela descreve acuradamente a realidade, mas porque esperam que, se um número suficiente de pessoas acreditar no que dizem, a conduta delas se tornará mais previsível e manipulável na direção desejada. Toda ideologia é nesse sentido uma profecia auto-realizável: ela visa a criar as próprias condições sociais e psicológicas que lhe darão retroatiovamente uma aparência de veracidade. Mas no fundo a ambição dos ideólogos fundadores é transcender a distinção de aparência e realidade, fazendo com que esta copie tão bem aquela que se torne indiscernível dela e acabe por se transformar nela efetivamente. Essa ambigüidade inata do pensamento ideológico escapa geralmente à quase totalidade dos seus aderentes e seguidores, sendo uma espécie de segredo originário bem guardado pelos fundadores e só acessível, em cada geração, a uma reduzida elite de seus discípulos mais talentosos e clarividentes.

Todo ideólogo – inclusive o fundador – é por excelência um manipulador, mas, por isso mesmo, está sujeito a ser manipulado por seus adversários, na medida em que estes, sabendo de antemão como ele interpretará (ou fingirá interpretar) o curso dos acontecimentos, podem alimentá-lo de informações pré-selecionadas para induzi-lo a conclusões que sejam as mais interessantes para eles, não necessariamente para ele.

Toda ideologia é assim um canal de desinformação, mas com mão dupla, no qual o desinformante está sujeito a ser ele próprio desinformado. Isso acontece quando o ideólogo, no afã de persuadir os outros, se deixa ele próprio persuadir pela sua ideologia, esquecendo-se de que ela era apenas um instrumento de ação, na origem, e passando a tomá-la como critério de explicação da realidade. No corpo total dos adeptos e propugnadores de uma ideologia, evidentemente os mais sujeitos a cair nesse erro são os círculos “exteriores” mais distantes do fundador, que já receberam a ideologia pronta e, não tendo participado da sua criação, são geralmente insensíveis à sua ambigüidade originária. O risco é maior se nem mesmo receberam a doutrina da sua fonte inicial, mas de segunda mão, como crença usual infusa na cultura ambiente. Assumindo como verdade objetiva a simplificação compressiva originária, tornam-se assim maximamente previsíveis e manipuláveis.

No caso da ideologia aqui mencionada, o pragmatismo supra-ideológico, a ironia da situação é que um dos seus mais fortes atrativos retóricos é o apelo à “maturidade”, ao “realismo”, à “política de resultados” e à “objetividade dos fatos” (com forte respaldo “tecno-científico”) em oposição ao “romantismo” e à “fé irracional” que, segundo essa perspectiva, seria a característica eminente das ideologias em geral – isto é, porca miséria, das outras ideologias. Por meio desse viés o pragmatista supra-ideológico se torna o mais ingênuo e manipulável dos ideólogos no instante mesmo em que se imagina imunizado contra ilusões ideológicas.

Na medida em que encara o mundo sub specie mercatus , ele fecha os olhos para todas as motivações humanas que não possam ser explicadas pelo cálculo econômico racional, tornando-se assim incapaz de prever as ações de tipos como os aiatolás muçulmanos, os generais chineses ou os homens da KGB. Quando se defronta com essas ações, ilude-se ao ponto de desprezá-las como irracionais, primitivas e destinadas ao fracasso, com o que ajuda esses seus adversários a passar por fracos para mais facilmente derrotá-lo.

É claro que ao me referir a cálculo econômico não quero dizer que o pragmatista supra-ideológico explique tudo por fatores econômicos (se bem que ele o faça até com freqüência), mas que o tipo de raciocínio que ele emprega em todas as áreas de investigação e ação ao seu alcance — a diplomacia ou a guerra, por exemplo — seja estruturalmente o mesmo que emprega em economia, fundado no egoísmo racional dos motivos. É por isso que ações de longuíssimo prazo, que transcendem a expectativa de vida dos personagens envolvidos, não lhe parecem ter realidade em si mesmas, mas ser apenas construções ideológicas erigidas em cima de interesses mais imediatos e palpáveis – o que significa que ele não as compreende de maneira alguma. As derrotas vexaminosas do Ocidente na competição com o movimento comunista internacional – cada vez mais patentes por trás da ilusória “queda da URSS” – ou a impotência européia ante a invasão islâmica são os exemplos mais notórios.

O pragmatismo supra-ideológico não só é uma ideologia, mas é mesmo uma das mais enganosas, já que a maior parte de seus seguidores lhe ignora totalmente as origens e por isso mesmo dificilmente se encontra entre eles um manipulador consciente: são praticamente todos vítimas da ilusão que propagam. Embora leve o nome da escola filosófica fundada por Charles Sanders Peirce e William James, essa ideologia tem pouco a ver com ela; e, embora seja hoje moeda corrente entre os liberais, ela se origina no que pode haver de mais oposto ao liberalismo, isto é, a tecnocracia positivista com seu sonho de substituir a vida política por uma administração científica centralizada. Os pragmatistas supra-ideológicos são tão inconscientes das implicações reais da sua escolha que nem percebem que a hegemonia da racionalidade econômica sobre os fatores ditos ideológicos e “irracionais” da vida social não traria jamais a vitória da liberdade de mercado, mas a expansão ilimitada da administração estatal.

Um mundo sem ideologias é o mesmo que um mundo sem política – é o projeto da “sociedade administrada”, isto é, totalmente controlada, para o qual tantos liberais contribuem inconscientemente por meio de sua adesão ao pragmatismo supra-ideológico, que deveriam antes combater por todos os meios ao seu dispor.

O discurso ideológico é, no fundo, nada mais que retórica – o tipo de pensamento que não é voltado para o conhecimento, mas para a ação imediata. A persuasão retórica é absolutamente indispensável à ação prática, na esfera privada como na vida pública. Querer eliminá-la é tão utópico – e tão ideológico – quanto querer suprimir o mercado.

O mal não está na mera existência do pensamento ideológico, nem mesmo na sua onipresença na vida social. O mal aparece quando as esferas de atividade que deveriam ser orientadas por formas de pensamento mais exigentes e mais voltadas à descoberta da verdade se deixam infectar de ideologismo, como acontece, no Brasil, com a quase totalidade do que se produz sob o rótulo de “ciências sociais”. Mas a adesão mesma de tantos acadêmicos e consultores empresariais ao pragmatismo supra-ideológico é um sintoma desse mal.

A natureza do marxismo

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 18 de dezembro de 2003

Investigando durante décadas a natureza do marxismo, acabei concluindo que ele não é só uma teoria, uma “ideologia” ou um movimento político. É uma “cultura”, no sentido antropológico, um universo inteiro de crenças, símbolos, valores, instituições, poderes formais e informais, regras de conduta, padrões de discurso, hábitos conscientes e inconscientes, etc. Por isso é autofundante e auto-referente, nada podendo compreender exceto nos seus próprios termos, não admitindo uma realidade para além do seu próprio horizonte nem um critério de veracidade acima dos seus próprios fins autoproclamados. Como toda cultura, ele tem na sua própria subsistência um valor que deve ser defendido a todo preço, muito acima das exigências da verdade ou da moralidade, pois ele constitui a totalidade da qual verdade e moralidade são elementos parciais, motivo pelo qual a pretensão de fazer-lhe cobranças em nome delas soa aos seus ouvidos como uma intolerável e absurda revolta das partes contra o todo, uma violação insensata da hierarquia ontológica.

A constituição da sua identidade inclui dispositivos de autodefesa que  impõem severos limites à crítica racional, apelando, quando ameaçada real ou imaginariamente, a desculpas mitológicas, ao auto-engano coletivo, à mentira pura e simples, a mecanismos de exclusão e liquidação dos inconvenientes e ao rito sacrificial do bode expiatório.

Iludem-se os que acham possível “contestar” o marxismo por um ataque bem fundamentado aos seus “princípios”. A unidade e a preservação da sua cultura estão para o marxista acima de todas as considerações de ordem intelectual e cognitiva, e por isso os “princípios” expressos da teoria não são propriamente “o” fundamento da cultura marxista: são apenas a tradução verbal, imperfeita e provisória, de um fundamento muito mais profundo que não é de ordem cognitiva e sim existencial, e que se identifica com a própria sacralidade da cultura que deve permanecer intocável. Esse fundamento pode ser “sentido” e “vivenciado” pelos membros da cultura por meio da participação na atmosfera coletiva, nos empreendimentos comuns, na memória das glórias passadas e na esperança da vitória futura, mas não pode ser reduzido a nenhuma formulação verbal em particular, por mais elaborada e prestigiosa que seja. Por isso é possível ser marxista sem aceitar nenhuma das formulações anteriores do marxismo, incluindo a do próprio Marx. Por isso é possível participar do movimento marxista sem nada conhecer da sua teoria, assim como é possível rejeitar criticamente a teoria sem cessar de colaborar com o movimento na prática. A investida crítica contra as formulações teóricas deixa intacto o fundamento existencial, que atacado reflui para o abrigo inexpugnável das certezas mudas ou simplesmente produz novas formulações substitutivas que, se forem incoerentes com as primeiras, não provarão, para o marxista, senão a infinita riqueza do fundamento indizível, capaz de conservar sua identidade e sua força sob uma variedade de formulações contraditórias que ele transcende infinitamente. O marxismo não tem “princípios”, apenas impressões indizíveis em constante metamorfose. Como a realidade da vida humana não pode ser vivenciada senão como um nó de tensões que se modificam no tempo sem jamais poder ser resolvidas, as contradições entre as várias formulações do marxismo farão dele uma perfeita imitação microcósmica da existência real, dentro da qual o marxista pode passar uma vida inteira imune às tensões de fora do sistema, com a vantagem adicional de que as de dentro estão de algum modo “sob controle”, atenuadas pela solidariedade interna do movimento e pelas esperanças compartilhadas. Se o marxismo é uma “Segunda Realidade”, na acepção de Robert Musil e Eric Voegelin, ele o é não somente no sentido cognitivo das representações ideais postiças, mas no sentido existencial da falsificação ativa, prática, da experiência da vida. Por isso qualquer povo submetido à influência dominante do marxismo passa a viver num espaço mental fechado, alheio à realidade do mundo externo.

Detalharei mais no próximo artigo estas explicações, resumo das que ofereci no meu recente debate com um professor da Faculdade de Direito da USP, às quais meu interlocutor respondeu que eu pensava assim por ter “problemas emocionais graves” — sem perceber que, com isso, dava a melhor exemplificação da minha teoria.

Duas notas de rodapé

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 12 de janeiro de 2003

Se você ainda se surpreende ante a pressa indecente com que neste país os empresários se atiram aos braços de um partido que não esconde seu propósito de exterminá-los como classe, é porque está atrasado em pelo menos dois séculos. Fenômenos semelhantes já foram observados e bem explicados desde o tempo da Revolução Francesa, e terminam sempre do mesmo modo: com a extinção da classe.

Leia o seguinte parágrafo:

“Enquanto a ordem permanece, a propriedade tem influência superior à daqueles que podem querer violar a paz pública; mas, quando a lei e a ordem estão em grande parte destruídas, os ricos são sempre demasiado inclinados a buscar na submissão, ou na mudança de partido, os meios de proteger-se a si mesmos e às suas fortunas. A propriedade, que nos tempos normais faz corajosos os seus detentores, torna-se, nos tempos de perigo iminente, a causa de sua covardia egoísta.”

Sir Walter Scott, que a maioria só conhece como romancista mas que foi também excelente historiador, escreveu isso na sua monumental Life of Napoleon Buonaparte, Emperor of the French, with A Preliminary View of the French Revolution (uso a edição americana, Philadelphia, 1827, vol. I, p. 116). É um livro cheio de defeitos, compreensíveis numa primeira tentativa de sintetizar tamanha massa de documentos — talvez a maior já examinada até então por qualquer historiador — sobre um passado ainda recente. Mas continua um clássico e, se falha aqui e ali na reconstituição dos acontecimentos (Sainte-Beuve apontou-lhe erros graúdos nas Causeries du Lundi), sua melhor parte reside justamente nas observações de psicologia.

Observações similares encontram-se em Origines de la France Contemporaine, de Hippolyte Taine, para o meu gosto o melhor livro de História que já se escreveu neste mundo. As idéias revolucionárias não se espalham pelo povo antes de ter ganho a adesão ou pelo menos a cumplicidade da “classe dominante”. Antonio Gramsci deu receitas precisas de como apressar o suicídio coletivo dos ricos. Em nenhum outro lugar foram aplicadas com tanto sucesso como no Brasil.

Amostra desse sucesso: não há hoje um rico que não tenha pelo menos um vago sentimento de culpa por ser rico, por ter subido na vida através da organização racional dos meios de obter lucro. Em contrapartida, ninguém sente vergonha de ter subido pela organização da militância enragée, pela exploração da inveja e do ressentimento coletivos, pela engenharia do ódio. É claro que, objetivamente, nenhum capitalista pode ser, enquanto capitalista, tão ruim e pérfido quanto um agitador revolucionário. Mas a nova escala de valores, que faz deste um anjo e daquele um demônio, já está tão profundamente impregnada na sensibilidade coletiva que funciona como premissa automática de qualquer julgamento moral. Os capitalistas são os primeiros a subscrevê-la, prosternando-se aos pés do adversário como pecadores em busca de absolvição. É o que já dizia Sir Walter.
***
Se você imagina que o comunismo é uma “ideologia” e que uma vez desmoralizada esse ideologia ele desapareceu da face da Terra, a sugestão que lhe dou é: — Acorde. Você está sonhando. Está no mundo da lua. Está tirando conclusões sobre o mundo real sem o mínimo conhecimento de causa e com base em fantasias da sua própria invenção. Ideologia é um discurso legitimador, um sistema de pretextos para justificar alguma ação política. Mas, se o pretexto pode justificar a ação, não pode orientá-la. Toda ação tem de seguir um plano logicamente concatenado, que o pretexto apenas encobre e disfarça mediante mil e um arranjos verbais de ocasião. Conceber o comunismo apenas como ideologia, ou predominantemente como ideologia, é tão maluco quanto julgar um homicídio tão-somente com base nas alegações do assassino em favor de si próprio.

Para saber o que é o comunismo, é preciso olhá-lo sobretudo como conjunto de ações concretas, que vão desde a formação dos primeiros grupos militantes até à tomada do poder e à instauração da nova sociedade.

O comunismo é a lógica interna desse conjunto de ações, do qual a ideologia é apenas uma peça auxiliar indefinidamente substituível. Sim, substituível: o comunismo já trocou de ideologia uma bela meia dúzia de vezes, sem perder nada de sua unidade enquanto força historicamente atuante. A palavra unidade, aí, é a chave: o comunismo nunca teve unidade ideológica. Teve sempre, em contrapartida, uma vigorosa unidade estratégica, mesmo nos momentos em que parecia mais dividido, já que a produção e administração de divisões é mesmo uma das forças que o mantêm em movimento. Ora, o conceito de uma coisa nada mais é do que a apreensão intelectiva daquele fator “x” ao qual ela deve sua unidade interna. O jogo dialético da unidade estratégica na diversidade tática é a chave para a apreensão conceptual do comunismo. A fórmula é aliás devida ao próprio Stálin — o maior dos estrategistas do comunismo em todos os tempos, maior mesmo que Gramsci.

Portanto, para saber se um sujeito é comunista ou não, é inútil catalogar ideologicamente o que ele diz. O que é preciso perguntar é: com quem ele se associa, por quanto tempo e com que fins? Quais são suas alianças de ocasião e suas parcerias duradouras? Dito de outro modo: quais as suas ligações táticas e estratégicas? Ou, de outro modo ainda: que estratégia de longo prazo dá unidade à variedade de suas mutações táticas? Vistas sob esse ângulo, até as variações aparentemente insanas de uma “metamorfose ambulante” podem revelar um método por trás da loucura.

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