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Ciência e ideologia

Olavo de Carvalho

Época, 8 de Abril de 2001

Quem diz que são a mesma coisa não sabe o que diz

Neste país você não pode impugnar uma opinião como ideológica e não-científica sem que se ergam da platéia vozes histéricas, sublinhadas por olhares de ódio, proclamando que ciência é ideologia. Pior ainda, ideologia burguesa.

Que nenhum conhecimento possa estar livre da contaminação das crenças gerais da sociedade é coisa óbvia. Mas pretender que todas essas crenças sejam ideológicas e associadas a uma classe em particular já é loucura, porque uma ideologia de classe não é outra coisa senão a especificação ideológica de crenças comuns a todas as classes. A maioria das pessoas está persuadida, por exemplo, de que a vida tem algum sentido. Se não fosse essa crença geral, nenhuma delas poderia tentar realizar esse sentido segundo valores “aristocráticos”, “burgueses”, “proletários” ou seja lá o que for. Uma teoria científica que dê por pressuposto que a vida tem sentido está contaminada de uma crença do senso comum, mas isso não a torna ideológica de maneira alguma. A distinção de senso comum e ideologia é tão incontornável que todas as ideologias em conflito buscam argumentos no depósito do mesmo senso comum. Ele existe sem elas, mas não elas sem ele.

Em segundo lugar, ainda que uma teoria científica repetisse ipsis litteris uma sentença de alguma cartilha ideológica, nem por isso ela se tornaria ideológica. Uma afirmação não é ideológica ou científica por seu conteúdo isolado e sim pela forma lógica da estrutura argumentativa que a sustenta.

A argumentação ideológica é toda feita de saltos, elipses e duplos sentidos por onde se introduzem de maneira mais ou menos sorrateira os pressupostos mais arriscados e descabidos. Já a estrutura da demonstração científica exige o controle rigoroso do sentido intencional dos conceitos e a translucidez no encadeamento das provas. Isso é assim justamente para que a presença de qualquer elemento ideológico, fantástico ou subjetivo possa ser advertida e descontada no cômputo da validade final das provas. Esse cômputo é o que justamente falta no pensamento ideológico, que a ele se furta sob a alegação insana de que ele próprio é a única forma de pensamento que existe – alegação que, pelo simples fato de ser brandida contra uma outra forma de pensamento, já afirma a existência desta última e, portanto, sua própria falsidade.

Quem proclama que ciência é ideologia só prova, com isso, que é um ideólogo e não um homem de ciência, pois a identidade de ciência e ideologia só vale como preceito ideológico e não como regra do método científico. Essa proclamação não expressa uma identidade real, mas um desejo: ciência e ideologia não são a mesma coisa, mas o ideólogo desejaria que fossem, para que nenhuma prova científica pudesse valer contra as pretensões de sua ideologia.

Que duas coisas costumem aparecer juntas não quer dizer que sejam a mesma coisa. A mistura usual da ciência com elementos ideológicos não apenas não constitui prova de que ciência seja ideologia, mas, bem ao contrário, a possibilidade mesma de assinalar aí a presença desses elementos repousa na distinção entre eles e a ciência genuína. Dito de outro modo: se ciência fosse ideologia, seria impossível provar que há elementos ideológicos numa teoria científica qualquer. A identidade de ciência e ideologia é, pois, um desses casos de escabrosidade intelectual em que o conteúdo do enunciado é desmentido pelo fato mesmo de que seja possível alguém enunciá-lo, como, por exemplo, quando um sujeito diz que aquilo que está dizendo é indizível. O indivíduo que é adestrado para repetir frases desse tipo sem atentar para a incongruência da situação se torna progressivamente um alienado verboso e sem consciência de si.

Infelizmente, esse é o único treinamento que hoje se pode adquirir na maioria das universidades brasileiras. Por isso todo mundo aí acredita que ciência é ideologia.

O irracional superior

Olavo de Carvalho

Época, 10 de fevereiro de 2001

Tal personagem já está entre nós. Converse dois minutos com ele e emburre para sempre.

Outro dia perguntei a um festejado jornalista brasileiro o que ele achava de algo que eu tinha lido num determinado livro e obtive a seguinte resposta: “Nunca ouvi falar e acho que não tem o menor fundamento”.

Desde que entrei mais ativamente na arena dos combates jornalísticos, em 1995, quase 100% das objeções que tenho encontrado assumem a forma desse argumento: “Eu não sei do que você está falando, logo você está errado”.

Em lógica, isso se chama argumentum ad ignorantiam: deduzir, do próprio desconhecimento de uma coisa, a inexistência da coisa. É uma das formas elementares de sofisma, e o que me espanta é que ela tenha adquirido, para a mentalidade dos brasileiros falantes, tanta autoridade e tanta credibilidade.

A premissa dessa atitude mental é, evidentemente, a mais insustentável que se pode imaginar: “Eu sei tudo (logo, o que eu desconheço não existe)”. O sujeito que raciocina nessa base tem um dogmatismo pueril e autoconfiante que chega a ser comovente em sua total candura. É verdade que, no uso diário, o sofisma aparece disfarçado sob a forma de um “entimema”, isto é, de um silogismo com premissa oculta: o sujeito faz uma elipse mental, saltando direto do sentimento de surpresa para a negação peremptória da novidade repulsiva, sem se dar conta do pressuposto lógico que embasa sua conclusão. Ele não é, pois, conscientemente dogmático. Mas, em vez de atenuar a gravidade do erro, isso só põe em relevo uma prodigiosa inconsciência. Como um homem pode proclamar uma conclusão com tanta segurança sem nem perceber a premissa imediata que a fundamenta? Também é verdade que meus objetores pertencem em geral a um mesmo grupo social, pelo qual não se poderia avaliar a inteligência dos demais brasileiros: o grupo dos intelectuais esquerdistas e das pessoas afetadas, de algum modo, pela linguagem deles. Não me surpreende que esse grupo reúna o grosso do contingente de cretinos e incapazes, pois as formas direitistas de cretinice saíram da moda e refluíram para o circuito fechado dos grupelhos pseudo-esotéricos que vivem de uma inofensiva auto-adoração.

Após estudar o assunto por três décadas e meia, já cheguei à conclusão de que o esquerdismo não é nem sequer uma ideologia: é apenas uma forma de inconsciência patológica, um escotoma intelectual (e moral) adquirido por vício e covardia. A experiência já me mostrou que, em circunstâncias normais, é utópico esperar de um militante esquerdista qualquer exercício da inteligência além do estritamente necessário para manter aquecidos os sentimentos grupais que o unem a seus pares numa espécie de fusão mística. Na verdade, isso é mais que uma observação pessoal: é uma conclusão científica do psiquiatra Joseph Gabel em Ideologies and the corruption of thought (London, Transaction Publishers, 1997), em que ele completa as investigações que começou em 1962 (que creio já ter mencionado nesses artigos) sobre a identidade de estrutura lógica entre o discurso socialista (e nacional-socialista) e o delírio esquizofrênico.

Mas o que é espantoso, sim, é a velocidade com que as pessoas adquirem essa patologia mediante nada mais que uma exposição breve e superficial ao linguajar esquerdista. Aos 14, aos 13 anos, um estudante brasileiro já está preso, paralisado, petrificado na crença de que qualquer fato novo que pareça contrariar seu sentimento de estar do lado dos bons contra os maus deve ser negado no ato, sem a mínima averiguação. Ou na melhor das hipóteses neutralizado mediante alguma combinação verbal de improviso que lhe dê uma interpretação totalmente diversa. Essa gente está espiritualmente morta, intelectualmente castrada já no ingresso da adolescência. São meninos tacanhos, prematuramente endurecidos, lacrados no fundo de um poço seco, em cuja escuridão crêem enxergar, por projeção inversa, a imagem de um futuro radiante.

Guerras santas

Olavo de Carvalho

Bravo!, novembro de 2000

Grande parte das culturas antigas concedia aos chefes, aos guerreiros e poderosos o direito de livrar-se, quando bem entendessem, dos fracos indesejáveis. Crianças, velhos e doentes podiam ser mortos por simples capricho de homens jovens e saudáveis que não queriam trabalhar para sustentá-los. Isso foi assim durante milênios. Foi assim no Egito, na Babilônia, no Império Romano, na China, na Arábia pré-islâmica. Foi assim entre os celtas, germanos, vikings, africanos, maias, aztecas e índios brasileiros. Foi assim quase por toda parte. O número de inocentes enterrados vivos, queimados, entregues às feras ou despedaçados em rituais sangrentos em nome dessa lei bárbara é incalculável.

É toda uma humanidade que foi eliminada do caminho dos fortes, ambiciosos e triunfantes senhores de antigamente.

O morticínio permanente só foi interrompido graças à ação de duas forças que emergiram bem tarde no cenário da História: o cristianismo, no Ocidente, o islamismo no Oriente. Antes delas, o judaísmo já conhecia a incondicionalidade do “Não matarás”. Mas o judaísmo não é uma religião proselitista: os judeus, nação minoritária, limitaram-se a praticar entre si um modo de vida mais elevado e mais humano, sem poder ou pretender ensiná-lo aos povos em torno. (O budismo e o hinduismo também tiveram acesso a verdades similares, mas seu caso é especial e deixarei para analisá-lo noutra oportunidade.) Essencialmente, foi graças à moral cristã e à lei muçulmana que o universal direito à vida, revelado inicialmente aos judeus, se tornou patrimônio de todos os homens.

Não houve, ao longo da história, fato mais decisivo. Pois ele não importou somente numa extensão quantitativa. Ao transferir-se para classes de pessoas que antes não o desfrutavam, ou que o desfrutavam somente como concessão de outras pessoas, o direito à vida sofreu radical mutação qualitativa: passou de relativo a absoluto, de condicionado a incondicionado e condicionante. Tornou-se o primeiro de todos os direitos, do qual todos os demais decorrem.

Conceder ao ser humano um direito qualquer, de propriedade ou herança, por exemplo, negando-lhe ao mesmo tempo o direito de existir, é, de fato, apenas uma piada demoníaca. Mas essa piada foi o “script” verdadeiro das vidas de milhões de seres humanos.

Hoje em dia qualquer criança compreende que a prioridade do direito à vida é algo simplesmente lógico, que flui da natureza das coisas. Apóstolos dos “direitos humanos” tomam-no como uma obviedade elementar, como o pressuposto indiscutido e indiscutível dos seus discursos.

Mas poucos se lembram de que o reconhecimento dessa obviedade natural não foi natural nem óbvio. Para disseminá-lo, foi necessário vencer as resistências prodigiosamente obstinadas das culturas antigas. Monges, pregadores, santos foram trucidados por toda parte aonde levassem essa mensagem, tão evidente em si mesma quanto hostil a toda organização social fundada na precedência de outros direitos: direitos de sangue, direitos territoriais, direitos de casta. Para muitas culturas, ceder nesse ponto era abdicar de instituições, leis, privilégios milenares. Era autodestruir-se, era dissolver-se na unidade maior da cultura recém-chegada, portadora da nova lei. Muitos povos souberam adaptar-se à transição sem grandes perdas, tornando-se eles próprios porta-vozes da melhor notícia que a humanidade já havia recebido. Outros obstinaram-se na defesa de direitos imaginários. Por isso foi necessário destruir suas culturas.

A cada guerra empreendida pelos exércitos cristãos e islâmicos contra as nações que rejeitavam sua lei, foram garantidas, à custa da morte de uns milhares de soldados, as vidas de milhões de seus descendentes. A extensão dessa obra salvadora é imensurável. Jamais um bem tão fundamental foi legado a tantas gerações de seres humanos.

Por isso essas guerras foram santas. Por isso foi santa a vontade de domínio que fortaleceu mais os portadores do novo direito universal do que os defensores de costumes locais. Dos descendentes dos povos derrotados, que hoje, movidos por um saudosismo artificial e fingido, se prevalecem dos direitos recebidos dos vencedores para fazer a apologia das culturas derrotadas e condenar sua destruição como um crime inominável, a maioria, se os vencidos tivessem triunfado, simplesmente não existiria. Em algum ponto da história de suas famílias a continuidade da sua linha ancestral teria sido interrompida: sua bisavó teria sido sepultada viva, seu tetravô entregue às feras, o tetravô de seu tetravô estrangulado no berço ou largado no chão até morrer de fome — tudo sob as bênçãos de reis, hierofantes e tradições veneráveis.

Em cada grupo de índios que aparecem gritando contra a destruição de sua cultura ancestral, uma coisa é certa: se ela não tivesse sido destruída, muitos deles não teriam vivido para ver a luz do dia.

Eu próprio, descendente de celtas e germanos, com muita probabilidade não estaria aqui escrevendo, se algum monge cristão não tivesse detido no ar o braço do sacerdote bárbaro, erguido para o sacrifício de um meu antepassado.

Por isso, alegar os “direitos humanos” como argumento para condenar a destruição de culturas que viveram de ignorá-los e desprezá-los é não apenas um contra-senso lógico, mas uma mentira existencial. Se os direitos do ser humano são primeiros e incondicionais, os direitos das culturas têm de ser, necessariamente, secundários e relativos. Para que os homens sejam iguais em direitos, é preciso que entre as culturas prevaleça não a igualdade, e sim a hierarquia que coloca no lugar mais alto aquelas que reconhecem a igualdade dos homens, a começar pela incondicionalidade do direito à vida. Entre a igualdade dos homens e a igualdade das culturas há uma incompatibilidade radical, que somente pode ser ignorada por uma ideologia autocontraditória, esquizofrênica e perversa.

Não obstante, é essa ideologia que prevalece hoje no ensino e nos meios de comunicação, induzindo crianças e jovens a revoltar-se, em nome do direito e da liberdade, contra as condições sem as quais esse direito e essa liberdade jamais teriam podido vir a existir.

Transmitir semelhante ideologia às novas gerações é cindir as inteligências em formação, cavando um abismo intransponível entre sua visão estereotipada do passado histórico e sua percepção da realidade presente. É destruir na base a possibilidade de toda consciência histórica, e, com ela, as condições de acesso à maturidade intelectual responsável.

É verdade que o discurso incriminatório contra as grandes culturas que humanizaram o planeta está na moda, que repeti-lo faz um professor brilhar ante a classe — ou ante as câmeras — como modelo de sujeito moderninho e de mente aberta. Mas até quando nós, pais, havemos de tolerar que a inteligência de nossas crianças seja sacrificada no altar das vaidades de professores que não sabem o que dizem?

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