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Duas Notas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 8 de janeiro de 2013

          

Thomas Sowell dizia: “Nunca entendi por que é ‘ganância’ você querer conservar o dinheiro que ganhou, mas não é ganância querer tomar o dinheiro dos outros.” Mutatis mutandis, a obrigação moral que os ricos têm de ajudar os pobres, mesmo quando seja tomada em sentido absoluto e intransigente, não implica jamais que os pobres tenham o “direito” de ser ajudados.

Todo direito de um implica obrigações para algum outro, mas nem toda obrigação que pese sobre alguém gera direitos para quem quer que seja.

A razão disso é simples e auto-evidente: toda e qualquer obrigação moral ou legal é relativa porque limitada à disponibilidade de meios, ao passo que um “direito”, uma vez consagrado, é universal e incondicional. Decretado que os pobres têm “direito” à ajuda estatal ou privada, a simples inexistência dos meios de ajudá-los se torna automaticamente algo como uma ilegalidade ou um crime, e a sociedade inteira, quanto mais pobre, tanto mais merecerá o rótulo de criminosa, de modo que a pobreza de uns será uma espécie de mérito e a de todos um delito abominável. Se isto está muito sintético, analisem e verão que é certo.

 Da incompreensão dessa obviedade deriva a noção monstruosamente perversa de que uma sociedade onde haja pobres, ou muitos pobres, é uma “sociedade injusta”. Em princípio, e à luz da razão, toda obrigação moral ou legal está condicionada à regra áurea do Direito: Ad impossibilia nemo tenetur, “ninguém é obrigado ao impossível”. Por isso mesmo a obrigação de ajudar os pobres não dá a estes nenhum direito de exigi-la. A absurdidade dessa exigência aparece nítida no delírio de Luís da Silva no romance Angústia de Graciliano Ramos:

“Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece-me que eles cresceram muito, e, aproximando-se de mim, não vão gemer peditórios: vão gritar, exigir, tomar-me qualquer coisa.”

E Luís da Silva não é nenhum burguês atemorizado ante a revolta dos infelizes. É ele mesmo um pobretão ressentido, sem dinheiro para o aluguel. Só no mundo das alucinações a pobreza é, por si, fonte de direitos.

Antigamente, até os marxistas compreendiam isso. Julgavam que o proletariado industrial tinha o direito de expropriar a burguesia não pelo simples fato de ser pobre, mas por ser o criador material da riqueza social. A horda de miseráveis improdutivos, o Lumpenproletariat, não lhes merecia senão desprezo. É o óbvio dos óbvios: ninguém se torna um “expoliado” pelo simples fato de estar sem dinheiro. Para ser um expoliado é preciso produzir primeiro alguma coisa e depois ser despojado dela injustamente. Como o proletariado se recusou a aderir às revoluções, os teóricos do marxismo promoveram a escória lumpenproletária ao estatuto de credora universal e portadora, ipso facto, da autoridade intrínseca das virtudes morais faltantes ao resto da sociedade. Daí ao endeusamento dos delinqüentes o passo é bem curto.

Da insensibilidade a esses fatos vem a noção de “dívida social”. Qualquer candidato que proponha a sua eleição como o pagamento de uma dívida social é, com toda a evidência, um charlatão do qual não se pode esperar nada de bom. Se a dívida existe e é social, não pode ser jamais resgatada mediante pagamento a um só indivíduo. O fato mesmo de que este se apresente como credor simbólico, herdeiro e resumo vivo de várias gerações de interesses lesados, já mostra que se trata de um vigarista, pois nem aceita pagamento simbólico nem tem como repassar o pagamento efetivo aos credores defuntos de cujo crédito se apropria indevidamente.

Todo eleitor em seu juízo perfeito deveria pensar nisso antes de votar em tipos como Luís Inácio Lula da Silva ou Barack Hussein Obama. Mas, tão logo a pobreza se torna fonte de “direitos”, é inevitável que o carreirista desprovido de méritos próprios se invista de prerrogativas imaginárias derivadas da pobreza alheia, impondo-se como recebedor único da “dívida social” — um vigarista elevado à segunda potência.

 

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            Se esbarrasse na rua com algum dos nossos políticos ditos “de direita”, eu lhe perguntaria o seguinte: “Você quer destruir a esquerda, destrui-la politicamente, socialmente, culturalmente, de modo que ela nunca mais se levante e que ser esquerdista se torne uma vergonha que ninguém ouse confessar em público?”

            Tenho a certeza de que a resposta do desgraçado será “Não”, e virá provavelmente acompanhada das usuais caretas de repugnância fingida com que os bons meninos da direita marcam sua distância de todo “extremismo”.

            Bem, o fato é que aquilo que a direita não quer fazer com a esquerda é o que a esquerda já fez com a direita.

            Afinal, só quem precisa ostentar moderação é quem se envergonha da sua própria opinião ao ponto de admitir, cabisbaixo e submisso, que ela só vale alguma coisa quando usada em doses moderadas. Em doses moderadas, filhinho, até a estricnina vale alguma coisa. Só o que é indiscutivelmente bom, como a inteligência, a beleza, a santidade ou a saúde, vale tanto mais quanto maior a dose. A esquerda conseguiu convencer até os direitistas de que nenhuma dose de esquerdismo é excessiva, tanto que o sr. Luis Inácio Lula, vendendo uma imagem de moderado, não se vexava de presidir o Foro de São Paulo de maozinhas dadas com um notório extremista, assassino e narcotraficante, o sr. Manuel Marulanda, nem muito menos se esquivou jamais de fazer parceria com o sr. Fidel Castro, que é o extremismo de esquerda encarnado.

            Já os homens “da direita” – digo “homens” cum grano salis – prefeririam antes morrer do que ser vistos ao lado de alguém que lhes pareça mais direitista que eles.

Aforismos para a decifração do Brasil

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 24 de agosto de 2003

O brasileiro é o povo mais burro e pretensioso das Américas, governado pelos políticos mais fingidos e inconseqüentes do Hemisfério Ocidental, instruído pelos pseudo-intelectuais mais ignorantes e tagarelas do universo. É por isso que aqui, mais que em qualquer outro lugar do mundo, o futuro a Deus pertence.

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No Brasil, a admissão preliminar de total desconhecimento de um assunto não é nunca o prelúdio a interrogações polidas, mas a julgamentos taxativos fortalecidos pelo completo desprezo ao interlocutor estudioso e pelo orgulho de poder opinar sem base, como se a ignorância fosse uma prova de inspiração divina.

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Noventa por cento dos eleitores que votaram em Lula não o fizeram senão por ódio aos estudos. Um semi-analfabeto empacotado num terno Armani não pode simbolizar os pobres, mas os ricos ignorantes. À confusão entre cultura e diploma corresponde, mutatis mutandis, a identificação de ignorância com pobreza.

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Sinto um impulso cada vez mais irresistível de abandonar de vez os assuntos de atualidade nacional. É que o Brasil já não pode ser descrito sem atentado ao pudor.

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Um país em que a margem de lucro da iniciativa privada é de 2 a 3 por cento e os impostos são de quase 50 por cento só tem, obviamente, um único problema a resolver: diminuir os impostos e aumentar os lucros, isto é, livrar-se o mais rápido possível dos socialistas e mergulhar de cabeça no capitalismo. Mas isso não vai acontecer, porque os socialistas têm mais dinheiro e já tomaram providências para que não restem na arena política senão dois tipos de pessoas: eles próprios e os mais socialistas.

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Um país em que 50 por cento das terras pertencem ao governo e não são usadas para absolutamente nada, enquanto milhões de sem-terra subsidiados pelo Estado invadem e queimam fazendas particulares produtivas, é evidentemente um país que escolheu sacrificar seus bens no altar da propriedade estatal inútil, e nada vai impedi-lo de continuar praticando essa religião bárbara até que a última vaca leiteira seja queimada pelo último sem-terra.

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Quando digo que o Brasil é hoje um país sem horizonte, um país condenado a sair da História, sempre aparece alguém me descrevendo as maravilhosas perspectivas de desenvolvimento econômico que nos são abertas por tais ou quais fatores internacionais. O simples fato de que alguém identifique um horizonte de futuro com meras possibilidades de desenvolvimento econômico já é sinal de ignorância letal. Na segunda metade do século XIX, o país europeu com melhores perspectivas de desenvolvimento econômico era a Rússia. O que lhe faltava não era isso: era uma elite intelectual que tivesse mais apego aos seus deveres do que a ambições revolucionárias. A economia é o setor mais volátil e superficial da História. Em poucos anos um país pode sair do atraso para o progresso econômico, e vice-versa. Mas uma cultura, uma atmosfera de consciência clara e de diálogo inteligente, leva séculos para se criar — e, uma vez perdida, é quase impossível recuperá-la. Se querem conhecer as perspectivas do Brasil, não olhem as estatísticas e o PNB, mas comparem os nossos políticos, a nossa classe intelectual dos anos 30 a 60 com os de hoje. Comparem Francisco Campos com Marcio Thomaz Bastos, Gustavo Capanema com Christovam Buarque, Graciliano Ramos e Manoel Bandeira com Marilene Felinto, Miguel Reale e Mário Ferreira dos Santos com Marilena Chauí, Carlos Lacerda e Oswaldo Aranha com Babá, Heloísa Helena e o dr. Enéas. Vejam o nosso presente e conhecerão o nosso futuro.

A imaginação esquerdista

Olavo de Carvalho

O Globo, 05 de julho de 2003

Neurose é uma mentira esquecida na qual você ainda acredita.
(J. A. C. Müller)

O crítico português Fernando Cristóvão é autor do melhor estudo que se escreveu sobre a arte narrativa de Graciliano Ramos. Ele agora nos dá, com “O Romance Político Brasileiro Contemporâneo” (Coimbra, Almedina, 2003), uma chave indispensável para elucidar o fenônemo do unanimismo socialista, que se apossou deste país justamente quando a falácia do socialismo já tinha se tornado coisa evidente para toda a humanidade alfabetizada.

Esse fenômeno revela uma tal alienação, um tal descompasso entre a consciência nacional e a realidade, que não é de estranhar venha antes do exterior que daqui mesmo a ajuda para compreendê-lo.

O que concluo um tanto livremente do estudo de Cristóvão é que, em proporções alarmantes, o romance brasileiro desde 1964 deixou de ser expressão da vida nacional para reduzir-se a depósito das lamúrias de um grupo político que, frustrado nas suas ambições de poder, se fechou num solipsismo carregado de rancor e autopiedade, passando a enxergar o drama de um país na escala miúda de seus padecimentos gremiais.

“A Hora dos Ruminantes”, de José J. Veiga, expôs em 1964 a visão medonha de uma sociedade integralmente subjugada, um totalitarismo maquinal que, àquela altura, se parecia menos com o autoritarismo ralo do marechal Castelo Branco do que com o Estado cubano, que a própria KGB considerava o mais perfeito engenho de controle político jamais concebido, e no qual, com auto-ironia involuntária, iam buscar abrigo e ajuda os descontentes com o novo regime. Poderosa alegoria do totalitarismo em geral, “A Hora dos Ruminantes” pouco refletia da realidade brasileira, mas tudo da imaginação esquerdista.

Com “Quarup” de Antônio Callado, de 1967, o romance tornava-se instrumento de intervenção no debate interno da esquerda em favor da luta armada. Mas a luta armada, como só seus entusiastas não previram, resultou no endurecimento da repressão e no descrédito da esquerda, em humilhante contraste com os sucessos econômicos do regime, cuja popularidade encerrava os intelectuais esquerdistas num isolamento ainda mais propício às alucinações.

Alucinatório já é o ambiente de “A Festa” de Ivan Ângelo, no qual o ressentimento político dos vencidos desanda em anarquia “carnavalista”, que teorias em moda vendiam como instrumento de “libertação”, mas que só serviu para fomentar a anomia geral, culminando no advento do império do narcotráfico que, este sim, oprime toda a sociedade e não apenas um grupo.

Em “Zero” de Inácio de Loyola Brandão (1976), a anomia infectava a ordem mesma da narrativa, requentando o experimentalismo vanguardista dos anos 20 para depreciar como reacionarismo opressivo a idéia de uma realidade inteligível, à qual o autor opunha o lema de “escrever com o baixo-ventre” — um baile funk literário que antecipava, aliás mui inteligivelmente, a funkização geral da sociedade.

Se a intelectualidade esquerdista fosse capaz de medir as conseqüências de suas palavras, seu arrependimento não teria fim. Mas ela é como um ladrão que não sente vergonha de roubar, apenas de deixar-se prender. A mentira básica da sua visão egocêntrica da sociedade brasileira jamais é posta em questão. Tudo o que se discute é o fracasso prático, a dificuldade de chegar ao poder. No fundo, o único pecado, segundo essa visão do mundo, é não ter poder.

Em “Bar Don Juan”, de 1971, Antônio Callado converte-se de apologista da guerrilha em carpideira do seu fracasso. Mas a autocrítica não vai ao fundo do problema: esgota-se em lamentações de erros estratégicos e táticos.

Autopiedade grupal confundida com tragédia nacional também não falta em “O Amor de Pedro por João” de Tabajara Ruas, no qual guerrilheiros exilados, escondidos numa embaixada em Santiago, acompanham pelo rádio o bombardeio do Palácio de La Moneda — o fim de sua última esperança de cubanização do continente.

Ao fracasso prático veio acrescentar-se a lenta e irreversível corrosão dos ideais. Nos anos 80, já ninguém podia acreditar que algum regime socialista no mundo fosse, substancialmente, mais humano que a nossa vacilante ditadura. Nem poderia pensar seriamente que a celebração da anarquia viesse a ter outro resultado senão a entrega do país à bandidagem — um resultado que, no fundo todos desejavam, pois coincidia com as especulações de Herbert Marcuse sobre o potencial revolucionário da marginalidade e do crime. Mas, num processo neurótico bem conhecido, quanto mais funda a obstinação no erro tanto mais histrionicamente enfáticos os pretextos verbais em que sua mentira originária se camufla, até à total substituição do senso da realidade por uma retórica de comício.

A vitória completa da estereotipagem vem com A Região Submersa, do mesmo Tabajara Ruas, no qual o general-presidente Humberto I (quanta sutileza!), morto em acidente de aviação, se revela por fim um robô comandado à distância pelos americanos. Falar em “literatura”, aí, já seria hiperbólico. O Brasil estava maduro para aplaudir a incultura como uma forma superior de sabedoria, ungida pelos profetas, consagrada pelas urnas e ornamentada de diplomas “honoris causa”.

Não é preciso dizer que processo análogo se observou no teatro, no cinema e na poesia.

A redução narcisística da visão da sociedade brasileira às discussões internas de um grupo, o apego da intelectualidade esquerdista aos seus mitos autobeatificantes, a recusa de um exame sério das conseqüências sociais de suas próprias ações, levaram à autodestruição da inteligência, sacrificada no altar de ambições políticas escoradas numa autoridade moral tanto mais declinante quanto mais pretensiosa.

Hoje o que resta da “cultura brasileira” é assunto de marqueteiros e cabos eleitorais. Os próprios intelectuais esquerdistas sentem-se talvez um pouco mal nesse ambiente, mas não reconhecem nele a criação sua que ele, indiscutivelmente, é. E por que haveriam de condená-lo, se ele foi a condição prévia para sua ascensão ao poder e a revanche — enfim! — sobre tantas humilhações?

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