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O mundo brasilianiza-se

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 01 de maio de 2008

Outro dia, como um cidadão da República Checa me explicasse que tudo por lá é bagunça, corrupção e sem-vergonhice, mostrei-lhe duas fotos: na primeira o nosso ministro da Cultura beijava na boca o cantor Lulu Santos, na segunda a esposa do mesmo ministro se esfregava no governador da Bahia e respectiva primeira-dama – tudo isso em público, e subsidiado pelo dinheiro do contribuinte.

Meu interlocutor arregalou os olhos e deu-se por vencido:

— Lá em Praga não tem disso não.

Mais uma vez a Europa se curvava ante o Brasil. Não satisfeito com a humilhação do concorrente, expliquei-lhe o Mensalão, o assassinato de Celso Daniel, o financiamento estatal da destruição de fazendas, os quilombolas, as repúblicas indígenas emergentes, os cinqüenta mil homicídios anuais, o analfabetismo universitário, o Dicionário Crítico do Pensamento da Direita , a pedagogia do prof. Carlão, os progressos do narcotráfico, o pacto PT-Farc assinado no Foro de São Paulo, a fortuna do Lulinha e, para completar, os 69 por cento de aprovação de tudo isso.

O homem baixou a cabeça e reconheceu que a República Checa é uma filial da Ordem Franciscana.

— Afinal, a corrupção por lá vem toda de fora, dos russos.

— A nossa, não. É nacional legítima.

Sim, meus amigos, essa é a verdade. Não se deixem enganar por sinonímias ilusórias. Termos como “corrupção”, “decadência”, “esculhambação”, têm equivalentes em todas as línguas. Mas nomes de fatos e qualidades não vêm acompanhados dos respectivos índices quantitativos. O que singulariza a desordem brasileira não se expressa em palavras, mas em números. É a dimensão, o tamanho descomunal, inalcançável à imaginação da platéia estrangeira, cujo cérebro automaticamente rejeita a estranheza insuportável, reduzindo o fenômeno às proporções daquilo que conhece e achando que na sua terra tudo se passa como em Brasília e Catolé do Rocha.

Só a exposição detalhada permite captar a diferença. E aí não há como escapar à conclusão: somos insuperáveis. Embora sob um aspecto ou outro possamos levar desvantagem, no conjunto a depravação nacional é um fenômeno inédito, incatalogável, sem similares na história do mundo. Nenhuma nação jamais consentiu em tolerar o intolerável com aquele misto de indiferença búdica, amoralismo cínico e auto-satisfação masoquista que o Brasil chama de “normalidade institucional”.

Mas algo me diz que nossos dias de glória estão contados. Aqui e ali, aos poucos, vão despontando indícios de que certas condutas, antes julgadas inaceitáveis fora das nossas fronteiras, vão conquistando espaço nas sociedades ditas avançadas, aí encontrando a mesma receptividade cúmplice que tanto as fez prosperar no Brasil.

Na sua breve carreira de pré-candidato, o sr. Barack Obama já contou, comprovadamente, mais de sessenta mentiras só sobre a sua biografia (excluídas as mentiras políticas). Ele mente sobre suas origens, sobre sua família, sobre sua educação, sobre seus amigos, sobre o pastor da sua igreja. Nenhum político faz isso. Todos são verazes nas miudezas para poder falsificar melhor o conjunto. Obama mente no atacado e no varejo, no todo e nos detalhes, até em detalhes óbvios que não levam meia hora para ser desmentidos. Chamá-lo de mentiroso seria eufemismo. Ele é uma farsa total, uma palhaçada completa. É um intrujão desprezível que em situações normais alcançaria sucesso, no máximo, como locutor de rádio interiorana. Sua simples candidatura – para não falar da possibilidade da sua eleição – mostra que a capacidade de julgamento do eleitorado americano desceu abaixo do nível do ridículo: está beirando o tragicômico. Quanto mais se comprova que o sujeito é postiço, mais devotos se tornam os seus seguidores. Cada vez que ele é desmascarado, mais o aplaudem. Já vão para oitenta por cento os democratas que juram votar nele. É um efeito que, até algum tempo atrás, só se observava num único país do mundo. O bom e velho país dos otários que, para não dar o braço a torcer, fingem admirar o malandro que os engana.

Denunciar em vão

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial),12 de julho de 2007

Muitos antipetistas se admiram, se espantam e se indignam ante o fato repetidamente comprovado de que as denúncias de corrupção, por mais que se avolumem, mal chegam a abalar a estabilidade do governo ou a arranhar a reputação do presidente.

Se tivessem lido meus artigos de dois, de três, de quatro anos atrás não veriam nesse fenômeno o menor motivo de estranheza.

Há tempos venho explicando – para ouvidos moucos, aparentemente — que denúncias de corrupção, por si mesmas e isoladas assepticamente de todo combate ideológico, nada podem nem poderão jamais contra Lula, contra o PT ou contra qualquer organização de esquerda.

O motivo é simples.

Toda acusação de ordem ética ou legal ressoa na alma popular conforme a escala de valores reinante na sociedade. Essa escala determina a interpretação que o público há de fazer dos fatos revelados, a reação emocional que se seguirá e, portanto, a direção das conseqüências políticas possíveis.

A escala de valores é função da cultura, isto é, dos sistemas simbólicos imperantes, condensados no imaginário popular, nas comunicações de massa e na linguagem dos debates públicos.

Ora, a esquerda nacional, com o PT à frente, não só criou e desencadeou o ciclo de “combate à corrupção” iniciado no começo dos anos 90, mas teve o cuidado de preparar o ambiente cultural para isso, de tal modo que os valores de moralidade, integridade e transparência fossem associados a símbolos e emoções francamente anticapitalistas, posando sempre o Estado intervencionista como o herói justiceiro e os interesses privados como a raiz de todos os males. Foi um trabalho de muitas décadas, cujos frutos começaram então a ser colhidos – e não pararam de ser colhidos até hoje.

O resultado final, transcorrida uma década e meia, é que hoje é impossível voltar contra o establishment esquerdista uma corrente de ódio anticorrupção do qual ele próprio tem todo o controle psico-social e ideológico.

Crimes praticados por petistas, por mais numerosos e revoltantes que sejam, jamais comprometem o poder do partido, pois nunca aparecem como frutos da estratégia esquerdista de dominação, e sim como “traições” a um fundo ideológico que permanece intacto e puro na imaginação popular. Cada petista que delinqüe aparece como um renegado que “passou para a direita”.

A esquerda fez das denúncias de corrupção uma arma ideológica. Quanto mais denúncias se acumulem, mesmo contra a própria esquerda, mais sai reforçada a ideologia dominante.

Só há um meio de fazer com que a massa asquerosa dos crimes petistas se volte contra seus verdadeiros autores: é inverter o signo das denúncias, exibindo os delitos como partes integrantes da estratégia revolucionária esquerdista, que é o que de fato são.

Mas para isso é preciso haver uma direita disposta a travar a guerra ideológica em vez de padecer atônita os seus efeitos sem nem saber de onde vieram. E a direita que existe, por incultura, covardia e falsa esperteza, tem preferido apegar-se às puras denúncias de corrupção justamente para não ter de arcar com a responsabilidade de uma guerra ideológica.

Acordo secreto

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio (editorial) , 29 de outubro de 2006

Da nossa geração não se pode dizer que viveu, mas que rastejou em silêncio: os jovens rumo à decrepitude, os velhos rumo a sepulturas sem honra.

(Tácito, historiador romano, c. 56 – c. 117 a. D.).

O ponto alto do debate de sexta-feira foi a declaração de Lula de que nenhum governo anterior investigou tão a fundo ou esteve tão bem informado sobre os crimes de corrupção quanto o seu. Não é mesmo maravilhoso que o mais avisado dos presidentes nada saiba dos crimes cometidos por cinco de seus próprios ministros? Não é uma delícia que o governo que enxerga tudo da delinqüência espalhada no país inteiro ignore o que se passa no Palácio do Planalto?

Mas não pensem que a inconsistência do seu próprio discurso seja motivo de preocupação para Lula. Estontear a platéia com um bombardeio de afirmações contraditórias tem sido há anos a técnica essencial da propaganda lulista. Na eleição de 2002, explorou-se até o limite da alucinação o paradoxo de um personagem que merecia ao mesmo tempo a compaixão devida aos iletrados e a reverência devida a um sábio, conhecedor profundo dos problemas brasileiros, doutor honoris causa e candidato virtual à Academia Brasileira de Letras. Agora, ele é simultaneamente o homem da visão de raios-x, a quem nenhum delito escapa, e o pobre ingênuo ludibriado por seus mais próximos amigos e colaboradores.

Mais ingênuo ainda, porém, é quem vê nisso uma prova de confusão mental e incompetência petista. Que incompetência mais estranha, essa que sempre vence a competência alheia! Na verdade, é impossível acreditar que, com tantos cientistas sociais, psicólogos, estrategistas e engenheiros comportamentais a serviço do PT e do Foro de São Paulo, ninguém ali tenha ensinado aos chefes da campanha petista as virtudes estupefacientes da estimulação contraditória e da dissonância cognitiva. Mas nem isso seria preciso: qualquer militante, minimamente treinado na dialética de Hegel e Marx para raciocinar segundo duas linhas de dedução opostas e explorar o duplo sentido das palavras e situações, está habilitado para fazer de trouxa os mais espertos empresários, políticos tradicionais e oficiais das Forças Armadas, viciados numa semântica literaralista e num raciocínio desesperadoramente linear.

Outro detalhe especialmente suculento do debate foi Alckmin enfatizar que os membros do PCC não são do seu partido, como quem diz que são do outro. Com isso ele mostrou saber da ligação íntima entre PT e PCC. Mas, se sabia, por que se calou? E, se preferiu calar, por que não o fez por completo? Por que deixou escapar uma alusão velada que pelo menos os telespectadores informados entenderam perfeitamente bem? O discurso de Alckmin está obviamente travado por algum controle oculto, a que ele, sem apreciá-lo, se curva por necessidade ou oportunismo.

Mas não é preciso sondar conspirações para explicar isso. Tanto o PT quanto o PSDB – e a quase totalidade das carreiras políticas nos outros partidos – nasceram da resistência à ditadura militar, quando a cumplicidade implícita da oposição moderada com a esquerda terrorista era condição indispensável à sobrevivência de ambas. Removido o inimigo comum, perseverou a obediência ao pacto de lealdade: a disputa é legítima, mas denunciar a trama revolucionária da esquerda radical é “fazer o jogo da direita”. Por mais que a esquerda assanhada os rotule de direitistas – e é um alívio para ela tê-los como extremo limite do direitismo admissível –, os tucanos e tutti quanti ainda são, no seu próprio entender, herdeiros morais da tradição esquerdista, de vinte anos de luta que culminaram na lei de anistia e nas “Diretas Já”. A nação inteira está sendo enganada por esse acordo secreto entre irmãos inimigos. Tucanos e similares podem acusar a petezada de crimes menores, mas denunciar a criminalidade pesada, o narcotráfico, os seqüestros, os homicídios, seria trair a causa comum, o objetivo mútuo de varrer a direita do mapa mediante a total ocupação do espaço pelas disputas internas entre a esquerda e a direita da esquerda.

Pode ter havido um acordo explícito nesse sentido, e informações recentes sugerem que houve. Mas nem era preciso: o ódio comum ao fantasma da “direita”, somado à origem uspiana comum das duas esquerdas, é suficiente para persuadir a ala moderada das vantagens de uma luta fingida, travada sobre um fundo de cumplicidade tácita com a ala revolucionária, terrorista, seqüestradora e narcotraficante. Sem contar, é claro, o fato de que muitos dos moderados do tempo da ditadura não o eram senão em aparência, já que pertenciam às mesmas organizações dos terroristas, apenas desempenhando nelas as funções de camuflagem legal, de acordo com a técnica da duplicidade de vias que é uma constante da estratégia comunista desde Lênin.

A geração inteira dos políticos que fizeram carreira na “luta contra a ditadura”, em suma, está comprometida a ocultar e proteger a violência da esquerda radical. Pode-se combater a “corrupção”, usando a mesma linguagem com que se denunciaria a “direita” se no poder ela estivesse. “Colarinho branco”, afinal, é expressão que tem óbvias ressonâncias de luta de classes. Serve para ser usada pelas duas alas. Mas seqüestros, homicídios e narcotráfico são sacrossantos: são as armas da revolução. Denunciá-los seria traição à causa comum de todas as esquerdas. Por isso o pacto de silêncio domina não só a política partidária, mas a grande mídia inteira, dirigida por gente da mesma geração e da mesma extração ideológica de tucanos e petistas. Alckmin pode odiar esse pacto, mas sabe que violá-lo às escâncaras seria condenar-se ao ostracismo definitivo entre os “filhotes da ditadura”. Ele pode sussurrar insinuações entre dentes, mas jamais revelará em voz alta o segredo tenebroso em que assenta, há vinte anos, toda a política nacional.

A conjunção dos dois fatores aqui assinalados – o uso maciço da estimulação contraditória e o pacto geracional de silêncio em torno dos crimes maiores da esquerda – basta para explicar toda a decadência moral e intelectual do Brasil ao longo de duas décadas. A geração de políticos, jornalistas e intelectuais que hoje está por volta dos sessenta anos – a minha geração – é a mais perversa e criminosa de todas quantas já nasceram neste país. Ela é culpada da idiotização e dessensibilização moral do país, origem de todos os crimes que hoje culminam na matança anual de cinqüenta mil brasileiros. Comparados a essa geração, os mais bárbaros torturadores do Dói-Codi eram apenas aprendizes na escola da delinqüência.

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