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O leão e os ossos

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 19 de novembro de 2000

O desconforto de ser um escritor anticomunista no Brasil de hoje é ter de enfrentar, praticamente sozinho, uma multidão de adversários. Não que isso me coloque em desvantagem intelectual, pois os QIs de todos eles, somados, não chegam a uma cifra muito impressionante. Mas não posso competir com eles em tagarelice, muito menos em espaço na mídia. Um de meus artigos recentes em “Zero Hora”, mostrando as ligações perigosas entre esquerda oficial e esquerda clandestina, suscitou nos altos escalões petistas a convocação imediata de uma dúzia de disciplinados escribas para que me respondessem fingindo variedade de enfoques e tons, desde a serenidade posada até a hidrofobia explícita, de modo a dar a impressão de que quem se erguia contra mim era a vontade geral e não apenas um partido. Coordenar astutamente uma multiplicidade de porta-vozes sem ligação aparente é um clássico truque comunista para criar um arremedo de opinião pública. É velho, mas, no Brasil, ainda funciona.

Um “Leitmotiv” que periodicamente reaparece na ópera comunista é aquele que se inspira na regra de Sun-Tzu: “Quando forte, mostre-se fraco.” Quando a política comunista está empenhada em ações de grande envergadura e de longo prazo, a tônica geral da sua propaganda é acalmar temores e desviar atenções. Então o comunismo é mostrado como um movimento em plena descaracterização, desprovido de sua antiga virulência, aberto ao diálogo e em vias de deixar-se absorver em algum tipo de progressismo capitalista. O primeiro que usou esse truque foi Lênin, em 1921; depois Stalin em 1943 e Kruschev em 1956, sempre com sucesso (v. meu artigo de 11 de novembro em “O Globo”, reproduzido na minha homepage http://www.olavodecarvalho.org).  Típica peça de desinformação, o artigo de Gaudêncio Torquato, “A esquerda pragmática” (ZH, 23 out. 2000), segue nitidamente essa fórmula, em consonância com a presente etapa da luta revolucionária, na qual o PT, tendo obtido bons resultados nas eleições, precisa ganhar tempo para articular a próxima virada. O tom geral, portanto, é o famoso “Senta, que o leão é manso”. Daqui a uns anos, os ossos de quem atenda ao apelo servirão de troféus para celebrar as glórias do maquiavelismo revolucionário.  Os exemplos da eficácia do diversionismo não aparecem só no plano internacional. No Brasil, a propalada “ruptura” entre Prestes e Marighela, em meados dos anos 60, foi uma simples divisão de trabalho, na qual a facção minoritária armada, sem a menor chance de vitória, foi usada pela corrente comunista tradicional como boi de piranha, desviando as atenções do governo para as ações espetaculares e militarmente inócuas dos guerrilheiros, enquanto a maioria, unida e disciplinada, introduzia discretamente no Brasil a estratégia gramsciana da “revolução cultural” e da “grande marcha para dentro do aparelho de Estado”.

Por sua vez, o êxito dessa estratégia é hoje bem disfarçado, na imprensa, por novas campanhas de diversionismo que, por meio de “companheiros de viagem” bem incrustados na mídia dita conservadora, embalam em doces sonhos o “wishfunthinking” liberal mediante as duas cantigas básicas da desinformação comunista: a hostilidade entre as facções da esquerda e a dissolução do esquerdismo revolucionário num progressismo inofensivo. Enquanto isso, bem protegidos sob sua capa de ex-subversivos e neodemocratas, os comunistas treinam guerrilheiros, doutrinam assassinos nas prisões, invadem prédios públicos, subjugam o governo às suas exigências mais arrogantes, intensificam sua colaboração com traficantes colombianos e impõem a todas as crianças do Brasil o aprendizado do ódio de classes.

Mas Torquato, após esfumar analgesicamente os contornos ideológicos da revolução em marcha, deixa bem nítida a sua opção pessoal quando, na segunda metade do artigo, passa a impingir ao público a crença de que, dissolvida a antiga disputa esquerda-direita, o confronto que a substituiu no cenário político é agora a luta dos bons contra os maus, dos honestos contra os desonestos, dos mocinhos contra os bandidos. E adivinhem quem são os mocinhos.

O artigo é um primor de “agitprop”, que, sem abandonar o tom de objetividade fingida, e com ambigüidades de estilo que chegariam a ser admiráveis se a sinceridade não fosse virtude literária maior que a destreza, passa da desinformação à propaganda direta quase imperceptivelmente, deixando no leitor um sentimento de que votar no PT não apenas é um ato desprovido de riscos, mas uma obrigação moral acima de qualquer partidarismo ideológico.

Se Gaudêncio Torquato já não fosse titular de uma faculdade estatal paulista de jornalismo, que se notabilizou tanto pela incapacidade de ensinar seus alunos a escrever quanto pelo talento de transformá-los em militantes petistas, eu recomendaria que essa instituição o contratasse.

Astúcias Indígenas

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 31 de agosto de 2000

Os índios que anarquizaram os festejos de 500 anos de Brasil e foram reprimidos pela polícia estão exigindo uma indenização bilionária. Um dos pretextos é: “danos culturais”. Mas quanto o Estado deveria cobrar deles pelo dano que, a serviço de potências estrangeiras, infligem à cultura nacional ao negar publicamente a legitimidade da existência do Brasil enquanto nação? Sim, quando proclamam que o território é deles, que todos os que viemos nas caravelas ou nas levas de imigrantes somos intrusos e usurpadores, o que reivindicam é a reintegração de posse do maior latifúndio que já existiu na face da Terra, e a conseqüente dissolução do Estado indevidamente instalado na sua propriedade por um bando de posseiros, arrivistas e criminosos.
Um Estado que aceita discutir nesses termos não precisa nem mesmo ser destruído: ele já acabou. Pois o protesto dos índios não se voltou contra o governo, contra o regime, contra esta ou aquela lei: voltou-se, com toda a força de uma irracionalidade fingida, contra a civilização brasileira no todo – excetuado o elemento indígena – e portanto contra a existência do organismo estatal que é a cristalização jurídica e política da sua obra de cinco séculos. Que o façam de maneira acentuadamente paradoxal, abrigando-se à sombra das leis de um Estado soberano para negar a soberania do mesmo Estado, é um curto-circuito lógico que poderia ser atribuído à ingenuidade pretensiosa de povos ainda mal despertos para as realidades complexas da civilização moderna, se não fosse antes um nonsense planejado, obra da astúcia dos estrategistas europeus e norte-americanos que os orientam, todos eles bem treinados na técnica de suscitar crises pela estimulação contraditória da opinião pública, na arte de desarmar a reação de um povo pelo choque dos sofismas paralisantes. Criar “movimentos sociais” no Terceiro Mundo é hoje uma profissão especializada, ensinada a alunos europeus e norte-americanos em cursos de alto nível nos organismos internacionais. Nenhuma, absolutamente nenhuma reivindicação ou agitação se elevou neste país nos últimos vinte anos sem ser planejada por engenheiros sociais estrangeiros, subdiada por fundações e governos estrangeiros, respaldada pela mídia estrangeira e enquadrada meticulosamente numa estratégia global em que os interesses dos reclamantes entram apenas como gatilhos para desencadear transformações que vão muito além do que esses enfezados marionetes possam imaginar.
Cada um desses movimentos é pura chantagem, calculada para desferir um golpe mortal na soberania do Estado brasileiro. É mais um passo na marcha incessante e brutal de centralização, onde um poder maior, com pretensões ao monopólio, dissolve os poderes intermediários com a ajuda dos grupos menores, descontentes com a situação local.

Já escrevi, outrora, em defesa das culturas indígenas. Mas, hoje, discutir a justiça ou injustiça da causa indígena em abstrato e fora do contexto político mundial é cair num engodo lógico, num jogo de diversionismo hipnótico. Ninguém que queira justiça começa por negar a autoridade do próprio tribunal ao qual recorre. O que os índios e seus mentores estão exigindo não é justiça: é a destruição do tribunal.
A manifestação ocorrida nos festejos tem as marcas inconfundíveis de uma operação planejada por cientistas comportamentais para gerar artificialmente um constrangimento sem saída: permiti-la seria dar caráter oficial à negação da legitimidade do Estado brasileiro; reprimi-la é expor-se a humilhações na mídia internacional e a chicanas jurídicas como esse grotesco pedido de indenização.
Os índios, um dia, foram povos indefesos, que só sobreviveram à derrota graças à generosidade do vencedor, generosidade que eles próprios jamais tiveram para com as tribos que guerreavam. Hoje, eles são uma arma temível nas mãos das potências que regem o mundo, e aproveitam-se dessa situação para tirar vantagens abusivas e destruir o Estado que os acolheu e lhes deu direitos especiais. A malícia de sua estratégia revela que já não têm mais nada do pretenso caráter “primitivo” que um dia justificou a promulgação desses direitos: alcançaram a maioridade, tornaram-se um grupo político moderno, astucioso e perigoso, aliado de interesses imperialistas e inimigo jurado da nação brasileira.

Geração perdida

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, São Paulo, 3 de agosto de 2000

Hyppolite Taine conta que, aos 21 anos, vendo-se eleitor, percebeu que nada sabia do que era bom ou mau para a França nem das ideologias em disputa na eleição. Absteve-se de votar e começou a estudar o país. Décadas depois, vieram à luz os cinco volumes das Origines de la France Contemporaine (1875), um monumento da ciência histórica e um dos livros mais esclarecedores de todos os tempos. O jovem Taine não votou, mas o Taine maduro ajudou muitas gerações, na França e fora dela, a votar com mais seriedade e conhecimento de causa, sem deixar-se iludir pelas falsas alternativas da propaganda imediata. Saber primeiro para julgar depois é o dever número um do homem responsável – dever que o voto obrigatório, sob a escusa de ensinar, força a desaprender.

Taine foi muito lido no Brasil, e seu exemplo deu alguns frutos. Entre os que tiveram seu caminho de vida decidido pela influência dele contou-se o jovem Affonso Henriques de Lima Barreto. Ele aprendeu com Taine que as coisas podem não ser o que parecem. Como romancista, ele fixou a imagem da ambigüidade constitutiva das atitudes humanas no duelo de personalidades do major Quaresma com Floriano Peixoto, onde o passadista se revela um profeta e o progressista um ditador tacanho e cego. Mas a mensagem dessa história, ainda que consagrada pelo cinema, não se impregnou na mente das novas gerações. Talvez não venha a fazê-lo nunca, precisamente porque, amputada da ética taineana da prioridade do saber, que lhe serve de moldura, ela se reduz a uma observação casual que pode ser dissolvida numa enxurrada de lugares-comuns. Hoje, de fato, raramente se encontra um jovem que não queira, antes de tudo, “transformar o mundo”, e que, em função desse “parti pris”, não adie para as calendas gregas o dever de perguntar o que é o mundo.

Sim, no Brasil cultura e inteligência são coisas para depois da aposentadoria. Quando todas as decisões estiverem tomadas, quando a massa de seus efeitos tiver se adensado numa torrente irreversível e a existência entrar decisivamente na sua etapa final de declínio, aí o cidadão pensará em adquirir conhecimento – um conhecimento que, a essa altura, só poderá servir para lhe informar o que ele deveria ter feito e não fez. Antevendo as dores inúteis do arrependimento tardio, ele então fugirá instintivamente do confronto, abstendo-se de julgar sua vida à luz do que agora sabe.

Embalsamado num nicho de diletantismo estético, o conhecimento perderá toda a sua força iluminante e transfiguradora, reduzindo-se a um penduricalho inócuo, adorno inofensivo de uma velhice calhorda. Eis onde termina a vida daquele que, na juventude, em vez de esperar até compreender, cedeu à tentação lisonjeira do primeiro convite e se tornou um “participante”, um “transformador do mundo”.

Eu também caí nessa, mas tive a sorte de minha carreira de transformador do mundo ser detida, logo no início, por uma chuva de perplexidades paralisantes que me forçaram a largar tudo e a ir para casa pensar. Acossado de perguntas que ultrapassavam minha capacidade de resposta, fui privado, pelo bom Deus, da oportunidade de tentar moldar o mundo à imagem da minha própria idiotice.

Mas essa sorte é rara. O Brasil é o país do gênio prematuro, degradado em bobalhão senil logo na primeira curva da maturidade. Quando contemplo esse circo decrépito da revista Bundas, onde cômicos enferrujados se esforçam para repetir as “performances” de 30 anos atrás, que na sua imaginação esclerosada se petrificaram em emblemas estereotipados de “vida” e “juventude”; quando, lendo Caros Amigos, vejo homens de cabelos brancos se esfalfando para recuperar sua imagem idealizada de patota juvenil dos “Anos Dourados”, não posso deixar de notar que em todas essas pessoas que falam em nome do futuro o sentimento dominante é a saudade de si mesmas. Não falta a esses indivíduos a consciência de que suas vidas falharam. Mas atribuem a culpa aos outros, ao governo militar que impediu sua geração de “chegar ao poder”. No entanto, a desculpa é falsa, porque, mal ou bem, eles estão no poder. Eram jovens militantes, hoje são deputados, são catedráticos, são escritores de sucesso, são formadores de opinião. Por que, então, lambem com tanta nostalgia e ressentimento as feridas da sua juventude perdida? É porque ela foi perdida num sentido muito mais profundo e irremediável que o da mera derrota política. E agora é tarde para voltar atrás.

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