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João Ubaldo e o besteirol

Texto e comentário

  1. O besteirol dos 500 anos

JOÃO UBALDO RIBEIRO

O Estado de S. Paulo, domingo, 23 de abril de 2000

Levando-se em conta nossa pitoresca realidade contemporânea, até que a quantidade de besteiras ditas e escritas sobre o controvertido aniversário do Brasil não dá para surpreender. O que chateia um pouquinho é que diversas dessas besteiras continuarão a perseguir-nos pela vida afora, algumas talvez trazendo conseqüências indesejadas. A principal delas, naturalmente, é a de que o Brasil começou em 1500, quando nem mesmo no nome isso aconteceu, posto que éramos uma ilha quando os portugueses primeiro viram as terras daqui e, durante muito tempo, o Brasil que duvidosamente existia não tinha nada a ver com o Brasil de hoje.

A impressão que se tem é que, do povo às autoridades e mesmo aos entendidos, acha-se que o Brasil já estava no mapa, com as fronteiras e características atuais, no momento em que Cabral chegou. Teria tido até um nome nativo, já proposto, pelos mais exaltados, para substituir “Brasil”: Pindorama, designação supostamente dada pelos índios ao nosso país. Não sou historiador, mas também não sou tão burro assim para acreditar que os índios tinham qualquer noção geopolítica, ou alguma idéia de que pertenciam a um “país” chamado Pindorama. Não havia qualquer país, é claro, nem sequer a palavra Pindorama devia fazer sentido para os ocupantes que os portugueses encontraram aqui, se é que ela era usada mesmo. No máximo, significaria o único mundo conhecido deles. Parece assim que os nossos índios administravam impérios e cidades como os dos maias, astecas ou incas, quando na verdade, que perdura até hoje, viviam neoliticamente e a maioria esgotava os numerais em três – era o máximo que conseguiam contar e o resto se designava como “muito”.

Como corolário disso, vem a tese de que fomos invadidos. Com perdão da formulação pouco ortodoxa da pergunta, quem fomos invadidos? Todos nós, salvante os mais ou menos 400 mil índios que sobraram por aí, somos descendentes dos invasores, inclusive os negros, que não vieram por livre e espontânea vontade, mas também não viviam aqui na época de Cabral e hoje constituem parte indissolúvel de nossa, digamos assim, identidade. Imagino que haja quem pense que, diante de uma delegação portuguesa, algum diplomata ou general índio tenha argumentado que se tratava da ocupação ilegal de um Estado soberano do Oiapoque ao Chuí e que aquilo não estava certo, cabendo talvez a intervenção das Nações Unidas.

Se a História tivesse tomado rumos um pouquinho diferentes, nossa área hoje podia estar subdividida em vários países diferentes, uns falando português, outros espanhol, outros holandês, outros francês. Do Tratado de Tordesilhas às capitanias hereditárias, aos movimentos separatistas e à ação do barão do Rio Branco, muita coisa se passou para que nos tenhamos tornado o Brasil que somos hoje. Ninguém chegou aqui e descobriu o Brasil já pronto e acabado (se é que podemos falar assim mesmo agora), isto é uma perfeita maluquice. O Brasil, é mais do que óbvio, se construiu lentamente e às vezes aos trancos e barrancos.

Compreende-se que nativos de países como o Peru, o México e outros, notadamente na América Central, se sintam invadidos. Até hoje são numerosos e discriminados, muitos nem falam espanhol e, quando aportaram os conquistadores, tinham cidades maiores do que as européias. (3) Mas nós? Quem, com a notável exceção do amigo pataxó e da jovem senhora xavante que ora me lêem, foi aqui invadido? Vamos supor, já jogando no terreno da absoluta impossibilidade, que o chamado mundo civilizado ignorasse a existência destas terras até hoje. Teríamos aqui, não o Brasil, mas uns 4 milhões de nativos de beiço furado e pintados de urucu e jenipapo (nada contra, até porque furamos as orelhas, nos tatuamos e usamos batom, é uma questão de estilo), que não falavam as línguas uns dos outros, matavam-se entre si com alguma regularidade e cuja tecnologia não era propriamente da era informática. Brasil mesmo, nenhum.

Mas está ficando politicamente correto, suspeito eu que por motivos incorretíssimos, abraçar a tese da invasão do Brasil. “Nós fomos invadidos, fomos invadidos!”, grita em português brasileiro, a única língua que sabe, um manifestante mulato, em Porto Seguro. Será possível que não se perceba a vastidão dessa sandice? Daqui a pouco – e aí é que mora o perigo – entra na moda de vez e os resquícios das nações indígenas que ainda subsistem deverão aspirar à soberania sobre os territórios que ocupam. Como na Europa Oriental, cada etnia quererá ter seu Estado e sua autonomia, com bandeira, hino, moeda (dólar, para facilitar) e passaporte. Que beleza, forma-se-á por exemplo, depois de um plebiscito entre os índios, o Estado Ianomâmi, completamente independente e ocupando área bem maior do que muitos outros países do mundo juntos, reconhecido pelas organizações internacionais e protegido pelo grande paladino da liberdade dos povos, os Estados Unidos, que mandariam missionários e ajuda econômica e tecnológica e, dessa forma, investiriam desinteressadamente numa área tão pobre em recursos econômicos e que tão pouca cobiça desperta, como a Amazônia. E, se protestássemos, a Otan bombardearia o Viaduto do Chá, a ponte Rio-Niterói e o Elevador Lacerda, como advertência. Cometeram-se e cometem-se crimes inomináveis contra os índios, que devem ter seus direitos assegurados. Também se cometeram e cometem crimes contra grande parte dos brasileiros não-índios, outra vergonha que precisa ser abolida. Mas isso não tem nada a ver com a tal invasão, assim como a outra série de besteiras intensamente veiculada, segundo a qual, se não houvéssemos sido colonizados pelos portugueses, estaríamos em melhor situação, assim como estão em melhor situação a antiga Guiana Inglesa, o Suriname, a Indonésia, a Nigéria, a Somália, o Sudão e um rosário interminável de ex-colônias européias, quando na verdade se trata de um caso claro de o buraco achar-se bem mais embaixo. Como é que se diz “babaquice” em tupi-guarani?

  1. Comentários de Olavo de Carvalho

Não há nada a comemorar. O descobrimento foi uma violência, um estupro, um roubo que privou de seus direitos os autênticos brasileiros, habitantes e donos desta terra por usucapião desde milênios antes da chegada dos portugueses, que só trouxeram maldade e doenças a esses povos que aqui viviam em harmonia paradisíaca.”

Nenhuma frase foi mais repetida na comemoração dos 500 anos de Brasil. Martelada e remartelada dia e noite por intelectuais e políticos, índios e antropólogos, Tvs e rádios, jornais e cartazes, camisetas e livros de escola. Um massacre publicitário. É próprio desse tipo de propaganda atemorizar preventivamente os recalcitrantes, numa advertência tácita de que não se atrevam a contestar nem mesmo em pensamento a mensagem onipresente. E de fato ninguém se atreve: cada um teme ser olhado com hostilidade, excluído da comunidade dos bons cidadãos, acusado de racismo, de nazismo, de virtual assassino de índios e negros, um genocida, um inimigo da espécie humana, um verdadeiro Judas, responsável pelo Holocausto, pela crucificação de Cristo, pela extinção do mico-leão dourado, pelas taxas de juros e pela explosão de Chernobyl.

Nenhuma campanha de persuasão pública, ao longo de toda a nossa História, se compara a essa lavagem cerebral de proporções continentais. Nem para fazer a Guerra do Paraguai, para derrubar o Império, para abolir a escravatura, para enfrentar o Eixo nos campos da Itália ou para vencer quatro Copas do Mundo mobilizamos tanta energia propagandística quanto nesse esforço nacional para transformar 500 anos de história numa ocasião de vergonha, luto e penitência, para negar enfim a legitimidade moral da nossa existência enquanto nação.

Curiosamente, ouvi essa frase pela primeira vez aos dez ou onze anos, e não levei mais de cinco minutos para perceber que se tratava de um raciocínio esquizofrênico, de uma contradição de termos, de um joguinho lógico tipo Aquiles e a tartaruga. Mas, naquela época, ela era dita cum grano salis. Quem a pronunciava tinha a consciência de enunciar um gracejo para mexer com portugueses ou uma mentirinha piedosa para massagear o ego indígena.

Hoje todos a repetem a sério, com ares de quem ensina uma verdade científica ou uma doutrina moral da mais alta dignidade. A reação espontânea de um cérebro sadio, de perceber no ato a incongruência, é sufocada como tentação abominável, e logo termina por desaparecer das consciências. A absurdidade consagra-se como um lugar-comum, incorpora-se à linguagem corrente como a tradução universalmente aceita de uma verdade evidente de per si.

Quando a mente de uma criatura chega a esse grau de paralisia, de estupidez, de letargia abjeta, já não há mais nada a conversar com ela. Assim é hoje o homem brasileiro. João Ubaldo Ribeiro está de parabéns por ser, dentre as vozes oficiais das classes falantes, a primeira que vence o natural desânimo e se dispõe a discutir o que, em condições normais, não teria jamais de ser discutido.

Sua crônica “O besteirol dos 500 anos” (O Estado de S. Paulo, domingo, 23 de Abril de 2000) é uma obra de caridade feita para aliviar, por instantes ao menos, a miséria mental de um povo que hoje se acomoda tão bem à mais espantosa privação intelectual quanto mais baba de indignação ante qualquer vazamento de dinheiro.

Eu gostaria apenas de acrescentar-lhe as seguintes notas:

  • Que líderes negros, ao mesmo tempo que chamam os brancos de “invasores” do Brasil, isentem da mesma pecha os membros de sua própria raça sob a alegação de que vieram a contragosto, eis um argumento muito usado nos últimos dias, e no qual há menos burrice do que racismo puro e simples. Os brancos trazidos à força como prisioneiros já formavam um contingente enorme quando os escravos negros começaram a chegar. Se a condição de invasor é definida pela participação voluntária na ocupação do território – o que está subentendido no argumento que desculpa os negros -, esses brancos evidentemente não podem ser catalogados como invasores, a não ser que o critério adotado para condenar ou absolver o participante involuntário seja estritamente racial: forçado a lutar contra os índios, o prisioneiro será declarado culpado se for branco, inocente se for negro.

 

  • Não é muito realista explicar como emanação espontânea da babaquice nacional o requintado argumento sofístico que, atribuindo a sociedades tribais as prerrogativas de modernos Estados soberanos, torna o público cego e surdo para a mais óbvia das realidades: que a noção mesma de soberania, bem como de lei e direito em geral – inclusive o direito de usucapião invocado para nomear os índios “os verdadeiros donos do Brasil” – foi trazida e ensinada pelos europeus a povos que não tinham a menor idéia dessas coisas. Para qualquer ser humano no pleno gozo de suas faculdades mentais, um direito que vem trazido no bojo de uma mudança histórica não pode ser alegado contra essa mesma mudança histórica: não se pode alegar em defesa da autoridade imperial de Pedro II as prerrogativas constitucionais dos governantes republicanos, em favor da antiga religião estatal romana os princípios cristãos que a aboliram ou em prol do domínio colonial inglês os direitos estatuídos pela Constuição Americana. A percepção intuitiva dessas coisas faz parte da natureza humana. Faz parte do que os escolásticos chamavam sindérese, o conhecimento espontâneo dos princípios básicos subentendidos em qualquer regra moral. Mas pode ser suprimida por uma doutrinação estupidificante do tipo 1984, que habitue as almas a repetir slogans autocontraditórios e a aceitá-los sem exame, até que a abstenção do juízo crítico se torne automática e irreversível. O cidadão que aceite uma vez o argumento da “nação indígena” injeta na própria mente uma espécie de vírus informático puerilizante que o incapacitará para o julgamento moral dos casos mais óbvios. Essa técnica mistificadora não foi inventada por índios analfabetos, mas por técnicos a serviço de ONGs e governos estrangeiros. Até a ONU e a Unesco dão cursos regulares sobre como criar e dirigir “movimentos sociais”, e hoje não há em parte alguma do Terceiro Mundo um só grupo revoltado que não tenha sido formado e treinado por profissionais suecos, ingleses, americanos, franceses. O discurso vem pronto e é muito bem calculado para paralisar o raciocínio crítico ante qualquer protesto apresentado em tons patéticos. No caso brasileiro, a rebelião extemporânea contra um dominador que já foi embora há dois séculos é o melhor diversionismo preventivo contra qualquer veleidade de revolta contra os invasores atuais. Crianças e adolescentes são particularmente vulneráveis a esse tipo de manipulação psicológica, hoje aplicado em todas as escolas com a aprovação e o estímulo das autoridades. Não é preciso enfatizar a brutalidade psicológica, o maquiavelismo criminoso por trás desses esforços soi disant humanitários. Mas é claro que pessoas adultas, mesmo letradas, caem no engodo com a mesma facilidade das crianças: a solicitude com que nossas lideranças de esquerda se prestam a colaborar com os novos invasores forma um contraste deprimente com os inflamados discursos nacionalistas que lhes sobem aos lábios ante o leilão de qualquer empresa estatal. E essa gente não vê a menor contradição em defender o patrimônio de uma nação ao mesmo tempo que, com o discurso antidescobrimento, se nega a legitimidade da existência mesma dessa nação. A consciência nacional está em decomposição, o Brasil está caindo para um estado de menoridade intelectual que, daqui a pouco, tornará razoáveis e legítimas quaisquer pretensões estrangeiras de nos administrar como colônia.

 

  • Não estudei os maias, mas a cultura azteca, com todo o seu avanço tecnológico, era uma monstruosidade, um totalitarismo sangrento fundado no sacrifício ritual de seres humanos. Diariamente, em cada cidade e aldeia, se arrancava o coração de uma vítima, geralmente criança, para oferecê-lo ao deus Sol, a pretexto de persuadi-lo a iluminar a Terra na manhã seguinte. Em 1985 visitei o Museu da Universidade Livre e inúmeros templos remanescentes em vários pontos do México, lendo o que encontrava a respeito e observando, nos monumentos e pinturas sacras, as marcas da imaginação inconfundivelmente macabra de toda uma civilização que não conseguia conceber a divindade senão sob o aspecto do terrível e do persecutório. Além disso, os aztecas foram apenas os últimos da fila numas dezenas de povos que ali se sucederam na base da destruição sangrenta dos antecessores, não raro por meios de uma covardia ímpar, como por exemplo espalhar cascavéis numa aldeia adormecida ou convidar os membros da tribo vizinha para uma festa e envenená-los todos de uma vez. Os espanhóis que fizeram cessar à força esse morticínio milenar merecem a mesma gratidão que as tropas aliadas que destruíram o III Reich, com a ressalva de que estas tiveram muito menos complacência com os não-combatentes, incluindo velhos, mulheres e crianças. A sociedade azteca era tão perversa que já aspirava à sua própria destruição: quando Hernán Cortez entrou com um punhado de soldados arrasando tropas mil vezes superiores em número, os índios acreditaram que era seu deus, Quetzalcoatl, que voltava à Terra para um acerto de contas. E acho que foi mesmo. Se não foi ele, foi um deus melhor, talvez aquele a quem os espanhóis chamavam o Espírito Santo. Se existe o direito moral de protestar contra a extinção da sociedade e da religião aztecas, existe também o de proclamar que a erradicação do canibalismo, da clitorectomia ou dos campos de concentração foi uma violência cultural intolerável. Se em nome do relativismo cultural pode-se justificar os sacrifícios humanos ou qualquer atrocidade “cultural” do mesmo estilo, com muito mais razão se poderia argumentar em favor da escravatura mesma, afinal um hábito muito mais disseminado, menos truculento e economicamente mais útil do que arrancar corações para dar de comer ao Sol.

 

  • A história oficial diz que o canibalismo aqui só era praticado por umas poucas tribos. Não sei. Mas muitas outras faziam – e fizeram até recentemente — controle da natalidade pelo delicado expediente de sepultar vivas as crianças indesejadas. Com a chegada da Funai, esse costume foi progressivamente abandonado e as tribos começaram a crescer. Muitos dos índios que hoje gritam contra os “invasores brancos” teriam sido enterrados como excedente populacional se a maldita civilização ocidental não tivesse violado a integridade das culturas indígenas, ensinando-lhes que matar crianças não é um meio decente de reduzir despesas. Se ela mesma aliás vem desaprendendo essa lição, regredindo ao ponto de aceitar como normais e respeitáveis os costumes bárbaros que outrora ajudou a erradicar, é normal que ela perca rapidamente a autoridade moral que tinha sobre os índios e agora consinta em ouvir deles, com a cabeça baixa, as mais extraordinárias absurdidades.

 

  • Outra sentença repetida ad nauseam nas últimas semanas é que “os índios já estavam aqui milênios antes da chegada dos portugueses”. Daí conclui-se que cinco milhões de índios– a quarta parte da população da cidade de São Paulo – tinham a propriedade legítima e incontestável de um território maior que a Europa, enquanto dez milhões de portugueses se espremiam numa área exígua e passavam fome sem ter mais onde plantar. Na verdade os índios não tinham é propriedade nenhuma e direito nenhum, porque as tribos espalhadas pelo território não constituíam uma nação e nem sequer um condomínio, vivendo antes como bandos hostis ocupados em desalojar-se uns aos outros por meios da violência, malgrado a abundância de espaço livre, roubando aos inimigos não somente suas terras mas também – era o costume – suas mulheres, às vezes também seus cadáveres, para comê-los. E ninguém se dá conta da verdadeira cisão esquizofrênica que é preciso trazer na alma para poder advogar, a um tempo, o direito de os Sem-Terra invadirem fazendas e a legitimidade sacrossanta da posse de um continente inteiro por um grupo que constituiria, nessas condições, a mais poderosa casta latifundiária de todos os tempos.

 

  • De outro lado, os lusos também estavam na Lusitânia, os gauleses na Gália, os bretões na Bretanha e os saxões na Saxônia milênios antes da chegada dos romanos. Se vieram a crescer e tornar-se por sua vez dominadores foi porque não rejeitaram a nova cultura como um estupro, mas a aceitaram e a absorveram como um dom salvador e se tornaram, até com mais legitimidade do que os romanos, seus representantes e portadores. Muitos de nossos índios fizeram isso: abandonaram a cultura tribal, entraram na nova sociedade, adotaram a religião cristã. O Parlamento e as universisases estão repletos deles, e cada família antiga deste país se orgulha de ter mais de uma gota de sangue indígena. Os outros caíram vítimas de uma antropologia maluca intoxicada do “relativismo cultural” da charlatã Margaret Mead e empenhada em conservá-los como objetos de museu e bichinhos de estimação. Os primeiros representam a força e a glória das raças indígenas. Os segundos, a vergonha e a morbidez de um atavismo insano, alimentado e manipulado por um dominador mais rico e malicioso do que aquele contra o qual hoje ostentam uma revolta esquizofrênica e deslocada no tempo. Nada mais patético do que um índio que, acreditando ou fingindo lutar contra o fantasma do domínio português extinto, se torna instrumento e servo do dominador globalista. O barão de Itararé tinha razão ao contestar Auguste Comte: os vivos não são governados pelos mortos; são governados pelos mais vivos.

 

  • É verdade que, num Brasil cada vez mais afastado de suas raízes espirituais pelo impacto avassalador do globalismo materialista, a fidelidade dos índios às suas tradições religiosas é um exemplo capaz de fazer corar um frade se o frade for realmente de pedra e não daquela substância eminentemente não-ruborizável que forma a dupla Betto e Boff. Eu mesmo escrevi coisas bem contundentes em defesa dessas tradições. Mas elas adquirem valor somente como alternativas neo-românticas ao anticristianismo militante da sociedade moderna. Ante uma população descristianizada, elas se tornam, de maneira quase paradoxal, um testemunho de Cristo. Um testemunho parcial e tosco, mas, no deserto espiritual contemporâneo, um testemunho valioso. Mas concluir daí que são melhores do que o cristianismo pleno é subtrair-lhes até mesmo esse valor de contraste, fazendo delas apenas mais um instrumento de desespiritualização do mundo. Eis por que a preservação das tradições indígenas é uma causa ambígua, que só deve ser defendida com os maiores cuidados para que as boas intenções, caminhando sobre um fio de navalha, não sejam retalhadas e postas à venda no mercado das mentiras contemporâneas.

 

  • O protesto de João Ubaldo Ribeiro só pôde ser publicado porque veio com a assinatura de um membro da Academia bastante queridinho das esquerdas e porque se limitou a constatar, com a leveza habitual dos escritos desse autor, os aspectos mais periféricos e folclóricos de uma situação que, bem analisada, é de gravidade trágica. Qualquer abordagem mais séria do problema está rigorosamente proibida em toda a imprensa nacional. O jornalista gaúcho Janer Cristaldo sofreu ameaças, processos e exclusão do ofício pelo crime de ter denunciado como farsa (sem jamais ter sido contestado com fatos e argumentos) o suposto massacre de uns índios na fronteira Brasil-Bolívia. O livro do ex-secretário da Segurança Pública de Roraima, coronel Menna Barreto, A Farsa Inanomâmi (Biblioteca do Exército, 1996), a obra mais importante sobre o uso da fachada indigenista para a ocupação da Amazônia por ONGs e governos estrangeiros, não foi nem será noticiado em qualquer jornal deste país. Nesse depoimento ditado no leito de morte, e do qual dois terços foram suprimidos pelas autoridades antes de autorizar a publicação póstuma, o autor denuncia que nunca existiu nenhuma tribo Ianomâmi, que uma tribo biônica foi montada às pressas por agentes imperialistas para dar um arremedo de legitimidade à reivindicação de um “Estado indígena” administrado por organismos internacionais.

 

  • Com mais razão ainda, estão vetadas pela censura prévia quaisquer notícias de violências e atrocidades cometidas por índios contra as populações das cidades próximas às suas reservas (e cada brasileiro que retorna dessas regiões tem coisas horríveis a contar). Mas a probição nâo abrange somente os fatos da atualidade. As violências de índios contra brancos e a crueldade interna da sociedade indígena foram suprimidas dos livros de História, para que as novas gerações, após a lavagem cerebral que sofrem nas escolas, jamais venham a saber que a “brutal destruição” das culturas indígenas consistiu sobretudo na extinção de costumes hediondos como o canibalismo, a liquidação sistemática de prisioneiros, o sepultamento de crianças vivas e o roubo de mulheres. Outro dia, num noticiário da TV sobre uma exposição comemorativa dos 500 anos, duas imagens mostradas uma logo apósa outra resumiram da maneira mais eloqüente o estado de barbárie e de estupidez a que a mentalidade nacional está sendo reduzida pelo esforço conjugado da mídia: primeiro, vinha o arcebispo da Bahia repetindo melosamente os pedidos convencionais de “perdão” da Igreja católica por ter cristianizado os índios à força; logo em seguida, as câmeras mostravam o manto envergado pelos caciques durante o rito de devorar solenemente os cadáveres de seus adversários. Pedir perdão por ter substituído a costumes como esse a prática da religião cristã é fazer-se, despudoradamente, apóstolo de Satanás.

 

  • Raciocinando como esse prelado, eu teria também um pedido de perdão a apresentar. Meu nome de batismo é homenagem a Santo Olavo, rei e padroeiro da Noruega. A história desse santo guerreirro é contada na Saga de Olaf Haraldson, de Snorri Sturlson, leitura deliciosa, um clássico da literatura épica. Na juventude, Olavo notabilizou-se pelo gosto das aventuras e por um bizarro senso de humor: mandavam-no selar um cavalo, ele selava um bode e saía correndo para não apanhar do avô. Ainda adolescente, comandou com sucesso batalhas navais. Depois deu de rezar e, quando subiu ao trono, tornou-se o sujeito que cristianizou a Noruega a muque. Antes, as populações locais tinham costumes bem semelhantes aos dos nossos índios: invadiam aldeias para roubar mulheres, queimavam todos os prisioneiros, jogavam no lixo as crianças indesejadas. Olavo mandou parar com essa história e, para mostrar que não estava brincando, matou os chefes e sacerdotes de várias tribos e disse que faria o mesmo com quem não se batizasse. O pessoal então parou de enterrar criancinhas vivas e começou a confessar e comungar. Hediondo genocídio cultural, não é mesmo? Pensando nos feitos imperialistas desse meu homônimo, passo noites em claro, batendo no peito em crises de arrependimento midiático pela extinção da cultura viking. Afinal, aqueles fulanos estavam lá, como aqui a turminha do Xingu, milênios antes da chegada dos cristãos…

 

A origem da burrice nacional

Olavo de Carvalho

Bravo!, dezembro de 1999 / janeiro de 2000

Repetidamente um fenômeno tem chamado a atenção de professores estrangeiros que vêem lecionar no Brasil: por que nossas crianças estão entre as mais inteligentes do mundo e nossos universitários entre os mais burros? Como é possível que um ser humano dotado se transforme, decorridos quinze anos, num oligofrênico incapaz de montar uma frase com sujeito e verbo? É fácil lançar a culpa no governo e armar em torno do assunto mais um falatório destinado a terminar, como todos, em uma nova extorsão de verbas oficiais.

Difícil é admitir que um problema tão geral deve ter causas também gerais, isto é, que não pertence àquela classe de obstáculos que podem ser removidos pela ação oficial, mas àquela outra que só nós mesmos, o povo, a “sociedade civil”, estamos à altura de enfrentar, não mediante mobilizações públicas de entusiasmo epidérmico, e sim mediante a convergência lenta e teimosa de milhões de ações anônimas, longe dos olhos turvos da nossa vã sociologia.

Ora, a condição mais óbvia para o desenvolvimento da inteligência é a organização do saber. Nossas energias intelectuais mobilizam-se mais facilmente em torno de uns poucos núcleos de interesse fortemente hierarquizados do que numa dispersão de focos de atenção espalhados no ar como mosquitos. Discernir o importante do irrelevante é o ato inicial da inteligência, sem o qual o raciocínio nada pode senão patinar em falso em cima de equívocos. Se, porém, cada homem tivesse de realizar por suas forças essa operação, reduzindo a um esquema quintessencial de sua própria invenção a totalidade dos dados disponíveis no ambiente físico, milhões de vidas não bastariam para que ele chegasse a obter um começo de orientação no mundo. A cultura, impregnada na sociedade em torno e resultado de sucessivas filtragens da experiência acumulada, dá pronto a cada ser humano um quadro dos ãngulos de interesse essencial, de modo que não resta ao indivíduo senão operar nesse mostruário um segundo recorte, em conformidade com os seus interesses pessoais.

Quando digo que a cultura está impregnada na sociedade em torno, isto significa que a seleção dos pontos importantes transparece na organização das cidades, nos monumentos públicos, no estilo arquitetônico, nos museus, nos cartazes dos teatros, na imprensa, nos debates entre as pessoas letradas, nos giros da linguagem corrente, nas estantes das livrarias e, last not least, nos programas de ensino.

Quem quer que desembarque num país qualquer da Europa ou em alguns da Ásia já obtém, por um primeiro exame desse mostruário, uma visão bem clara dos pontos de interesse mais permanente, que constituem uma espécie de fundo de referência cultural, bem distinto dos focos de atenção mais atual e momentânea que se recortam sobre esse fundo sem encobri-lo.

Só de andar pelas ruas, o cidadão aí pode enxergar os marcos que o situam num lugar preciso do mapa histórico, desde o qual ele pode medir quanto tempo as coisas duraram e qual a sua importância maior ou menor para a vida humana.

Se ele olha para os cartazes dos teatros, nota que certas peças estão sendo reencenadas este ano porque são reencenadas todos os anos, ao passo que outras, que fizeram algum sucesso no ano passado, desapareceram do repertório. Basta isto para que ele adquira um senso da diferença entre o que importa e o que não importa.

Ao entrar em qualquer livraria, o contraste entre as estantes onde estão sempre expostos os mesmos títulos essenciais e aquelas onde os lançamentos mais recentes se revezam mostra-lhe a diferença entre o patrimônio escrito de valor permanente e o comércio livreiro de alta rotatividade.

Na escola, ele sabe que vai aprender certas coisas que seus pais, avós e bisavós também aprenderam, e outras que são novidade e que talvez terão desaparecido do currículo na geração seguinte.

Tudo, em suma, no ambiente plástico e verbal contribui para que o indivíduo adquira, sem esforço consciente, um senso de hierarquia e de orientação no tempo histórico, na cultura, na humanidade.

No Brasil isso não existe. O ambiente visual urbano é caótico e disforme, a divulgação cultural parece calculada para tornar o essencial indiscernível do irrelevante, o que surgiu ontem para desaparecer amanhã assume o peso das realidades milenares, os programas educacionais oferecem como verdade definitiva opiniões que vieram com a moda e desaparecerão com ela. Tudo é uma agitação superficial infinitamente confusa onde o efêmero parece eterno e o irrelevante ocupa o centro do mundo. Nenhum ser humano, mesmo genial, pode atravessar essa selva selvaggia e sair intelectualmente ileso do outro lado. Largado no meio de um caos de valores e contravalores indiscerníveis, ele se perde numa densa malha de dúvidas ociosas e equívocos elementares, forçado a reinventar a roda e a redescobrir a pólvora mil vezes antes de poder passar ao item seguinte, que não chega nunca.

Nesse ambiente, a difusão das novidades intelectuais, em vez de fomentar discussões inteligentes, só pode atuar como força entrópica e dispersante. Não há nada mais consternador do que uma inteligência sem cultura, despreparada, nua e selvagem que se nutre do último vient-de-paraîte e arrota uma sucessão de perguntas cretinas onde a sofisticação pedante do raciocínio se apóia na mais grosseira ignorância dos fundamentos do assunto. Acrescente-se a esses ingredientes a arrogância juvenil estimulada pelas lisonjas demagógicas da mídia, e tem-se a fórmula média do estudante universitário brasileiro. É impossível discutir com ele. Quando a mente assim deformada entra a produzir objeções numa discussão, seu interlocutor culto e bem intencionado, se não é muito enérgico no emprego da vara-de-marmelo, leva desvantagem necessariamente: quem pode vencer um debatedor tenaz que, confiante na aparente correção formal do seu raciocínio, está protegido pela própria ignorância contra a percepção da falsidade das premissas? Com um sujeito assim não cabe a gente argumentar. Cabe apenas transmitir-lhe as informações faltantes — educá-lo, em suma. Mas, precisamente, ele não vai deixar você educá-lo, porque a ideologia de rebelde posudo que lhe incutiram desde pequeno o faz pensar que é mais bonito humilhar um professor do que aprender com ele. Eis como o menino inteligente se transforma num debatedor idiota, vacinado para todo o sempre contra qualquer conhecimento do assunto em debate.

As objeções cretinas nascem, decerto, de um impulso saudável. Não há mais notório sinal de inteligência filosófica do que a capacidade de perceber contradições, a sensibilidade para a presença de problemas. O brasileiro tem isso até demais. Contrariando o lugar-comum que afirma a nossa falta de vocação para a filosofia, eu diria que somos o povo mais filosófico do planeta. A prova disso é o nosso senso de humor. O engraçado nasce, como as perguntas filosóficas, da percepção de incongruências lógicas ou existenciais.

Mas que destino terá o jovem pensador que, a braços com o debate filosófico, se veja privado de uma perspectiva histórica, de uma visão da evolução das discussões, de um conhecimento enfim, do status quaestionis? Mesmo na doce hipótese de que por natural instinto de comedimento ele se recuse ao bate-boca estéril e prefira trancar-se em casa para raciocinar a sós, ele não passará nunca de um especulador maluco, de um novo Brás Cubas a rebuscar em vão soluções já mil vezes encontradas, a polemizar com as sombras de seus próprios enganos, a esgotar-se em perguntas estéreis e em tentativas de provar o impossível. Enfim, cansado e amedrontado de um mergulho solitário que não arrisca levá-lo senão ao hospício, ele aderirá, por mero instinto autoterapêutico, ao discurso padronizado mais à mão. Uma carteirinha do PC do B lhe dará um sentimento de retorno à condição humana. E não há nada mais perigoso no mundo do que um idiota persuadido da sua própria normalidade.

Tal é o destino da maior parte da nossa jovem inteligência. (1)

Quem esteja consciente dessas coisas não poderá deixar de admitir que elas são a conseqüência inapelável da nossa incapacidade, ou recusa, de absorver o legado histórico da Europa e do mundo. Quanto mais nos “libertamos” de um passado que daria sentido de historicidade à nossa inteligência, mais nos tornamos escravos de uma atualidade invasiva que a desorienta e debilita.

Nesse sentido, os movimentos de “libertação” e de “independência”, que cortaram nossas ligações com as raízes européias, não nos libertaram senão da base mesma da nossa autodefesa, para nos deixar, inermes e sonsos, à mercê das perturbadoras casualidades da mídia e da moda. Roubaram-nos o mapa do mundo, para nos deixar perdidos no meio de um deserto onde é preciso recomeçar sempre o caminho, de novo e de novo, para não chegar a parte alguma. Destituíram-nos do senso da hierarquia e das proporções, para nos tornar escravos de debates viciados e conjeturações ociosas que não nos deixam pensar nem agir.

Oferecer a um povo esse tipo de falsa libertação é algo que está, para mim, na escala dos grandes crimes, na escala do genocídio cultural. E não é de espantar que, no meio de tantas hesitações e equívocos, ninguém seja capaz de perceber a ligação óbvia entre esse tipo de iniciativas “modernizantes” e o estado catastrófico de uma cultura que se entrega sem reação, por mínima que seja, ao estupro midiático internacional. Não é de espantar que ninguém note o elo de cumplicidade — secreta mas indissolúvel — entre o fetichismo da independência estereotipada e a realidade da dependência crescente.

Não me perguntem portanto o que acho de Mários, Oswalds, Menottis, Bopps e tutti quanti, bem como de seus cultores e discípulos atuais que, desmantelando o idioma sob pretextos morbidamente artificiosos e pedantes, o entregam inerme nas mãos de quem faz dele a lixeira dos detritos do inglês midiático. Nem me peçam, em público, para opinar sobre quaisquer outros importadores de novidades culturais que de tempos em tempos refazem o Brasil no molde do último figurino.

Esse tipo de reformador cultural deslumbrado, que, sem uma autêntica visão universal das coisas e movido somente pela comichão de atualismo, quando não pela ânsia de épater le bourgeois, se mete a destruir valores que não compreende, é a praga mais nefasta que pode se abater sobre uma cultura em formação, induzindo-a a destruir as bases em que começava a se erguer e não pondo em seu lugar senão pseudo-valores efêmeros cuja rápida substituição abrirá cada vez mais, sob os pés dela, o abismo sem fim das duvidas ociosas e das perguntas cretinas.

Se queremos preservar e desenvolver a inteligência do nosso povo, em vez de a esfarelar em tagarelice estéril, o que temos de importar não é a novidade: é toda a História, é todo o passado humano. Temos de espalhar pelas ruas, pelos cartazes, pelos monumentos, pelas livrarias e pelas escolas as lições de Lao-Tsé e Pitágoras, Vitrúvio e Pacioli, Aristóteles e Platão, Homero e Dante, Virgílio e Shânkara, Rûmi e Ibn ‘Arabi, Tomás e Boaventura.

Quem, antes de fortalecer a inteligência juvenil com esse tipo de alimento, a perturba e debilita com novidades indigeríveis, é nada menos que um molestador de menores, um estuprador espiritual. E, se o faz com intuito político ou comercial, o crime tem ainda o agravante do motivo torpe.

8 de novembro de 1999

NOTA

  1. Tão desprovido de retaguarda histórica está o nosso povo, que o impacto do show business, entre nós, é mais profundo e devastador do que em qualquer outra parte. Tombando como bombas sobre uma superfície mole e disforme onde nada lhes resiste, as imagens dos os ídolos da TV assumem a dimensão de arquétipos formadores. O peso de 50 milênios de história da civilização recua para uma distância inalcançável, torna-se evanescente e como que irreal, enquanto umas aparências que se agitam na telinha ocupam todo o espaço visível e se impõem como a única realidade. Querem medir a profundidade desse impacto? Reparem nos nomes das pessoas. A cada nova investida da mídia, uma nova geração de brasileiros se desgarra da história para flutuar, como asteróides errantes, no mundo das identidades imaginárias: chamam-se “Michael” ou “Diane”, quase que invariavelmente grafados Máiquel, ou Máicom, e Daiane). Inútil explicar isto pelo mero senso de macaquice. O fenômeno reflete uma doença mais profunda: a completa vulnerabilidade de um povo desprovido do senso de retaguarda histórica. Não estou criticando os pais dessas crianças. O que os motiva é um impulso elevado e nobre. Dar nome a uma criança é libertá-la da escravidão natural e protegê-la sob o manto da tradição e da cultura. É subtraí-la da insignificância empírica para elevar sua existência a um sentido universal. O nome de um anjo, Miguel, Gabriel, faz de seu nascimento uma mensagem de Deus. O nome de um santo, João, Pedro, Teresa, Inês, alista-a entre os beneficiários de acontecimentos miraculosos. Os de um animal nobre, de um astro do céu — Leão, Hélio e Eliana — associam-na ao simbolismo espiritual das coisas da natureza. Ao chamar suas crianças de Máiquel e Daiane, o brasileiro pobre expressa o protesto da sua alma contra a sociedade que as condenou a uma existência irrisória e cinzenta, e busca associá-las à corrente dos prestígios que representa a vida realizada, plena, feliz. Mas, em primeiro lugar, Máiquel e Daiane são falsos sentidos universais. Não são nomes de gente. São griffes, copiadas errado de uma língua desconhecida, falada num país distante do qual essas crianças estão ainda mais excluídas do que de uma possível vida feliz na sua terra natal. Para augurar uma vida feliz a essas crianças seria preciso chamar-lás Miguel e Diana, nomes de forças sutis sem referência geopolítica. A modulação norte-americana exorcisa o arcanjo e a deusa, não deixando em seu lugar senão os rótulos que farão de duas vidas humanas os reflexos anônimos de duas imagens efêmeras. Há nesse hábito brasileiro um fundo de autocondenação, um evidente sintoma depressivo. Chamar a uma criança Máiquel ou Daiana é declarar que ela só seria feliz se tivesse nascido nos Estados Unidos. Mas ao mesmo tempo seu próprio nome, com grafia errada, prova que não nasceu. Ela está, portanto, condenada ao infortúnio. 

    Esses nomes não são bons augúrios, como os do arcanjo São Miguel e da deusa Diana: são pragas sinistras lançadas sobre inocentes. Precisamente por carregar nome grotescos essas crianças terão dificuldade de ascender socialmente no seu próprio país. Em segundo lugar, o personagem cujo nome se copia é, em si mesmo, um nada, um fogo-fátuo, destinado a desaparecer sob a maré de novas imagens da mídia. Aos quarenta anos, quem carregue seu nome será um anacronismo vivo, como o é hoje quem se chame Neil ou por conta de Neil Sedaka ou Pat em homenagem a Pat Boone.

    As intenções dos pais terão se desvanecido junto com essas glórias de quinze minutos. Os nomes dessas crianças serão as marcas aviltantes de uma irrecorrível condenação à insignificância.

Máfia gramsciana

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 25 de novembro de 1999

A cada dia que passa, mais o chamado “debate cultural” brasileiro se reduz a mero debate eleitoral, tudo rebaixando ao nível dos slogans e estereótipos e, pior ainda, induzindo as novas gerações a crer que a paixão ideológica é uma forma legítima de atividade intelectual e uma expressão superior dos sentimentos morais.

Tão grave é esse estado de coisas, tão temíveis os desenvolvimentos que anuncia, que todos os responsáveis pela sua produção – a começar pelos fiéis seguidores da estratégia gramsciana, para a qual aquela redução é objetivo explicitamente desejado e buscado – deveriam ser expostos à execração pública como assassinos da inteligência e destruidores da alma brasileira.

Para Antonio Gramsci, a propaganda revolucionária é o único objetivo e justificação da inteligência humana. O “historicismo absoluto”, um marxismo fortemente impregnado de pragmatismo, reduz toda atividade cultural, artística e científica à expressão dos desejos coletivos de cada época, abolindo os cânones de avaliação objetiva dos conhecimentos e instaurando em lugar deles o critério da utilidade política e da oportunidade estratégica.

É idéia intrinsecamente monstruosa, que se torna tanto mais repugnante quanto mais se adorna do prestígio associado, nas mentes pueris, a palavras como “humanismo” ou “consenso democrático” (naturalmente esvaziadas de qualquer conteúdo identificável), bem como das insinuações de santidade ligadas à narrativa dos padecimentos de Antônio Gramsci na prisão, as quais dão ao gramscismo a tonalidade inconfundível de um culto pseudo-religioso.

Recentemente, um grande jornal de São Paulo, que se gaba de sempre “ouvir o outro lado”, consagrou a Antonio Gramsci todo um caderno, laudatório até à demência, que, sem uma só menção às críticas devastadoras feitas ao gramscismo por Roger Scruton, por Francisco Saenz ou – de dentro do próprio grêmio marxista – por Lucio Coletti, deixa no leitor a falsíssima impressão de que essa ideologia domina o pensamento mundial, quando a verdade é que ela tem aí um lugar muito modesto e até o Partido Comunista Italiano, com nome mudado, já não fala de seu fundador sem um certo constrangimento.

Que o jornalismo assim se reduza à propaganda, nada mais coerente com o espírito do gramscismo, o qual não busca se impor no terreno dos debates, do qual não poderia sair senão desmoralizado, e sim através da tática de “ocupação de espaços”, por meio da qual, excluídas gradualmente e quase sem dor as vozes discordantes, a doutrina que reste sozinha no picadeiro possa posar como resultado pacífico de um “consenso democrático”.

Com a maior cara-de-pau os adeptos dessa corrente atribuirão a um mórbido direitismo esta minha denúncia, sem ter em conta aquilo que meus leitores habituais sabem perfeitamente, isto é, que eu denunciaria com o mesmo vigor qualquer ideologia direitista que tentasse se impor mediante o uso de estratagemas tão sorrateiros e perversos.

Se no momento pouco digo contra a direita é porque sua expressão intelectual pública é quase nula, não por falta de porta-vozes qualificados, mas de espaço. Os liberais, banidos de qualquer debate moral, religioso ou estético-literário, recolheram-se ao gueto especializado das páginas de economia, o que muito favorece o lado adversário na medida em que deixa a impressão de que o liberalismo é a mais pobre e seca das filosofias. Quanto às correntes conservadoras que ainda subsistem, por exemplo católicas e evangélicas, sua exclusão foi tão radical e perfeita, que hoje a simples hipótese de que um conservador religioso possa ter algo a dizer no debate cultural já é objeto de chacota. Chacota, é claro, de ignorantes presunçosos, que, nunca tendo ouvido falar de Eric Voegelin, de Russel Kirk, de Malcom Muggeridge, de Reinhold Niebuhr ou de Eugen Rosenstock-Huessy, acreditam piamente que não pode existir vida inteligente fora de suas cabecinhas gramscianas, e provam assim ser eles próprios as primeiras vítimas da censura mental que impuseram a todo o País.

No campo intelectual, atacar a “direita”, hoje, seria mais que covardia: seria coonestar a farsa de que no Brasil existe um debate cultural normal, quando o que existe é apenas o mafioso apoio mútuo de gramscianos a gramscianos, que priva os brasileiros do acesso a idéias essenciais e ainda tem o cinismo de posar de democrático.

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