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O palanque e as chinelas

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 26 de abril de 2001

Éric Weil, filósofo judeu-alemão que em protesto contra Hitler abandonou o uso do idioma natal e se tornou um clássico da língua francesa, enunciou nela esta verdade escandalosa: “Em política, o único ponto de vista legítimo é o do governante.” As mentes incapazes de abstração podem ler isso como um apelo à obediência servil. Mas o que Weil quis dizer é que o cidadão que opine sobre política sem se colocar em imaginação na pele do governante, sem assumir no plano moral subjetivo as responsabilidades com que ele teria de arcar politicamente caso agisse segundo essa opinião, é apenas um tagarela que não tem o direito de ser ouvido pela comunidade. Esta norma é válida, inclusive, para opiniões políticas que não digam respeito ao conjunto da sociedade, mas apenas a aspectos determinados e parciais dela, pois mesmo ações de governo limitadas a esses aspectos afetariam a sociedade toda e seriam por ela julgadas.

A sucessão de decepções que o Brasil tem tido com seus governantes, cada qual tão hábil em censurar os erros de seu antecessor quanto propenso a cometê-los ainda piores quando sobe ao poder, mostra que essa exigência elementar da moralidade intelectual é completamente desatendida entre nós.

Os políticos de carreira, candidatos a cargos eletivos, são tão incapazes de imaginar-se na posição do governante quando o criticam que, quando chega o dia de substituí-lo no cargo, estão completamente despreparados para o papel: tão logo assumem o governo, descobrem um outro mundo, imprevisto e rebelde a seus planos, que nem de longe haviam previsto quando pontificavam do alto das tribunas da oposição. E então, sonsos e desorientados, cometem erro atrás de erro.

Mas, se até os políticos são assim, que dizer do cidadão comum e, sobretudo, dessa classe especial de cidadãos que são os intelectuais, os críticos de tudo, os opinadores profissionais entre os quais me incluo? Cada qual, aí, se crê no direito de julgar em nome de ideais abstratos e critérios hipotéticos de perfeição, sem ter na mínima conta as dificuldades reais da situação concreta. Pior ainda, ninguém, ao opinar sobre problemas nacionais, se atém ao domínio daquilo em que pode interferir pessoalmente. O professor não se contenta em opinar sobre o que ele e seus pares devem ensinar, o escritor sobre o que os escritores podem fazer para escrever melhores livros, o jornalista sobre como fazer melhores jornais. Não: cada um, quando abre a boca, tem planos de escala nacional que, para ser executados, supõem no mínimo um poder presidencial. No Brasil só se debate uma coisa: planos de governo – e esses planos nem sequer são planos: são ideais genéricos, puramente verbais, que servem como padrão para julgar e condenar a realidade, mas não se tornar eles próprios uma realidade. Cada brasileiro fala como um presidente virtual, investido de plenos poderes imaginários que, quando os tiver no mundo real, haverá de fazer e acontecer. Ao mesmo tempo, todos se recusam a conceber as dificuldades concretas de exercer o poder, e cobram do governante o que eles próprios, no lugar dele, jamais poderiam fazer. Cada um fala como se tivesse nas mãos o cetro imperial, mas com as responsabilidades de simples cidadão comum, às vezes até menor de idade. O contraste entre a escala macroscópica dos temas e a incapacidade de se elevar, no exame deles, ao “ponto de vista do governante” marca os debates nacionais com os sinais inconfundíveis do puerilismo e da papagaiada histriônica.

Procurando escapar à contaminação desse vício deprimente, tenho evitado opinar em escala propriamente política, atendo-me antes àquilo que entendo que eu e os meus colegas de ofício – escritores, jornalistas, professores – podemos fazer aqui e agora, com o poder que temos. Mesmo quando os temas de meus artigos são estritamente políticos, não discuto aí o que o governante deve fazer, mas o que nós, formadores de opinião, devemos pensar e dizer.

Sou um caso raro de brasileiro desprovido de planos de governo – não os tenho nem para mim nem para quem quer que seja. Tenho planos para uma vida intelectual digna, que sou capaz de realizar na minha escala pessoal e que proponho aos que tenham as mesmas ambições que eu. Mas aquele que assim se atém ao domínio em que pode falar com plena responsabilidade se arrisca a ser totalmente incompreendido. Num país onde todos falam desde cima de um palanque, como poderiam compreender o discurso do sapateiro que não se eleva acima das chinelas?

Zenão e o paralítico

Olavo de Carvalho


O Globo, 20 de janeiro de 2001

Quando digo que a queda do nível de consciência das nossas classes falantes já atingiu a faixa do calamitoso, não estou exagerando nem brincando. Acompanho com regularidade os debates políticos, leio as principais publicações culturais, recebo diariamente dezenas de e-mails de universitários que levantam discussões sobre mil e um assuntos: tenho uma boa amostragem do que se passa. Seis anos atrás ainda era possível documentar, através de exemplos selecionados, como o fiz nos dois volumes de “O imbecil coletivo”, a veloz ascensão da estupidez na intelectualidade nacional. Hoje quem tentasse coleta similar seria esmagado sob a massa de documentos. Mas esse estado de coisas não deixa de ter suas vantagens. A maior delas é que, pelo acúmulo de material, a confusão inicial dos dados cede lugar ao desenho nítido de algumas constantes: o conjunto de cacoetes e incompetências que hoje caracteriza a forma mentis do opinador nacional típico já pode ser descrito em poucas linhas.

A primeira característica é a absoluta incapacidade de distinguir entre um conceito e uma figura de linguagem. Quando temos um sentimento difuso a respeito de algo que não compreendemos bem, experimentamos naturalmente a dificuldade de expressá-lo. Uma figura de linguagem, apelando a semelhanças sugestivas, ajuda-nos a vencer a dificuldade. Saímos de um nebuloso isolamento e penetramos na corrente da conversação pública. A decorrente sensação de ter emergido das trevas para a luz é porém totalmente ilusória: maior domínio da expressão não significa melhor conhecimento do objeto do qual se fala, ingresso na tagarelice coletiva não significa contato com a realidade. Quase todo debatedor público neste país, quando consegue domar sua dificuldade de expressão, sente ter dito algo de “objetivo”, talvez até mesmo de evidente e autoprobante, quando na verdade apenas objetivou sua subjetividade. Quanto mais árduo o desafio expressivo, mais a vitória é enganosa. A libertação das brumas interiores, a capacidade de exprimir o que sentimos é, decerto, um pressuposto do conhecimento objetivo, mas ainda está muito longe de alcançá-lo. No Brasil ela tende antes a substituí-lo. A confusão entre falar e conhecer é uma regra estabelecida dos debates nacionais.

Nessas condições, qualquer pretensão de “conceito”, quando chega a despontar, se esgota em mera definição nominal. O processo de exame pelo qual o investigador, fazendo a crítica de suas figuras de linguagem, acaba apreendendo algo da coisa real por entre as frestas do que ele próprio disse dela, parece ser totalmente desconhecido nesta parte do mundo. A expressão figurada e aproximativa, em vez de ser apenas o começo do processo de investigação, é o término dele: o sujeito mal acabou de enunciar um vago problema, e crê já ter em mãos uma conclusão líquida e certa.

Eu não diria, no entanto, que essa inépcia nasce da excessiva afeição às palavras, erroneamente assinalada como traço da nossa cultura por observadores estrangeiros como James Bryce e Hermann Keyserling. O que nos faz tomar as palavras por coisas não é o amor às primeiras, mas a dificuldade de, por meio delas, chegar às segundas. Pesquisas de antropologia empresarial mostraram que nossa população é insensível à palavra escrita, necessitando do apoio dos gestos e sons para que a mensagem atinja a consciência. Mas essa dependência da presença física do emissor assinala também uma dificuldade de saltar sobre a situação concreta do diálogo e apreender diretamente as coisas e relações mencionadas. O que se capta nesse tipo de comunicação é menos algo a respeito da realidade externa do que as intenções e sentimentos do falante. O brasileiro inclina-se a apreender antes “o que querem dele” do que o quid da coisa da qual se fala. Diga você o que disser, sobre não importa o que, e ele ouvirá uma ordem, um pedido, um apelo, um estímulo, uma proibição. É natural que, ouvindo assim, também fale assim, isto é, que, numa situação que exige descrever fatos e seres, ele se atenha a expressar o que sente, sem notar sequer a diferença entre uma coisa e outra. Sua fala será então respondida na mesma clave, e assim por diante indefinidamente, numa espécie de solipsismo coletivo no qual as almas, quanto mais se abrem umas às outras, mais se fecham na sua ilusão subjetivista.

Daí a compulsiva necessidade de “tomar posição” antes e independentemente de conhecer as coisas em questão, bem como a impossibilidade de ouvir uma argumentação ou prova senão como expressão mais elaborada de uma “tomada de posição” subjetiva. No Brasil não se discutem idéias, teorias, visões da realidade: discutem-se “posições” – atitudes, preferências, gostos e antipatias. Se é verdade o que dizia Henry James, que “os senhores falam de coisas; os escravos, de pessoas”, então somos, indiscutivelmente, uma nação de escravos.

É evidente que, não alcançado o nível do pensamento conceptual, mais impossível ainda fica provar o que quer que seja. Daí a segunda característica do debatedor brasileiro hoje em dia: a completa ignorância do que seja uma prova ou demonstração, na verdade uma total inconsciência da necessidade de provas. Em vez da prova, temos a reiteração enfática ou o apelo a novas figuras de linguagem, que, pela sua carga sentimental, bastem para estabelecer uma sintonia entre os sentimentos do ouvinte e os da platéia, sem nem de longe tocar nos objetos em questão. E o sujeito que fez isso sai persuadido de que disse alguma coisa do mundo real.

Curiosamente, indivíduos que ignoram tudo dos critérios de prova em filosofia ou ciência estão bem atualizados com as limitações desses critérios, assinaladas por autores em voga. Em resultado, a limitação se torna um substitutivo do critério mesmo e é por sua vez absolutizada, com grande reconforto para o presunçoso ignorante que, justamente por nada ter provado, acredita estar no cume da evolução epistemológica – como um paralítico que, ao ter notícia dos argumentos de Zenão sobre a impossibilidade do movimento, se sentisse superior às pessoas capazes de andar.

PS – Após acusar-me de um crime que não cometi e mostrar-se indignado de que eu tivesse o desplante de achar isso ruim, o sr. Marcio Moreira Alves anuncia agora que vai abandonar o ringue para não ter de se rebaixar ao nível da minha pessoa. Sapientíssima decisão. Ele que fique lá em cima, no seu “grand monde” de comunistas chiques, e não desça mais ao humilde porãozinho que, em paz com Deus, habito. Se descer, vai apanhar de novo.

Já o tal de Betto, que de maneira mais ou menos vaga e implícita parece ter endossado as acusações do sr. Moreira, não requer uma resposta em separado, porque, tendo ido essas acusações para o ralo da completa desmoralização, com elas há de ir automaticamente, sem deixar saudades, quem quer que as tenha subscrito.

Cumprindo meu dever

Olavo de Carvalho


O Globo, 30 de dezembro de 2000

Um homem de pensamento deve ser fiel à verdade tal como ela se lhe apresenta a cada momento no exame das questões concretas, sem deixar-se envolver por uma atmosfera mental que tinja todo o seu horizonte de consciência com uma tonalidade geral e prévia de “esquerda”, de “direita” ou seja lá do que for. Pessoalmente, nunca me manifestei a favor de nenhuma política “de direita”, e é por pura indução psicótica e ressentimento de complexados que uns sujeitos de esquerda tentam enxergar em mim um feroz direitista. Deduzem isto das críticas que lhes faço. Raciocinam na base schmittiana do “Quem não está conosco está do outro lado”, mostrando que nem sequer em imaginação podem conceber que exista uma inteligência livre, capaz de atacar o mal sem cair no automatismo mentecapto de supor que a simples inversão da ruindade faria dela um bem.

Logicamente falando, a posição política de um indivíduo jamais pode ser inferida das críticas, por mais duras, que dirija a uma ideologia ou partido, pela simples razão de que críticas idênticas podem ser feitas desde várias posições ideológicas. O sionismo foi atacado com igual vigor pela extrema-direita e pelos comunistas. O fundamentalismo islâmico é tão abominado pelos cristãos conservadores quanto pela esquerda feminista e gay ou pelos liberais modernistas e ateus.

Só uma tomada de posição positiva em favor de determinadas políticas é que define identidade e compromisso ideológicos. A crítica é livre e pode vir de todas as direções.

A mentalidade comunista, no entanto, desconhece a tal ponto a liberdade de pensamento, subjuga tão pesadamente a inteligência ao comando partidário, que chega a catalogar a ideologia de um sujeito não pelas intenções e valores que ele professe, mas pela simples conjecturação hipotética e quase sempre paranóica do benefício político ou publicitário que partidos ou correntes possam auferir de suas palavras, ainda que oportunisticamente e contra a vontade dele. Na imaginação dos comunistas, ninguém afirma “x” ou “y” com a simples intenção de dizer a verdade, mas sempre com a premeditação de algum resultado político, mesmo remotíssimo. É que eles pensam assim, eles são indiferentes à verdade e à falsidade e só abrem a boca em vista de efeitos políticos. Por isso imaginam que o resto da Humanidade também é assim.

Foi com base nesse raciocínio alucinadamente projetivo que o Estado soviético chegou a condenar como crime a indiferença política, por julgar que ela denotava sinistras intenções contra-revolucionárias. Boris Pasternak foi parar na cadeia por conta disso.

Da minha parte, estou persuadido de que o homem de pensamento deve ser escrupulosamente comedido ao opinar a favor de qualquer política em especial: ele deve simplesmente fazer a crítica do que é ruim e perverso, deixando ao público e aos políticos, àqueles que se orgulham de ser “homens práticos” e que têm o dever de sê-lo, a decisão de políticas positivas que hão de suprimir ou remediar o mal.

Ademais, se critico a esquerda é porque hoje só existe esquerda. Não há direita nenhuma no Brasil. Há direitistas, mas cada um fechado nas suas convicções privadas, sem qualquer ação de conjunto. A prova mais patente é que a palavra “direita” só aparece na imprensa com conotações sombrias e criminais, jamais como a designação de uma corrente política que tenha o direito de existir como qualquer outra. Apontar um homem como direitista é acusá-lo de conspirador, de golpista, de corrupto, de torturador. Tanto é assim, que qualquer delito cometido em interesse próprio por analfabetos coronéis do sertão é imediatamente atribuído à “direita”, o que é pelo menos tão absurdo quanto enxergar motivação ideológica esquerdista em todos os crimes cometidos por meninos de rua. Só se pode falar nesse tom, impunemente, de uma minoria de párias sem voz nem poder. O curioso é que aqueles mesmos que sem temor de represália falam da direita nesses termos, provando com isto que ela não tem poder nenhum, querem nos fazer crer que ela existe, que ela é uma força organizada e manda no Brasil. Tudo isso é puro histrionismo de uma esquerda que sabe que está no poder mas não deseja assumir as responsabilidades de sua situação.

Hoje o establishment é esquerdista, a oposição também. Leiam as cartilhas de marxismo-leninismo do Ministério da Educação e me digam se um governo que educa as crianças nessa mentalidade não é comunista em espírito, conformado provisoriamente com o capitalismo que não pode suprimir. E qual governo sem forte inspiração comunista desejaria a supressão do sigilo bancário? Nessas condições, seria hipocrisia eu falar mal da “direita” só para me fazer de bom menino e afetar uma independência estereotipada. A independência autêntica não teme os rótulos que lhe queiram impor e não foge deles mediante o apelo a discursos de ocasião. Diz o que tem de dizer, e pronto. A confusão que façam em torno dela corre por conta da malícia e da sem-vergonhice de cada um.

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