Posts Tagged Brasil

A moral dos imorais

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 7 de dezembro

O comerciante que quando pega um freguês distraído lhe vende cem gramas dizendo que são duzentos é sem dúvida um vigarista, mas não tão perverso quanto aquele que altera a balança para que sempre os cem gramas pareçam duzentos.

Do mesmo modo, os crimes e pecados, em qualquer quantidade que seja, nunca são tão graves quanto a deformação do próprio senso moral. Nenhuma anormalidade é tão temível quanto corrupção da norma.

A alma honesta odeia o mal por amor ao bem. A mente estragada odeia determinados males em nome de outros ainda maiores. A diferença aparece no julgamento escalar da relatividade dos males, que no primeiro caso é  baseada na hierarquia objetiva dos valores ameaçados, no segundo é irracional, dependente de interesses egoístas e voltado, em última análise, à dissolução da própria hierarquia de valores.

O Brasil espuma de ódio ao mal, mas em nome de um senso moral corrompido que fomenta a proliferação de males cada vez maiores.

O sintoma mais evidente dessa perversão é que o povo odeia mais os ladrões e trapaceiros vulgares do que os assassinos e narcotraficantes, colocando o dinheiro acima da vida humana.

Um país onde ocorrem cinqüenta mil homicídios por ano não tem nenhum problema mais grave e urgente do que a violência criminosa. A mortalidade equivalente a uma guerra do Iraque por ano, em tempo de paz, é uma anomalia recente que brada aos céus, enquanto a corrupção dos políticos é doença crônica que remonta aos tempos do Brasil-Colônia.

Pode-se tolerar um governo que roube, mas não um governo que, diante do morticínio crescente, atenua as penas para os crimes hediondos, zela pelos direitos humanos dos bandidos mais que pelos das suas vítimas, premia velhos atos de terrorismo e, para cúmulo, mantém boas relações com a mais perigosa quadrilha de narcotraficantes do continente.

O sr. Lula gaba-se de haver mandado prender tais ou quais quadrilheiros. Ora, o que seu governo faz é perseguir traficantes menores, ao mesmo tempo que representantes da alta administração federal e outros membros importantes do seu partido publicam uma revista em parceria com as Farc (América Libre), defendendo objetivos comuns.

A oposição, por sua vez, denuncia mensalões e valdomiragens diversas, mas não diz uma palavra contra essa amizade macabra. A única vez que alguém reclamou quanto a esse ponto foi quando surgiu uma suspeita de financiamento ilegal da narcoguerrilha colombiana à campanha do PT.

Ora, as Farc matam, seqüestram, distribuem cocaína até na porta das escolas e adestram os bandidos locais para que espalhem o terror nas ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Mas, no consenso geral da oposição e da mídia, o PT viver aos beijinhos com essa gente não é grave, enquanto nenhum petista levar dinheiro por isso.

O critério moral subjacente é claro: matar brasileiros é banalidade, mas brincar com dinheiro é crime hediondo. Cinqüenta mil vidas ceifadas por ano são apenas uma incomodidade rotineira, mas cinco milhões de dólares por baixo do pano são um escândalo insuportável.

Entendem por que a oposição está tão desmoralizada? O discurso dela é tão falso quanto o do governo. Entre dois engodos, o eleitorado simplesmente prefere, como diria o próprio sr.  Lula, não trocar o certo pelo duvidoso.

A própria mídia, quando seus representantes apanham de militantes do PT, só colhe o que plantou. Quem aceita tratar o confronto entre a lei e o crime como se fosse apenas uma disputa eleitoral já deu, só com isso, toda autoridade e dignidade ao criminoso. Não pode querer que, em seguida, ele o trate com respeito e deferência. Quem pede tapa na cara não pode esperar afagos.

O pior é que esse julgamento viciado já corrompeu a mente do próprio povo. Em todos os ambientes, em todas as conversas o morticínio anual de brasileiros suscita menos escândalo, menos indignação do que qualquer mordida mais forte dos políticos vorazes no “nosso dinheiro”. Dize-me o que mais prezas, e eu te direi quem és.

Valei-me, Alborghetti!

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio (editorial), 1o de setembro de 2006

No momento em que escrevo, domingo à tarde, ainda não sei se amanhã o pedido de impeachment presidencial apresentado pela empresária paulista Ana Prudente será lido da tribuna da Câmara, como exige a lei, ou será encoberto por densas camadas de silêncio e desconversa, como já se tornou de praxe. É o empreendimento mais sério e corajoso que já se tentou para acabar com a orgia petista (macheza, no Brasil de hoje, só de saias), mas não creio que chegue a tocar a sensibilidade moral dos parlamentares, que não têm moral nenhuma e são sensíveis como uma casca de tartaruga empalhada. Caso venha a ser lido, provavelmente será abafado na mídia. Já nada espero, da quase totalidade das nossas lideranças políticas, militares, jornalísticas ou empresariais (não falo das intelectuais porque não existem) senão atitudes cada vez mais covardes e cínicas, numa progressão geométrica de abjeções jamais vista em parte alguma ao longo de toda a História da sem-vergonhice universal.

O povo não apenas consente em tudo, mas quase infalivelmente dará sua aprovação ostensiva ao estado de coisas, reelegendo essa criatura mentalmente disforme e fisicamente desprezível cujo traseiro ocupa a vaga que um dia foi de Juscelino Kubitscheck e Humberto Castelo Branco.

Os brasileiros desceram tanto que já não têm a medida de quanto se tornaram mesquinhos, torpes, miseráveis. Têm até o desplante de achar que são normais, que o restante da humanidade é igual a eles.

A sujeira em que se meteram é tão funda, que já não sabem onde foi parar a superfície. Ouvem falar do dia claro e acham que é propaganda imperialista. Ficam com medo da escuridão que eles próprios geraram e, para fugir dela, fecham os olhos. O Pythecanthropus erectus já havia descoberto que isso não funciona, mas esse conhecimento, no Brasil de hoje, tornou-se um segredo esotérico só acessível a meia dúzia de iniciados.

A única linguagem na qual ainda cabe falar deste país e do povo que o habita é a do repórter policial Luiz Carlos Alborghetti, um tipo admirável mas, infelizmente para mim, inimitável (confira em http://www.youtube.com/results?search_query=Alborghetti&search=Search). Sei dizer palavrões, como ele, mas odeio gritar. Prefiro rosnar impropérios direto no ouvido dos destinatários, poupando de constrangimentos os circunstantes inocentes. Juro que, se encontrar por aqui algum ministro de Estado, deputado, senador, comandante militar, alto magistrado da Justiça ou o próprio sr. presidente, de preferência em alguma ocasião solene, na presença de autoridades americanas, puxarei o desgraçado a um canto e lhe lançarei em voz baixa, discreta, serena, educadíssima, insultos e maldições apocalípticas que nem mesmo existem na língua portuguesa e que inventarei especialmente para essa doce ocasião. Direi coisas tão horríveis que o próprio Alborghetti, se as ouvisse, coraria como donzela pudica.

Só não me sinto envergonhado de haver nascido no Brasil porque não tive a menor parcela de responsabilidade nesse infausto acontecimento. Meus antepassados portugueses e alemães, uns burros, achavam que estavam indo para a América.

Vacina contra a estupidez

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 23 de julho de 2006

Há anos tenho por hábito começar o meu Seminário de Filosofia transmitindo aos recém-chegados a noção dos graus de persuasão, que jazia esquecida nas obras lógicas de Aristóteles até que a desenterrei e a expus no meu livro Aristóteles em Nova Perspectiva, publicado pela Topbooks em 1998 e agora reeditado em grande estilo pela É-Realizações, de São Paulo. 

A idéia é simples e poderosa. O que quer que você saiba, ou imagine saber, pode ser absolutamente certo, provável, verossímil ou meramente possível. Por exemplo, é absolutamente certo que você está lendo este artigo agora, é provável que chegue a compreendê-lo, é verossímil que receba dele um vigoroso estímulo intelectual e é meramente possível que, partindo desse empurrão inicial, você venha a se tornar um gênio.

A escala de persuasão depende da disponibilidade das evidências e do valor relativo das provas em cada caso.

A importância decisiva dessa noção provém do seguinte. Se você imagina saber que x é y, mas não consegue distinguir se isso é uma certeza, uma probabilidade, uma verossimilhança ou apenas uma possibilidade entre outras, você não sabe de maneira alguma se x é y ou não é. Não sabe sequer se acredita mesmo nisso. Está apenas falando por falar, esperando que a concordância do ouvinte dê um reforço postiço à sua impressão de saber aquilo que, de fato, você não sabe. Tal é a definição mesma do blefe intelectual, com o agravante de que muitos o praticam num tom de certeza infalível que praticamente obriga o interlocutor a concordar, por medo de pagar mico. O vigarista intelectual finge segurança para poder receber em troca a aprovação que lhe permitirá, da próxima vez, fingir com mais segurança ainda. Muitas carreiras de escritores, de professores, de jornalistas foram construídas inteiramente sobre esse alicerce de geléia.

Saber não é acreditar, não é sentir convicção, muito menos fingir que sente. É estar capacitado a avaliar e julgar aquilo em que se acredita, em comparação com outras crenças alternativas – o que supõe que ao menos uma vez na vida você examinou essas alternativas fazendo abstração da sua crença pessoal e as classificou segundo a escala de persuasão. Isso é impossível quando os jovens são estimulados a aderir rapidamente às crenças dominantes do meio escolar e a apoiar-se no sentimento coletivo de certeza para fazer-se de superiores a quem tenha outra opinião qualquer. O que hoje em dia se chama educação é, na quase totalidade dos casos, um adestramento psicológico na arte de camuflar a temerosa insegurança do intelecto juvenil por trás do blefe arrogante. Estudantes que passem por esse tratamento estão arruinados intelectualmente, mas prontos a odiar quem seus professores os mandarem odiar.

A única vacina possível contra essa destruição da capacidade de discernimento foi inventada por Aristóteles vinte e quatro séculos atrás. Ela consiste em treinar o estudante para discernir, primeiro nas suas próprias crenças, depois nos conhecimentos adquiridos da escola, por fim nas idéias em circulação no meio intelectual em torno, os motivos de credibilidade e respectivos graus de persuasão. Há critérios bem estabelecidos para isso, e o próprio Aristóteles os expôs com uma precisão formidável, o que me permitiu extrair deles a técnica pedagógica do Seminário. Mas, como nas várias turmas em que lecionei em quatro Estados brasileiros jamais pude dar mais de uma aula por mês, tive de me limitar sempre a ensinar o esquema geral da técnica e a implorar que os alunos a praticassem em casa, sem poder supervisionar pessoalmente os exercícios.

Por isso recebi com enorme satisfação, à distância em que estou, a notícia de que meu aluno Carlos Vargas e meu filho Luiz Gonzaga de Carvalho Neto, dois dos sujeitos mais inteligentes que já conheci, ambos atualmente lecionando filosofia para adolescentes em Curitiba, adotaram em seus cursos a prática dos graus de persuasão. Não creio que o meu experimento ou o deles chegue um dia a se espalhar — como deveria — pelas escolas do Brasil, hoje mais ocupadas em produzir dizimistas para o PT do que em despertar inteligências. Mas creio que o deles, por se dirigir a alunos mais jovens e ter tempo para exercícios repetidos, pode ir muito adiante do meu. O país não aprenderá nada com isso, mas algumas dezenas de brasileiros terão a oportunidade de tomar posse efetiva da inteligência que Deus lhes deu, antes que o Ministério da Educação consiga impedi-los.

Veja todos os arquivos por ano