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Os números e o milagre

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 8 de junho de 2006

Desde ontem, ecoam por toda parte os belos discursos contra a invasão da Câmara Federal. Com uma ou outra exceção irrelevante, sua tônica é uniforme: dão a impressão de que essa truculência, como todas as anteriores, foi um susto passageiro, um abuso fortuito incapaz de abalar no mais mínimo que seja a tranqüilizante rotina democrática em que vivemos. Está tudo sob controle: temos um presidente amante da ordem, nossas instituições são estáveis e as Forças Armadas, é claro, estão vigilantes.

Não vou discutir com quem diz que acredita nisso. Peço apenas ao leitor que atente para o aspecto aritmético da questão. Some a militância do PT, do MST e MLST, da CUT, do PCC e das demais facções da esquerda revolucionária (assim denomino as que estão afinadas com a estratégia continental do Foro de São Paulo). São uns quarenta milhões de pessoas. Não incluo aí simpatizantes, burros de presépio e meros eleitores. Conto apenas os militantes, gente doutrinada, adestrada, disciplinada, disposta a tudo. São a quarta parte da população brasileira. Nem me pergunto quantos deles estão armados, prontos para matar. Mesmo que tivessem apenas estilingues, restaria este dado brutal: nunca houve, na história do mundo, uma organização revolucionária dessas dimensões. Muito menos pergunto quanto custou: não consigo somar os lucros do narcotráfico e dos seqüestros, a hemorragia crônica de verbas federais, os dízimos da militância e as contribuições de fundações estrangeiras bilionárias. O total é impensável. Você acha realmente que alguém constrói uma monstruosidade dessas para não fazer nada com ela além de cumprir as leis e ser bom menino? O futuro do Brasil está decidido, de maneira praticamente irreversível, por um fato aritmético de envergadura majestosa e potência avassaladora.

Esses números, aliás, não são uma quantidade informe, distribuída a esmo no espaço. Há entre eles toda uma rede de conexões. Eles formam uma equação bem definida, um mapa, um organograma completo. Sempre que uma das entidades que mencionei acima entra em ação, é em parceria com as outras. O PCC espalha o terror por meio de técnicas que aprendeu com o MST, que as absorveu das Farc, cujos líderes são íntimos da cúpula petista e do sr. presidente da República. O Comando Vermelho, para produzir efeito idêntico no Rio, usou o que aprendeu direto da elite esquerdista que hoje governa o país. Quando um agente das Farc é preso logo depois de declarar que deu dinheiro do narcotráfico ao PT, mais que depressa essa elite se mobiliza para mandá-lo ao exterior. Idêntica iniciativa surge da mesma fonte para libertar os mestres-seqüestradores do MIR chileno que pegaram Abílio Diniz e Washington Olivetto. E, quando o MLST entra na Câmara depredando tudo e esmagando crânios, quem está no seu comando é um membro da Comissão Executiva Nacional do PT. Não há ações isoladas. Distribuídos sob denominações diversas, quarenta milhões de fanáticos estão perfeitamente articulados, solidários, na afinação diabolicamente eficiente de uma orquestra da destruição.

Na época das CPIs, bastava aparecer uma ligação telefônica entre um empreiteiro e algum deputadinho corrupto para o PT sair gritando: “É uma conspiração! É um Estado dentro do Estado!” Diante de indícios imensuravelmente maiores e mais probantes, a nação ainda se recusa a conceber, mesmo de longe, uma hipótese semelhante para explicar o que acontece hoje, embora não haja nenhuma outra explicação plausível, exceto a aposta louca no prodígio das meras coincidências repetidas em série. É que hoje não há um Estado dentro do Estado. Há um Estado acima do Estado, impondo o caos e chamando-o de “ordem”. Nessas circunstâncias, parece sensato abolir a aritmética, a álgebra, a razão inteira, e apegar-se à esperança de um milagre. Mas o único santo milagreiro à disposição é São Lulinha, e o único milagre que ele sabe fazer é precisamente o que já está fazendo.

O Estado covarde

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio (editorial), 21 de fevereiro de 2006

Uma coisa espantosa no Brasil de hoje é a candura, a inocência pueril ou mongolóide com que, num país onde ocorrem 50 mil homicídios por ano, as pessoas se acomodam à violência como uma fatalidade inevitável , dizendo de si para si que aquilo que não tem remédio remediado está, e saem buscando soluções para outros problemas em volta.

Digo cinqüenta mil porque é a estatística oficial da ONU. Segundo o repórter espanhol Luís Mir são 150 mil. Mas, se fossem cinqüenta mil, já seria o equivalente a três guerras do Iraque por ano, em tempo de paz.

Quem pode fazer a economia render, ampliar o mercado de empregos, aumentar a produção de bens, melhorar a distribuição, numa sociedade onde ninguém tem o mínimo de segurança física para saber se vai voltar vivo do trabalho? Quem pode pensar em educação, saúde, habitação, vestuário, se está sob ameaça de morte 24 horas por dia?

Isso é tudo ilusão, besteira, desconversa. Sem segurança não há progresso, educação, saúde, nem coisa nenhuma. Todo mundo sabe disto e faz de conta que não sabe. Faz de conta porque tem medo de enfrentar o problema fundamental, e então sai brincando de resolver os problemas periféricos só para dar “a si mesmo ou à platéia” a impressão de que está fazendo alguma coisa.

A taxa anual de homicídios no Brasil significa, pura e simplesmente, que não há ordem pública, não há lei nem direito, não há Estado, não há administração, há apenas um esquema estatal de dar emprego para vagabundos, sanguessugas, farsantes. O Estado brasileiro é uma instituição de auto-ajuda dos incapazes. E você, brasileiro, paga. Paga a pantomima toda. Paga para o sr. Gilberto Gil fazer de conta que é culto, paga para o sr. Nelson Jobim fazer de conta que é honesto, até para o sr. Lula da Silva fazer de conta que preside alguma coisa.

O Brasil, na verdade, só tem dois problemas: a insegurança geral e a inépcia da classe dirigente. O primeiro não deixa ninguém viver e o segundo anestesia a galera para que não ligue e trate de pensar em outra coisa.

Desaparecidos esses dois problemas, a sociedade encontraria sozinha as soluções dos demais, sem precisar da ajuda de governo nenhum. A sociedade pode perfeitamente criar e distribuir riqueza, dar educação às crianças, encontrar meios de que todos tenham uma renda decente, moradia, saúde, assistência na velhice.

O que a sociedade não pode é garantir a ordem pública pela força das armas e educar os governantes para que governem. Isso tem de vir do Estado. Mas o Estado, justamente para não ter de fazer o que lhe compete, prefere se meter em todo o mais. É o Estado educador, o Estado médico, o Estado assistente social, o Estado onissapiente. Só não é o Estado-Estado. Só não é o que tem de ser.

É o Estado que tem cada vez mais poder sobre os cidadãos e menos poder contra os inimigos do cidadão. É o Estado santarrão, pomposo, grandiloqüente e covarde.

Não é caso para rir

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 15 de dezembro de 2005

Quando os dogmas politicamente corretos entraram em circulação no Brasil, a reação das pessoas sensatas foi rir. Nada mais justo. Mas em seguida impugnavam como paranóia qualquer insinuação de que houvesse ali algum perigo real. Mostravam, com isso, não ser tão sensatas quanto pareciam. E acabavam provando ser definitivamente idiotas quando, diante das provas de que aquela mutação lingüística era uma arma de dominação cultural concebida com requintes de maquiavelismo, ficavam tão perturbadas que disfarçavam o medo fingindo indiferença superior.

Modas lingüísticas, mesmo ridículas, disseminam e consolidam sentimentos, reações, automatismos. Dão um ar de naturalidade à aceitação forçada de novos critérios do bem e do mal, da verdade e do erro. Passada uma geração, o ridículo tranfigura-se em leis e instituições — e pune com severidade quem não o levar mortalmente a sério.

Querem um exemplo?

Ao proibir a circulação do livro “Orixás, Caboclos e Guias”, do bispo Edir Macedo, o desembargador Souza Prudente, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, diz que a obra, por chamar de demônios as entidades cultuadas na umbanda e no candomblé, “incita a segregação religiosa e a intolerância às religiões afro-brasileiras”.

“A liberdade de expressão — prossegue o meritíssimo — não se revela em termos absolutos, como garantia constitucional, mas deve ser exercida nos limites do princípio da proporcionalidade…”

O que ele está dizendo é que o simples ato de falar contra uma religião atenta contra o direito fundamental de segui-la. Mas é óbvio que a liberdade de seguir qualquer religião implica, essencial e incontornavelmente, o direito de não gostar das outras e de falar contra elas. E a liberdade de ser ateu ou agnóstico implica o direito de falar contra todas de uma vez. Suprimir esse direito é suprimir aquela liberdade. Suprimi-lo em nome dela, como o faz o dr. Souza Prudente, é a apoteose do nonsense. É o ridículo politicamente correto transmutado em imposição judicial.

A Constituição, por sua vez (art. 220), não coloca nenhum limite ao exercício da liberdade de expressão, muito menos em nome de algum “princípio de proporcionalidade”. Fala-se em proporcionalidade quando o direito de um está condicionado ao exercício do mesmo direito por outro. Por exemplo, o direito a certos bens de uso comum: se você se pendura num telefone público o dia inteiro, está impedindo os outros de usá-lo. Mas é impossível que o simples exercício da liberdade de expressão por um indivíduo ou grupo impeça os outros de se entregarem ao mesmo exercício. Que um sujeito diga “a” ou “b” não constitui jamais obstáculo a que outro diga “c” ou “d”. Que um cristão publique um livro contra a religião alheia não impede que se publiquem livros contra o cristianismo, como aliás se publicam aos milhares, e violentíssimos, sem que isso aparentemente magoe a delicada sensibilidade jurídica do dr. Souza Prudente, ou Imprudente.

Se a liberdade de expressão não tem como ser frustrada pela disseminação do seu próprio exercício, mas sim somente desde fora, por um fator heterogêneo como a ameaça de agressão, a chantagem moral ou um abuso de autoridade, é evidente que sua garantia constitucional não é “proporcional”, mas absoluta e incondicional, ressalvadas as exceções expressas da lei penal, que jamais pune esse exercício enquanto tal mas apenas o seu uso para finalidades ilícitas. Se o conteúdo de “Orixás, Caboclos e Guias” fosse criminoso, o dr. Souza Prudente puniria o seu autor pelo crime correspondente. Não podendo acusá-lo de crime, jogou contra ele um princípio descabido e, não contente com isso, ainda aboliu uma garantia constitucional explícita.

Não sei se ele fez isso porque tem a capacidade analítica embotada ou porque quer embotar a nossa. Em qualquer dos dois casos, é politicamente correto. Com o tempo, todos os juízes ficarão assim. Risos e afetações de superioridade não livrarão ninguém da tirania imposta em nome da liberdade.

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