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A direita que a esquerda quer

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 1 de junho de 2009

Entre outros resultados interessantes que deixarei para comentar outro dia, o estudo dos cientistas políticos Timothy Power e César Zucco, publicado na Latin American Research Review sob o título “Estimating Ideology of Brazilian Legislative Parties, 1990-2005” (v. http://www.iuperj.br/site/czucco/czucco_files/paperlarr.pdf), mostra que, enquanto os parlamentares tidos por seus adversários como “de direita” evitam colocar-se sob esse rótulo, os de esquerda, centro-esquerda e centro se autodefinem até como mais esquerdistas do que a posição nominal dos seus partidos deixaria suspeitar.

Esse fato não era desconhecido antes da pesquisa, mas adquire com ela uma certa visibilidade cientifica que tornará mais difícil, doravante, menosprezar-lhe a importância.

As conclusões óbvias que ele impõe, e que os autores do estudo evitam declarar, já que elas transcendem os limites imediatos do que se propuseram investigar, são as seguintes:

1. A esquerda tem o domínio quase absoluto dos mecanismos culturais de estímulo e inibição vigentes nas altas esferas, demarcando a seu belprazer a fronteira entre a decência e a indecência, o orgulho e a vergonha, o mérito e a culpa. Os direitistas apressam-se em submeter-se a essa autoridade moral monopolística, não com passividade e indiferença, mas com uma verdadeira ânsia de ser aprovados por seus adversários.

2. Abdicando de todo critério moral próprio, a direita exclui-se, automaticamente, de qualquer possibilidade de combate na esfera cultural e psicológica, deixando o país à mercê da hegemonia gramsciana e limitando-se à disputa de cargos (o que implica ainda mais subserviência à facção dominante), ou então à discussão de miudezas econômico-administrativas sem nenhum alcance estratégico. O presidente da República disse uma verdade flagrante ao afirmar que os partidos de oposição não têm perspectiva de poder. Eu diria até que ele foi caridoso nesse julgamento: aos partidos de direita não falta só a perspectiva de poder, falta até mesmo a compreensão elementar do que seja o poder, que eles confundem com “cargos”. Imaginar que, com cargos ou sem cargos, seja possível conquistar o poder abdicando da hegemonia, é coisa de uma ignorância tão patética que, mesmo entre os esquerdistas mais empedernidos, deve arrancar lágrimas de comiseração ante adversário tão despreparado e inerme.

3. Mais que definir as regras do jogo, a esquerda cria até mesmo a identidade do adversário, colocando na “direita” quem assim lhe interesse catalogar no momento, passando por cima dos protestos subjetivos do catalogado e ignorando com frieza de femme fatale os afagos e juras de amor com que ele tenta cavar um lugarzinho no grêmio das pessoas decentes, isto é, esquerdistas.

4. O rigor do critério de seleção para o ingresso no círculo dos bons é tão implacável, tão inflexível, que a honra suprema do esquerdismo é negada até a velhos, tarimbados e fiéis militantes de esquerda, tão logo eles cometam a imprudência de entrar num partido que a esquerda, conforme seus interesses do momento, tenha rotulado como de direita.

Pela milésima ou enésima vez, a realidade dos fatos confirma a obviedade proibida: não há política de direita sem uma moral de direita, sem uma filosofia de direita, sem uma cultura de direita, isto é, sem tudo aquilo de que a nossa direita foge esbaforida, como se foge da peste.

Ainda os filósofos

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 27 de maio de 2009

Expressar a experiência real em palavras é um desafio temível até para grandes escritores. Tão séria é essa dificuldade que para vencê-la foi preciso inventar toda uma gama de gêneros literários, dos quais cada um suprime partes da experiência para realçar as partes restantes. Se, por exemplo, você é Balzac ou Dostoiévski, você encadeia os fatos em ordem narrativa, mas, para que a narrativa seja legível, tem de abdicar dos recursos poéticos que permitiriam expressar toda a riqueza e confusão dos sentimentos envolvidos. Se, em contrapartida, você é Arthur Rimbaud ou Giuseppe Ungaretti, pode comprimir essa riqueza nuns poucos versos, mas eles não terão a inteligibilidade imediata da narrativa.

Essas observações bastam para mostrar que as idéias e crenças surgidas nas discussões públicas e privadas raramente se formam da experiência, pelo menos da experiência pessoal direta. Elas vêm de esquemas verbais prontos, recebidos do ambiente cultural, e formam, em cima da experiência pessoal, um condensado de frases feitas bastante desligado da vida. Se vocês lerem com atenção os diálogos socráticos, verão que a principal ocupação do fundador da tradição filosófica ocidental era dissolver esses compactados verbais, forçando seus interlocutores a raciocinar desde a experiência real, isto é, a falar daquilo que conheciam em vez de repetir o que tinham ouvido dizer. O problema é que, se você repete uma ou duas vezes aquilo que ouviu dizer, não apenas você passa a considerá-lo seu, mas se identifica e se apega àquele fetiche verbal como se fosse um tesouro, uma tábua de salvação ou o símbolo sacrossanto de uma verdade divina.

Para piorar as coisas, as frases feitas vêm muito bem feitas, em linguagem culta e prestigiosa, ao passo que a experiência pessoal, pelas dificuldades acima apontadas, mal consegue se expressar num tatibitate grosseiro e pueril. Há nisso um motivo dos mais sérios para que as pessoas prefiram antes falar elegantemente do que ignoram do que expor-se ao vexame de dizer com palavras ingênuas aquilo que sabem. Um dos resultados dessa hipocrisia quase obrigatória é que, de tanto alimentar-se de símbolos verbais sem substância de vida, a inteligência acaba por descrer de si mesma em segredo ou mesmo por proclamar abertamente a impossibilidade de conhecer a verdade. Como essa impossibilidade, por sua vez, é também um símbolo prestigioso nos dias que correm, ela serve de último e invencível pretexto para a fuga à única atividade mental frutífera, que é a busca da verdade na experiência real.

A própria palavra “experiência” já costuma vir carregada de uma nuance enganosa, pois se refere em geral a “fatos científicos” recortados a partir de métodos convencionais, que encobrem e acabam por substituir a experiência pessoal direta. Nessas condições, a discussão pública ou privada torna-se uma troca de estereótipos nos quais, no fundo, nenhum dos participantes acredita. É esse o sentido da expressão popular “conversa fiada”: o falante compra fiado a atenção dos outros – ou a sua própria – e não paga com palavras substantivas o tempo despendido. (Sempre achei uma injustiça que as leis punissem os delitos pecuniários, mas não o roubo de tempo. O dinheiro perdido pode-se ganhar de novo – o tempo, jamais.)

De Sócrates até hoje, a filosofia desenvolveu uma infinidade de técnicas para furar o balão da conversa estereotipada e trazer os dialogantes de volta à realidade. Zu den Sachen selbst – “ir às coisas mesmas” –, a divisa do grande Edmund Husserl, permanece a mensagem mais urgente da filosofia depois de vinte e quatro séculos. Ninguém mais que o próprio Husserl esteve consciente dos obstáculos lingüísticos e psicológicos que se opunham à realização do seu apelo. Todo o vocabulário técnico da filosofia – e o de Husserl é dos mais pesados – não se destina senão a abrir um caminho de volta desde as ilusões da classe letrada até à experiência efetiva. A conquista desse vocabulário pode ser ela própria uma dificuldade temível, mas decerto não tão temível quanto os riscos de ficar discutindo palavras vazias enquanto o mundo desaba à nossa volta. Ao incorporar-se à cultura ambiente como atividade academicamente respeitável, a própria filosofia tende a perder sua força originária de atividade esclarecedora e a tornar-se mais uma pedra no muro de artificialismos que se ergue entre pensamento e realidade.

A liberdade como serva da tirania

Olavo de Carvalho+

Diário do Comércio, 25 de maio de 2009

Há pelo menos quarenta anos o debate político neste país gira em torno da escolha entre livre mercado e intervencionismo estatal, identificados respectivamente com a “direita” e a “esquerda” e incumbidos de definir automaticamente, a partir dessa base econômica, as demais alternativas humanas em todos os campos da cultura, da legislação, da moralidade, etc. Quando alguém se define como “liberal”, é portanto automaticamente classificado entre os direitistas, conservadores e reacionários, tornando-se, em contrapartida, socialista, progressista e revolucionário tão logo mude para o campo do intervencionismo estatal. Os ícones das facções respectivas são Roberto Campos e Celso Furtado.

Quando outros fatores – de ordem moral, cultural, geopolítica ou militar – intervêm na disputa, complicando o quadro e privando o distinto público dos confortos do esquematismo primário, a única reação do cérebro nacional é tentar recuperar às pressas seu estado de equilíbrio homeostático mediante a proclamação de que a esquerda e a direita não existem mais, de que o mundo entrou numa fase de unanimismo paradisíaco e de que, em suma, não há mais nada a discutir, exceto os nomes destinados a preencher os cargos na hierarquia da paz universal.

Passando, assim, de um esquematismo bocó a outro mais bocó ainda, acreditam ter superado todo conflito ideológico e ascendido às alturas de um pragmatismo sublime, onde, extintas as paixões baixas, reina soberana a razão tecnocientífica, nada mais importando senão o cálculo objetivo de custos e benefícios.

Infelizmente, tudo isso são ilusões autolisonjeiras, destinadas a resguardar a mente humana de um confronto com as dolorosas complexidades do mundo real.

Desde logo, a escolha entre livre mercado e intervencionismo é uma coisa quando encarada como alternativa teórica, como modelo abstrato de sociedade ideal, e outra coisa completamente diversa quando inserida no quadro histórico e geopolítico concreto. A bandeira da liberdade econômica foi erguida, primeiro, contra os despotismos monárquicos. Naquela época ela se identificava com as forças da revolução. Um liberal estava mais próximo de um socialista que de um monarquista ultramontano. Mais tarde, com a ascensão dos totalitarismos estatistas russo e alemão, a liberdade de mercado tornou-se “reacionária”. Contra a ameaça socialista, os liberais davam agora a mão a seus inimigos de outrora, monarquistas e conservadores cristãos. Esta segunda forma adquirida pelo debate ideológico, que é aquela na qual ainda se baseia a distinção usual brasileira entre direita e esquerda, já foi de há muito absorvida e transcendida por uma terceira equação. O livre mercado tornou-se o pretexto com que as forças globalistas interessadas na construção de um governo mundial controlador e despótico vão minando as soberanias nacionais e induzindo povos inteiros a abdicar de todas as demais liberdades em troca do simples poder de comprar e vender. O argumento de que a liberdade econômica traz consigo todas as demais liberdades é aí usado como pretexto para produzir o resultado oposto: suprimir todas as liberdades exceto uma. Concomitantemente, essas mesmas forças globalistas dão apoio bilionário a todas as organizações esquerdistas e revolucionárias do mundo, para jogá-las contra os Estados nacionais, daí resultando que muitos adeptos do livre mercado, imaginando-se embora homens da “direita”, acabem se juntando à rebelião esquerdista contra os tradicionalismos morais e culturais, que para uns são obstáculos à revolução, para outros, entraves ao livre mercado. Unidos pelo apego a velhos estereótipos deslocados da situação presente, ambos não percebem que, em sua luta contra o Estado nacional, que uns odeiam como reacionário e os outros como intervencionista, só contribuem para que, sobre as ruínas de tantos Leviatãs menores, se erga o Grande Leviatã do Estado mundial.

O conflito ideológico não terminou. Apenas complicou-se formidavelmente. A luta entre a liberdade e a tirania assumiu novo formato, no qual os engenheiros da tirania, jogando com os símbolos convencionais do debate político, conseguiram colocar a seu serviço até mesmo os adeptos da liberdade.

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