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Geringonça hipnótica

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 7 de março de 2011

Os três agentes principais do processo globalizante, como vimos em artigo anterior, não são espécies do mesmo gênero: um é um grupo de governos, o outro uma comunidade internacional de bilionários, o terceiro uma cultura religiosa sem fronteiras, espalhada mesmo em território inimigo.

Só o primeiro pode ser descrito nos termos usuais da geopolítica, mas, na medida em que o projeto do Império Russo se amplia em “Império Eurasiano”, toda tentativa de defini-lo geopoliticamente esbarra em obstáculos intransponíveis. Uma vez que o domínio eurasiano abrange também o Islam, chega a ser cômico que o grande estrategista russo Alexandre Duguin apresente a disputa de poder no mundo como uma luta entre “impérios terrestres” e “impérios marítimos”, classificando a “Eurásia” entre os primeiros e os EUA no segundo grupo. De um lado, o Islam, após ocupar com grande facilidade os seus territórios circunvizinhos, alcançou projeção mundial sobretudo como potência maritima. Já na segunda metade do século IX – escreve Paolo Taufer no seu magnífico estudo sobre Espansionismo Islamico Ieri e Oggi – “todas as grandes vias marítimas eram controladas de fato pelos muçulmanos: do Estreito de Gibraltar até o Mar da China, dos portos do Egito que se comunicam com o Mar Vermelho até os da Síria.” Quanto à própria Rússia (então URSS), seu poder no século XX baseou-se menos na força dos seus exércitos que na presença ativa do Partido Comunista e do serviço secreto soviético em todas as nações e continentes. Nada houve de “terrestre” na expansão tentacular do Kremlin na África ou na América Latina. Não posso crer que os soldados de Nikita Kruchev tenham trazido a pé os mísseis que instalaram em Cuba em 1962. O combate entre a Terra e o Mar não vale nem como símbolo, já que um símbolo só funciona quando traz embutida, sinteticamente, uma multidão de fatos reais, não de ficções. O Império Eurasiano não é um símbolo, é um mito soreliano – o que é o mesmo que dizer: uma imensa cenoura-de-burro, uma geringonça hipnótica concebida para colocar milhões de idiotas no encalço de um futuro que não será jamais o que promete.

Se a missão do intelectual em tempos obscuros é dar nome aos bois, exorcizar as palavras ocas e trocar os slogans estupefacientes por uma representação exata do estado de coisas, os “eurasianos” falham miseravelmente em cumprir seu dever. Só o que podem alegar como atenuante é que os estrategistas dos dois outros blocos globalizantes também se notabilizam menos pelo realismo do que pela capacidade prodigiosa de encobrir o mundo sob a imagem projetiva de seus respectivos interesses.

A liberdade como serva da tirania

Olavo de Carvalho+

Diário do Comércio, 25 de maio de 2009

Há pelo menos quarenta anos o debate político neste país gira em torno da escolha entre livre mercado e intervencionismo estatal, identificados respectivamente com a “direita” e a “esquerda” e incumbidos de definir automaticamente, a partir dessa base econômica, as demais alternativas humanas em todos os campos da cultura, da legislação, da moralidade, etc. Quando alguém se define como “liberal”, é portanto automaticamente classificado entre os direitistas, conservadores e reacionários, tornando-se, em contrapartida, socialista, progressista e revolucionário tão logo mude para o campo do intervencionismo estatal. Os ícones das facções respectivas são Roberto Campos e Celso Furtado.

Quando outros fatores – de ordem moral, cultural, geopolítica ou militar – intervêm na disputa, complicando o quadro e privando o distinto público dos confortos do esquematismo primário, a única reação do cérebro nacional é tentar recuperar às pressas seu estado de equilíbrio homeostático mediante a proclamação de que a esquerda e a direita não existem mais, de que o mundo entrou numa fase de unanimismo paradisíaco e de que, em suma, não há mais nada a discutir, exceto os nomes destinados a preencher os cargos na hierarquia da paz universal.

Passando, assim, de um esquematismo bocó a outro mais bocó ainda, acreditam ter superado todo conflito ideológico e ascendido às alturas de um pragmatismo sublime, onde, extintas as paixões baixas, reina soberana a razão tecnocientífica, nada mais importando senão o cálculo objetivo de custos e benefícios.

Infelizmente, tudo isso são ilusões autolisonjeiras, destinadas a resguardar a mente humana de um confronto com as dolorosas complexidades do mundo real.

Desde logo, a escolha entre livre mercado e intervencionismo é uma coisa quando encarada como alternativa teórica, como modelo abstrato de sociedade ideal, e outra coisa completamente diversa quando inserida no quadro histórico e geopolítico concreto. A bandeira da liberdade econômica foi erguida, primeiro, contra os despotismos monárquicos. Naquela época ela se identificava com as forças da revolução. Um liberal estava mais próximo de um socialista que de um monarquista ultramontano. Mais tarde, com a ascensão dos totalitarismos estatistas russo e alemão, a liberdade de mercado tornou-se “reacionária”. Contra a ameaça socialista, os liberais davam agora a mão a seus inimigos de outrora, monarquistas e conservadores cristãos. Esta segunda forma adquirida pelo debate ideológico, que é aquela na qual ainda se baseia a distinção usual brasileira entre direita e esquerda, já foi de há muito absorvida e transcendida por uma terceira equação. O livre mercado tornou-se o pretexto com que as forças globalistas interessadas na construção de um governo mundial controlador e despótico vão minando as soberanias nacionais e induzindo povos inteiros a abdicar de todas as demais liberdades em troca do simples poder de comprar e vender. O argumento de que a liberdade econômica traz consigo todas as demais liberdades é aí usado como pretexto para produzir o resultado oposto: suprimir todas as liberdades exceto uma. Concomitantemente, essas mesmas forças globalistas dão apoio bilionário a todas as organizações esquerdistas e revolucionárias do mundo, para jogá-las contra os Estados nacionais, daí resultando que muitos adeptos do livre mercado, imaginando-se embora homens da “direita”, acabem se juntando à rebelião esquerdista contra os tradicionalismos morais e culturais, que para uns são obstáculos à revolução, para outros, entraves ao livre mercado. Unidos pelo apego a velhos estereótipos deslocados da situação presente, ambos não percebem que, em sua luta contra o Estado nacional, que uns odeiam como reacionário e os outros como intervencionista, só contribuem para que, sobre as ruínas de tantos Leviatãs menores, se erga o Grande Leviatã do Estado mundial.

O conflito ideológico não terminou. Apenas complicou-se formidavelmente. A luta entre a liberdade e a tirania assumiu novo formato, no qual os engenheiros da tirania, jogando com os símbolos convencionais do debate político, conseguiram colocar a seu serviço até mesmo os adeptos da liberdade.

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