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O cume do progresso humano

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 04 de fevereiro de 2008

Freud costumava dizer que a história da mente ocidental tinha sido marcada por três derrotas humilhantes impostas sucessivamente às presunções do ego humano: primeiro, Copérnico demonstrara que o planeta que habitamos não é o centro do universo; depois, Darwin ensinara que o homem não é um ente superior, mas apenas um animal entre outros; por fim, o próprio Freud trazia a prova de que a consciência individual não é sequer a dona de si própria, mas o joguete de forças inconscientes.

A idéia do progresso do conhecimento como uma troca de ilusões grandiosas por verdades cada vez mais deprimentes impregnou-se tão profundamente na cosmovisão das classes letradas, que outros episódios da história das idéias foram interpretados de acordo com ela, quase que por automatismo. Entre Copérnico e Darwin, Newton e Galileu haviam ensinado que nossas impressões do mundo sensível são subjetivas e enganosas, só as quantidades mensuráveis podendo ser objeto de conhecimento certo, e Kant demonstrara a impossibilidade de saber algo de positivo sobre Deus e a imortalidade da alma. Entre Darwin e Freud, Marx evidenciara que a própria história das idéias não é senão a exteriorização aparente de interesses econômicos camuflados, Comte oficializara a proibição de perguntar sobre aquilo que não podemos conhecer pelos métodos da ciência newtoniana, e por fim um contemporâneo de Freud, Max Weber, tirara disso a mais letal das conseqüências: não só o bem e o mal são escolhas arbitrárias, mas o próprio conhecimento científico não é possível sem alguma escolha arbitrária inicial.

Nas décadas seguintes, o rebaixamento da espécie humana prosseguiu implacavelmente. O behaviorismo substituiu a noção mesma da “psique” por um conjunto de reflexos condicionados não muito diferentes dos que determinam a conduta de um rato ou, em última instância, de uma ameba. O estruturalismo e o desconstrucionismo aboliram a noção marxista do sentido da História como um resíduo das ilusões humanistas. A genética, a neurofisiologia, os modelos informáticos do cérebro e a psiquiatria de base farmacológica reduziram a nada as pretensões da própria psicologia freudiana. A ecologia mostrou o ser humano como um bicho mal comportado e destrutivo, prejudicial à natureza. Por fim, o filósofo Peter Singer promoveu os frangos e porcos a titulares de direitos humanos, em pé de igualdade até com uma criatura sublime como ele próprio.

Assim vieram caindo, uma a uma, as “ilusões narcísicas” — como as chamava Freud – de uma espécie animal que ousara se proclamar imagem e semelhança de Deus. A história das idéias científicas, vista sob esse aspecto, é uma história da humildade intelectual.

Mas aí há três problemas.

O primeiro é que nem todas as teorias incluídas nessa narrativa são igualmente verdadeiras. Galileu fez do Sol o centro do universo, e não só do sistema solar. Marx jurava que o capitalismo iria restringir o mercado, em vez de expandi-lo. O evolucionismo continua em estado de hipótese discutível. E a psicanálise se desmoralizou tanto que Lacan, para tentar salvá-la, teve de descobrir nela uma parte inconsciente e dizer que esta, e não aquela que Freud conhecia, era a genuína psicanálise. Não tem sentido equalizar verdades científicas, erros medonhos e fantasias idiotas como degraus ascendentes de uma escalada cognitiva.

Segundo problema: cada um dos degraus dessa pretensa escalada foi galgado à custa de alguma falsificação monstruosa dos dados históricos. O esquema usado foi sempre o mesmo: embutir à força, em alguma doutrina passada, significados totalmente estranhos à época em que foi enunciada e à mentalidade de seu autor.

Copérnico nunca imaginou que o heliocentrismo tirasse “o homem” do topo do universo criado. Esta interpretação foi inventada um século depois por Giordano Bruno. E, àqueles que pretendessem tirar daí alguma conclusão materialista, o próprio Bruno advertia: façam isso, e se tornarão estúpidos ao ponto de duvidar da sua própria existência (isto veio a acontecer literalmente quando o desconstrucionismo apregoou a “inexistência do sujeito”).

A doutrina darwiniana, ao colocar o ser humano no cume da evolução animal, não podia ao mesmo tempo rebaixá-lo ao nível de um bicho qualquer. A palavra mesma “evolução” exprime uma subida de nível, não uma descida. Isso deveria ser óbvio à primeira vista, mesmo sem a ajuda dos parágrafos finais de A Origem das Espécies , que celebram a ascensão evolutiva como uma obra divina de intelligent design (oh, horror!).

A doutrina freudiana, sim, parece rebaixar o ser humano, na medida em que reduz a consciência a um produto de fatores inconscientes. Mas, se a passagem para o nível autoconsciente resultava da destruição das ilusões narcísicas da infância, como poderia a destruição de mais uma ilusão ser um rebaixamento e não uma subida? O próprio Freud jamais desistiu da aposta em que o Ego terminaria por absorver e superar o Id, nisto consistindo, aliás, a promessa central da psicanálise. Ao falar de rebaixamento das pretensões humanas, Freud usou de uma figura de linguagem que enfatizava unilateralmente um só aspecto da sua própria obra, omitindo a compensação dialética da qual estava perfeitamente consciente. E fez o mesmo com os ensinamentos de Copérnico e Darwin para transformar os dois, à força, em precursores dele próprio.

Daí por diante, fazer história das idéias mediante analogias extemporâneas tornou-se moda universal, rebaixando a compreensão pública do passado a uma sucessão de fofocas de cortiço contra a dignidade humana. O resumo enciclopédico dessas fofocas constitui a visão histórica vigente, como um dogma de fé, nas cabeças de praticamente todos os nossos contemporâneos. Ela ressurge diariamente em editoriais de jornal, discursos parlamentares e redações de escola, com unanimidade global, e serve de argumento para justificar decisões políticas, econômicas e estratégicas, bem como para arbitrar discussões domésticas e dar aparência de coisa importante a teses universitárias sem pé nem cabeça.

O terceiro problema é que nenhuma daquelas descobertas alegadamente humilhantes tornou a intelectualidade mais humilde. Ao contrário: cada uma delas foi celebrada como uma vitória da razão e das luzes contra as trevas do passado, daí resultando efusões de orgulho cada vez mais demenciais e reivindicações de poder cada vez mais ilimitadas.

Copérnico e Newton serviram de argumento para os revolucionários de 1789 concentrarem mais poder em suas mãos do que qualquer tirano da antigüidade e matarem mais gente em um ano do que a Inquisição matara em três séculos.

O positivismo e o cientificismo deram nascimento a inumeráveis ditaduras iluminadas, algumas das quais entendiam a matança de padres, freiras e índios (especialmente cristianizados) como uma expressão superior da racionalidade humana.

O marxismo, não preciso nem falar. Quem não conhece o “Livro Negro do Comunismo”? Os feitos bárbaros que ele descreve seriam monumentos à humildade intelectual?

O behaviorismo e escolas psicológicas subseqüentes desenvolveram nos seus praticantes a ambição de moldar o comportamento alheio como se fosse um produto industrial. A ecologia reforçou essa ambição, criando projetos de controle global que determinam até o que você pode ou não pode comer e obrigam você a preencher uma pilha de formulários para colher um cacho de bananas.

Eric Voegelin chamava “historiogênese” a visão simbólica da história como um processo ascendente que, culminando na pessoa do narrador, fazia da sua época a suprema detentora do conhecimento humano. Inicialmente ele pensou que esse esquema fosse uma invenção da modernidade, mas depois descobriu que isso já existia no antigo Egito e na Mesopotâmia. A historiogênese é um cacoete mental deformante que reaparece em todas as épocas, graças à incoercível tendência do ser humano para fazer de si próprio o umbigo do universo.

A modernidade só acrescentou a isso o detalhe especialmente ridículo de que ela descreve a ascensão gloriosa que conduz até ela própria como um processo de autolimitação racional e humildade intelectual crescente. Com isso a concepção umbigocêntrica da história tornou-se caricatura de si própria, nisto consistindo a suprema glória intelectual dos tempos modernos.

A força do segredo

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 31 de janeiro de 2008

Na mesma semana em que o Foro de São Paulo é objeto de uma reportagem em Veja , Fidel Castro revela que a idéia de criá-lo não foi nem dele: foi do próprio Lula. Sim, coube a este, não ao ditador cubano ou ao seu colega da Venezuela, a glória macabra de salvar da extinção o movimento comunista na América Latina. E esse fato vem à tona quase no mesmo dia em que um importante líder empresarial, o sr. Emílio Odebrecht, tenta impingir a si próprio a balela anestésica de que “Lula nunca foi de esquerda”. A alienação da burguesia brasileira em relação ao estado de coisas no país é uma das maravilhas do universo, mas ela não teria sido possível sem o longo e persistente silêncio da “grande mídia” nacional quanto ao Foro de São Paulo.

A gigantesca engenharia de ocultações que sonegou ao público o conhecimento dos lances essenciais da história política da última década e meia é, por si mesma, um acontecimento inédito nos anais do jornalismo mundial, um fenômeno tão espetacular e tão criminoso quanto as atividades do próprio Foro.

Um dia a ciência histórica terá de sondar os mais baixos estratos da sordidez humana para explicar como foi possível tanta vileza, tanta abjeção, da parte daqueles que recebiam os melhores salários do jornalismo para abster-se de praticá-lo.

As conseqüências da sua omissão foram portentosas.

Consolidando numa estratégia de dimensões continentais a clássica articulação comunista dos meios de luta lícitos e ilícitos, o Foro de São Paulo é a mais vasta, a mais íntima, duradoura e bem sucedida parceria que já se viu entre a política e o crime na América Latina. Se a força dessa parceria não tivesse crescido em segredo, não teria crescido de maneira alguma: nem o Parlamento, nem a opinião pública, nem a Justiça, nem o empresariado, nem as Forças Armadas teriam tolerado ver o presidente da República cochichando pelos cantos com os comandantes das Farc e do Mir chileno. Muito provavelmente Lula não teria chegado aonde chegou, mas, se chegasse, não escaparia do impeachment à primeira notícia da sua condição de aliado e protetor máximo de assassinos, narcotraficantes e seqüestradores.

Se o eleitorado não tivesse sido reduzido à menoridade mental pelos autoconstituídos censores a serviço da boa imagem esquerdista, o partido beato, desmascarado antes de consolidar-se no poder, não teria podido montar um espetáculo de corrupção ante o qual o próprio P. C. Farias, se pudesse vê-lo do além, cairia pasmo de incredulidade.

Se o Foro de São Paulo tivesse sido denunciado em tempo, os comandantes das Farc não teriam podido transitar livremente pelo Brasil e ser recebidos como hóspedes de honra enquanto seus subordinados, discretamente, treinavam o PCC e o Comando Vermelho para matar brasileiros.

Se os fatos mais decisivos não tivessem se tornado invisíveis, não teríamos chegado ao recorde hediondo de 50 mil homicídios por ano.

Agora, que a notícia da sua existência foi publicada com dezessete anos de atraso, o poder do Foro de São Paulo já se tornou tão gigantesco, tão onipresente, que ninguém, no Parlamento, na Justiça, nas Forças Armadas ou seja lá onde for, terá os meios nem a coragem de reagir à altura, de fazer o que é preciso fazer ante esse fabuloso concurso de crimes.

Se já houve neste país motivo para uma CPI, é o Foro de São Paulo, mas quem, nas duas casas do Congresso, terá a hombridade de solicitá-la? E, na remota hipótese de que alguém a solicite, quantos não votarão para bloqueá-la, com ou sem o incentivo de uma nova edição do Mensalão?

Gillez, ou: A solução do enigma

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 29 de janeiro de 2008

A palavra que dá título a este artigo soa esquisita, mas não é marca de perfume francês nem de chocolate espanhol. É o nome secreto de um personagem bem conhecido. Festejado ao mesmo tempo no Foro de São Paulo por sua fidelidade inflexível ao comunismo e no Fórum Econômico Mundial pela sua adesão sinceríssima ao capitalismo, o nosso presidente da República é um Zellig ao contrário. Às avessas do célebre doente mental do filme de Woody Allen, não é ele que assume a aparência dos outros: são eles que o enxergam à sua própria imagem e semelhança. Ainda nesta semana os srs. Fidel Castro e Emílio Odebrecht provaram isso novamente, o primeiro confessando que a idéia do Foro de São Paulo não foi dele, foi de Lula; o segundo jurando que este último nunca foi nem mesmo de esquerda. Cada um vê nele o que bem entende, fazendo do caipirão de Garanhuns um enigma insolúvel, um mysterium tremendum .

Talvez contribua para a solução do enigma a verificação de que, o personagem sendo popularíssimo e não dizendo coisa com coisa, cada um está livre para usá-lo como imagem publicitária do seu partido, como rótulo da sua mercadoria. A imagem confortavelmente elástica daí resultante contribui para aumentar ainda mais a popularidade do cidadão, que cada um ama pelas razões que bem entende, só enxergando no amado aquilo que lhe convém e encobrindo os sinais contrários com aquela benevolência idiota dos corações apaixonados.

Talvez não seja de todo inútil lembrar a declaração do próprio Lula, de que não tem a menor idéia do tipo de socialismo que quer implantar no Brasil e no resto da América Latina. Sendo assim, só lhe resta criar as condições para que outros socialistas possam decidir isso no futuro. Para tanto ele precisa manter o capitalismo funcionando enquanto vai transferindo aos partidos e organizações de esquerda, lenta e metodicamente, o monopólio do poder político e da propaganda ideológica. Tal é a missão que esse homem escolheu, e tal é a definição mesma de “governo de transição”, que é o termo pelo qual ele próprio, com precisão exemplar, designa a sua passagem pela presidência da República. Com freqüência os governos de transição se atrapalham, tentando conciliar o inconciliável, mas o governo Lula escapou desse destino fazendo uma divisão rígida do território — a economia para os capitalistas, tudo o mais para os socialistas – e empenhando o melhor de si nas duas direções, sabendo que elas podem permanecer separadas até que chegue o dia de decidir, por fim, qual o bendito modelo de socialismo a ser adotado. Nesse dia, Lula, se não se encontrar irrevogavelmente falecido, alegará que está com Alzheimer e passará o abacaxi aos “cumpanhêro”. Até lá, poderá continuar servindo eficazmente a dois senhores, agradando igualmente a ambos.

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