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Digitais do Foro de São Paulo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 28 de janeiro de 2008

Nos documentos de fonte primária sobre o Foro de São Paulo, encontramos as seguintes informações:

1) Conforme afirmei desde o início, e contra todo o exército de achismos e desconversas, o Foro de São Paulo existe e é a coordenação estratégica do movimento comunista na América Latina (ver documento original em 3° Congresso do PT e comentário em O Manifesto Comunista do PT; outro documento original em Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no encerramento do Encontro de Governadores da Frente Norte do Mercosul e comentário em Saindo do armário).

2) Ao longo de seus dezessete anos e meio de atividade, não se observa nas atas de suas assembléias e grupos de trabalho a menor divergência, muito menos conflito sério, entre as centenas de facções de esquerda que o compõem. Todas as declarações finais foram assinadas pela unanimidade dos participantes (cf. transcrição das atas e assinaturas em “Atas do Foro de São Paulo”). Nenhuma das queixas e recriminações vociferadas pelos antipetistas de esquerda na mídia que eles mesmos chamam de direitista e burguesa foi jamais levada às discussões internas do Foro, o que prova que a esquerda latino-americana permanece unida por baixo de suas divergências de superfície, por mais que estas impressionem a platéia ingênua.

3) As ações do Foro prolongam-se muito além daquilo que consta das atas. Segundo confissão explícita do sr. presidente da República, os encontros da entidade são ocasião de conversações secretas que resultam em decisões estratégicas de grande alcance, como, por exemplo, a articulação internacional que consolidou o poder de Hugo Chávez na Venezuela (ver o documento oficial em “Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no ato político de celebração aos 15 anos do Foro de São Paulo” e comentário em Lula, réu confesso”). Estas decisões e sua implementação prática subentendem uma unidade estratégica e tática ainda mais efetiva do que aquela que transparece nas atas.

4) Segundo as Farc, a criação desse mecanismo coordenador salvou da extinção o movimento comunista latino-americano e foi diretamente responsável pela ascensão dos partidos de esquerda ao poder em várias nações do continente. (ver Comissão Internacional das Farc, “Saudação à Mesa Diretora do Foro de São Paulo, 16 de janeiro de 2007”, significativamente já retirado do ar, mas recuperável em http://web.archive.org/web/20070310215800/www.farcep.org/?node>2,2513,1 ).

5) As declarações de solidariedade mútua firmadas no Foro de São Paulo entre partidos legais e organizações criminosas (ver por exemplo X Foro de São Paulo, “Resolução de Condenação ao Plano Colômbia e de Apoio ao Povo Colombiano”) não ficaram no papel, mas traduziram-se em ações políticas em que as entidades legais eram instantaneamente mobilizadas para proteger e libertar os agentes das Farc e do Mir presos pelas autoridades locais (explicarei isto melhor, com os documentos respectivos, num próximo artigo).

Na pesquisa histórica, na investigação policial, nos processos judiciais, na ciência política ou em qualquer discussão pública que se pretenda mais séria do que propaganda eleitoral ou conversa de botequim, o princípio mais elementar e incontornável é que os documentos de fonte primária são a autoridade absoluta, o critério último de arbitragem entre as hipóteses e opiniões.

Trinta anos de definhamento intelectual sem precedentes no mundo civilizado tornaram esse princípio inacessível e incompreensível às mentes dos formadores de opinião neste país, principalmente aqueles que a mídia considera mais respeitáveis e dignos de ser ouvidos.

A idéia mesma de “prova”, sem a qual não existe justiça, nem ciência, nem honestidade, nem muito menos a possibilidade da ação racionalmente conduzida, desapareceu do horizonte de consciência desses indivíduos, que se rebaixaram assim à condição de criancinhas mentirosas, apegadas a sonsos jogos de palavras para fazer desaparecer por mágica os fatos que as desagradam ou que por outro motivo qualquer desejam ocultar.

Não digo apenas que se tornaram desonestos: abdicaram por completo da capacidade de distinguir o honesto do desonesto, o certo do errado, o verdadeiro do falso. Uns fizeram isso por sacrifício voluntário no altar de suas crenças políticas, outros por presunção vaidosa, outros por comodismo, outros por mera covardia.

Confiado neles, o Brasil cometeu suicídio intelectual, tornando-se um país incapaz de acompanhar sua própria história presente com aquele mínimo de consciência alerta cuja presença distingue a vigília do sono.

Jamais, na história da mídia mundial, tantos traíram ao mesmo tempo sua missão de investigar e informar.

Discutindo com macacos

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 21 de janeiro de 2008

O que expliquei no artigo anterior não é senão a exigência mais elementar da comunicação verbal: se você pretende que suas afirmações versem sobre realidades e não sobre meras palavras, tem de possuir uma adequada representação mental do objeto antes de poder enunciar a respeito dele um só juízo, ainda que hipotético. Mesmo que a realidade em questão seja puramente imaginária, você tem de imaginá-la corretamente para não sair construindo raciocínios e argumentos sem conteúdo representativo correspondente.

Quando recoloquei em circulação neste país o estudo da arte de argumentar – da qual imediatamente os macaqueadores começaram então a falar no tom de quem tivesse longa experiência do assunto — , não esperava que a palavra “argumento” se transformasse no fetiche em que se transformou. É característico dos macacos intelectuais achar que tudo é uma questão de “ter argumentos”. Nem suspeitam que a argumentação é a parte mais baixa e rudimentar do treino filosófico. Dois argumentos perfeitamente iguais podem expressar idéias diferentes, uma verdadeira, a outra falsa, conforme a representação mental por trás de cada uma. Não existem “sentenças” verdadeiras e falsas: verdadeiro ou falso é o juízo por trás da sentença, o que você está efetivamente pensando – e ao pronunciar uma sentença aparentemente verdadeira você pode não estar pensando nada, ou então pensando uma falsidade completa que, por coincidência, se exprima com as mesmas palavras de um juízo verdadeiro.

Muitas vezes busco analisar o sentido – o juízo – por trás do que o meu interlocutor diz, e o desgraçado acha que estou “argumentando”. A análise visa a descobrir a realidade vivida e pensada no fundo de uma formulação verbal, não a contestar ou abonar uma afirmação. Argumentos só são possíveis depois que a análise certificou que ambos os interlocutores têm uma representação mental idêntica do objeto em discussão. Aí cada um pode discutir se as conclusões que o outro tira do objeto assim representado correspondem ou não à realidade, à experiência, aos testemunhos, etc. Mas, na maior parte dos casos, o que descubro é que meu interlocutor não tem representação nenhuma, tem no máximo um esquema verbal que designa convencionalmente o objeto. Mostrar isso não é de maneira alguma “argumentar”: é mostrar que o interlocutor não tem condição de argumentar nada sobre o objeto da discussão, apenas sobre palavras. Pior ainda quando as palavras que substituem o objeto ausente vêm associadas a valores emocionais e o fulano acha que ao defender estes últimos está “argumentando”. Infelizmente foi isso o que aconteceu na quase totalidade das discussões em que me meti com brasileiros, principalmente “intelectuais”. Argumentos genuínos – eventualmente falsos no confronto com a realidade, mas genuínos enquanto argumentos – só encontrei nos EUA e na Europa. No Brasil ninguém mais sabe o que é isso.

Observo essa miséria sobretudo nas discussões sobre religião. Mesmo que o Deus da Bíblia fosse totalmente imaginário, você não poderia discuti-Lo antes de imaginá-Lo tal como Ele está na Bíblia. Isso remete ao esforço interior que mencionei no artigo da semana passada – o único meio de preencher de conteúdo representativo a expressão “Deus da Bíblia”. Como em geral os inimigos da Bíblia só a lêem – quando a lêem – com uma firme disposição de esvaziar de sentido o seu personagem em vez de preencher-se a si próprios com esse sentido, o resultado é que não há discussão nenhuma: há apenas, de um lado, a imitação simiesca da arte de argumentar, do outro – o meu – o esforço inútil de explicar a um macaco que não estou argumentando com ele.

PT, o partido dos ricos

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 21 de janeiro de 2008

O PT não é um partido ladrão porque abandonou seus altos ideais e se corrompeu ao contato com a maldita direita. Para que a direita o corrompesse seria preciso que ela fosse mais corrupta do que ele, e é só comparar a lista de escândalos dos governos respectivos para ver que o próprio P. C. Farias teria muito a aprender com os Dirceus e Berzoinis. O PT é um partido ladrão porque é um partido revolucionário, filiado a uma tradição de amoralismo maquiavélico que pelo menos desde a Revolução Francesa, com intensidade crescente desde a Primeira Internacional de 1864 e mais ainda desde a fundação do Partido Socialdemocrata de Lênin, sempre achou que era de seu direito, e até da sua obrigação, financiar a si próprio por meio de assaltos, de seqüestros, de extorsões, de desvio de dinheiro público, bem como de uma infinidade de negócios capitalistas legais e ilegais, cujo volume total faria inveja a seus mais reacionários inimigos burgueses.

Estudem a vida de Lênin e confirmarão o que estou dizendo. O volume do capital que o financiava, sem contar a ajuda de governos estrangeiros, era tal que, se aplicado em atividades produtivas, teria feito dele uma espécie de J. P. Morgan – com o detalhe significativo de que as contribuições de J. P. Morgan engrossavam aquele capital junto com o dinheiro dos assaltos comandados por Stálin. Revoluções custam caro. O revolucionário Parvus, que enriqueceu com mil e um negócios na Turquia, já ensinava em 1914: “A melhor maneira de derrubar o capitalismo é nós mesmos nos tornarmos capitalistas.” Não foi o Lulinha quem descobriu essa fórmula. Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht riram dela e acabaram derrotados. Lênin, o vitorioso, ouviu-a com reverência e gratidão da boca de seu gerente financeiro na Suíça, Jacob Hanecki, a quem depois da Revolução premiaria com o cargo de Comissário do Povo para as Finanças. Leiam Lenin in Zurich , de Alexander Solzhenitsyn (London, Farrar, Straus & Giroux, 1975). A revolução socialista consiste na simples transfiguração de uma elite ativista proprietária de boa parte do capital em senhora absoluta de todo o capital. Sempre foi assim, e com a esquerda nacional não é diferente. O mensalão não foi um pecado temporão cometido por almas santas no último minuto antes da ascensão aos céus. Foi a execução lenta e metódica de planos traçados desde o começo da década de 90 — contemporâneos à criação do Foro de São Paulo –, já denunciados então por César Benjamin, algo como uma versão “los macaquitos” de Karl Liebknecht, à qual, como a este último, a História e o distinto público deixaram falando sozinha.

Tomem, por exemplo, a forma mais simples e bruta do capital – a posse da terra – e façam a conta de tudo o que a militância organizada, com o auxílio deste governo e dos anteriores, vem amealhando  ao longo dos últimos anos. Somem a extensão das propriedades do MST com as reservas indígenas, com os quilombos (ou ditos tais) em vias de desapropriação, com os imóveis estatais e privados já transferidos a ONGs ativistas, com as áreas sob domínio das Farc diretamente ou através de seus prepostos  locais – e verão que nunca houve, neste país, um patrimônio imobiliário comparável. Nem incluo aí o patrimônio financeiro – as verbas estatais que jorram sobre as organizações esquerdistas, as participações acionárias em mil e uma empresas, as contribuições internacionais impossíveis de calcular e, last not least , os lucros do narcotráfico. Os ricos não serão destruídos pelos pobres. Serão destruídos pelos mais ricos.

       No fundo, o cinismo lulista é até mais respeitável do que o moralismo posado de seus críticos de esquerda, postiço até o desespero, macaqueação tardia do mesmo discurso enganoso que levou o PT às supremas glórias eleitorais. O que o antilulismo de esquerda nos promete, na hipótese viabilíssima de sua ascensão ao poder, são prodígios de ladroagem que farão Dirceu e Berzoini parecerem São Cosme e São Damião. No ato mesmo em que explicam a corrupção petista como traição aos ideais revolucionários, os santarrões do PSOL e do PSTU se desmascaram a si próprios com uma eloqüência quase sublime: Quem pode acreditar em patifes que prometem fazer a revolução marxista sem descumprir em nada os ditames da moral burguesa?

       Ademais, por que alardeiam suas denúncias na Rede Globo, na Folha , no Estadão – naquela mesma mídia a que chamam reacionária e imperialista – antes de haver sequer tentado discuti-las discretamente no Foro de São Paulo, a instância máxima do esquerdismo continental? Roupa suja se lava em casa, e quando alguém o faz em público antes de haver nem mesmo tocado no assunto em família, é porque está tramando alguma. Imaginem um soi disant dissidente soviético que, nos anos 60, saísse berrando contra o comunismo na Voz da América ou Rádio Europa Livre, ao mesmo tempo que conservasse seu cargo e suas boas relações no Politburo ou na KGB. É exatamente a mesma coisa. Se a esquerda está dividida entre os corruptos e os honestos, a divisão deveria aparecer primeiro nos seus debates internos – só depois ante os inimigos, se chegasse a tanto. O inverso é prova clara de que se trata de pura encenação, de que por trás a família continua unida e coesa, tramando para ludibriar uma vez mais a multidão dos trouxas. Não há cisão na esquerda: há apenas uma natural divisão de trabalho – uns amealham dinheiro e poder à custa de enfeiar a imagem do esquerdismo, outros embelezam a imagem consentindo devotadamente em adiar o recebimento da sua quota de dinheiro e poder. Sempre foi assim. O movimento revolucionário limpa-se na sua própria sujeira, engorda alimentando-se do seu próprio cocô.

       O hábito de salvar o prestígio do esquerdismo no ato mesmo de denunciar os seus crimes já está tão arraigado nas rotinas mentais da classe falante, que aparece até mesmo nos lugares que se julgariam, à primeira vista, os mais inusitados. Falando dos reféns em poder da narcoguerrilha colombiana, escreve a Veja desta semana – sim, Veja , nominalmente o spalla da orquestra antipetista:

       “A organização que mantém cerca de oitocentas pessoas em seu poder, conhecida pela sigla Farc, não é formada por guerrilheiros marxistas , como repete a denominação usual (grifo meu). Nem Marx endossaria as barbáries cometidas pelas Farc, que se originaram numa querra civil ocorrida na Colômbia e depois tiveram inspiração esquerdista, mas há muito tempo degeneraram em uma espécie de seita de fanáticos que vive à custa do tráfico de cocaína.”

       Desde logo, é falso que Marx não endossaria essas violências e outras piores, de vez que contemplava como exigência normal e desejável do processo revolucionário a extinção sumária de povos inteiros. Em segundo lugar, o narcotráfico das Farc é mixaria perto do que foi feito na China por Mao Dzedong, a quem ninguém jamais acusou de ser infiel às tradições marxistas. Em terceiro lugar, o comércio latino-americano de drogas foi na sua parte mais substantiva uma criação da KGB, que se empenhou nisso desde os anos 50 (v. o depoimento do general tcheco Jan Sejna – um participante direto da operação – em Christopher Story , Red Cocaine. The Drugging of America and the West , London, Edward Harle, 2nd. Ed., 1999). Devemos crer que o governo soviético, Mao Dzedong e o próprio Marx não representam o autêntico espírito do marxismo, cujo único porta-voz autorizado é o redator de Veja ? Este aliás se trai miseravelmente ao dizer que, de esquerdistas genuínos, os militantes das Farc se trasnformaram numa “seita de fanáticos”. Se dissesse que se transformaram em aproveitadores sem fé nenhuma, talvez enganasse melhor. Mas “fanáticos”? Fanáticos do quê? Do espiritismo? Do vegetarianismo? Da Seicho-No-Iê? Fanáticos jogadores de futebol-de-botão? Fanáticos admiradores da Ana Paula Arósio? Fanáticos, por definição, acreditam em alguma coisa, e em que acreditam os homens das Farc, senão no bom e velho marxismo de sempre? Fanáticos marxistas, sim, é o que são, ontem como hoje. Se não o fossem, não seriam aceitos e celebrados como representantes fidedignos do marxismo no templo mesmo da revolução comunista, o Foro de São Paulo. Ou será que Veja tem mais autoridade do que o Foro de São Paulo para julgar a ortodoxia comunista dos outros?

       Mais abusadamente ainda, Marcelo Otávio Dantas, no artigo “Messianismo e o credo petista” (Folha de S. Paulo), querendo contrastar o PT corrupto de hoje com o PT puríssimo de outrora, diz que a mentalidade do partido “converteu-se, assim, em um neosabbatianismo radical, alimentado por uma intelectualidade delirante, especializada em justificar o injustificável”. Como se os traços da heresia de Sabbatai Zevi já não estivessem no próprio sangue do movimento revolucionário desde sempre e como se a marca distintiva do PT não tivesse sido, desde a origem, o culto do pecado redentor assumido até mais explicitamente que o dos outros partidos de esquerda então existentes. Nascido de uma aliança entre os comunistas e a esquerda católica, o PT veio imbuído do projeto gramsciano de subverter a Igreja por dentro, esvaziando-a de seu conteúdo espiritual e fazendo dela o instrumento dócil do que pode haver de mais anticristão no mundo, a revolução comunista. Se isso não é uma forma extrema de heresia messiânica, não sei em que outra classificação possa caber. O discurso untuosamente moralista do PT nunca teve nada de sincero, foi sempre, entre os líderes, uma parasitagem maquiavélica do prestígio da Igreja para fins de propaganda e, na arraia miúda dos militantes, uma forma patológica de auto-engano lisonjeiro. Perto disso, o mensalão é apenas um pecadinho de fim de semana. A corrupção financeira do PT não é senão a exteriorização tardia – e mais vistosa, para a mentalidade dinheirista – da podridão interior sem fim que inspirou a criação do partido-seita.

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