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Proporção inversa

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 14 de fevereiro de 2008

A ofensiva cultural soviética começou nos anos 20 e durou até o fim da URSS. Tanto pelas dimensões quanto pelos métodos que empregava, foi fenômeno sem similares no mundo. Não houve onde sua influência não penetrasse, determinando os rumos da história cultural de nações inteiras. Seus meios de ação estendiam-se para muito além da propaganda, dos festivais, das turnês de artistas e congressos de escritores. Iam muito além das viagens de cortesia, inumeráveis e freqüentemente prolongadas em estágios de treinamento na KGB. Iam muito além do financiamento perpétuo a milhares de escritores e jornalistas. Iam até mesmo além da dominação exercida sobre centenas de jornais, revistas e estações de rádio em todo o mundo. Incluiam todos os recursos usados em espionagem, monitorando a vida pessoal dos “companheiros de viagem” para mantê-los sob a ameaça de chantagem, implantando discretos comitês de censura na imprensa cultural, nas universidades e nos meios editoriais para boicotar os autores indesejáveis até o limite da exclusão total e bajular os desejáveis até o limite da idolatria. Após a queda da URSS, a máquina laboriosamente montada não se desmantelou: adaptou-se à estratégia gramsciana e à nova organização da esquerda internacional em “redes”, muniu-se de novas fontes de financiamento e, aliviada do entulho burocrático soviético, continuou funcionando, mais eficiente do que nunca e tão prepotente quanto sempre.

A história cultural do Brasil nas últimas seis ou sete décadas é absolutamente incompreensível sem o estudo dessa imensa obra de engenharia, cujo custo não se pode calcular.

No entanto, não existe nenhum livro brasileiro a respeito, e a imensa bibliografia estrangeira sobre o assunto (muito aumentada depois da abertura dos Arquivos de Moscou) continua vetada ao nosso público. Nas universidades e na mídia, muitos de nossos intelectuais continuam trabalhando nas linhas determinadas por Stálin, Karl Radek e Willi Münzenberg, não porque ainda tenham alguma conexão formal com o aparato (a maioria nem tem), mas simplesmente porque nunca aprenderam a fazer outra coisa. O mais patético é que em geral esses indivíduos, tão ciosos de “historicidade”, não têm a menor suspeita da origem de seus hábitos mentais. Vivendo da ignorância das suas próprias raízes ocultas, tornam-nas ainda mais invisíveis mediante o hábito compulsivo de ofuscar-se lançando uma luz demasiado forte sobre a história secreta (ou suposta história secreta) de seus desafetos políticos. O número de livros-denúncia contra a CIA que circulam no Brasil supera em muito o dos agentes da CIA já localizados comprovadamente no país. Não é de estranhar que àqueles livros se some agora, com formidável alarde midiático, o de Frances Stonor Saunders sobre o Congresso pela Liberdade da Cultura, a resposta muito modesta e tardia (e, no mínimo, moralmente obrigatória), que a CIA esboçou ao avanço cultural soviético entre os anos 1950-1967 (The Cultural Cold War, publicado pela Record com o título de Quem Pagou a Conta?). Embora enfatizando que o empreendimento tinha objetivos de propaganda política – como se algum dos participantes o ignorasse! –, a autora nada consegue alegar contra o argumento de que o Congresso se distingue de seu antagonista por jamais ter usado de chantagem, intimidação ou censura, nem rebaixado artistas à condição de office-boys, nem subornado alguém para mentir deliberadamente, práticas usuais da KGB na guerra cultural. No fim das contas, a tese de Saunders pode ser resumida nesta frase: “No seu auge, o Congresso empregava dúzias de funcionários.” Mesmo no seu ponto mais baixo, a ofensiva cultural soviética não empregava dúzias de pessoas, mas dúzias de milhares. Se a diferença entre as duas campanhas é inversamente proporcional à atenção que recebem da mídia brasileira, isso só mostra o sucesso continuado de uma delas.

Boicotando um herói nacional

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 14 de fevereiro de 2008

Nesta época de frouxos, omissos e subornados, o juiz federal Odilon Rodrigues de Oliveira é um brasileiro diferente. Eu gostaria de dizer que ele é simplesmente um brasileiro, mas não posso. Ele é honesto, corajoso e inflexível na busca da verdade — três qualidades que em geral não se encontram nem na Presidência da República, nem no Parlamento, nem no Supremo Tribunal Federal, nem no comando das Forças Armadas, nem no alto clero, nem na grande mídia, nem nas cátedras universitárias, nem nas classes letradas em geral. No povo, não digo que tenham desaparecido de todo, mas é difícil encontrá-las juntas. Os honestos são frouxos, os corajosos berram a primeira tolice que lhes passa pela cabeça, os que buscam a verdade guardam-na para si, tremendo de medo, ostentando em lugar dela um sorriso de complacência com a mentira triunfante, e não raro chamam a isso caridade cristã.

Desde que descobriu provas da estreita colaboração entre a narcoguerrilha colombiana, o PCC e o Comando Vermelho, o juiz Odilon está jurado de morte. Não pode sair às ruas nem voltar para casa. Há muitos meses ele passa os dias e as noites trancado no seu gabinete na 3ª Vara Federal de Campo Grande (MS), alimentando-se de sanduíches, dormindo numa cama de campanha. Enquanto muitas excelências federais desfrutam nos melhores hotéis e restaurantes as delícias dos cartões corporativos entre um e outro aceno de cumplicidade fraternal às Farc nas reuniões do Foro de São Paulo, ele zela pela segurança do Brasil. Ele não sairá do seu abrigo enquanto ela não for restaurada. Segundo deduzo de uma notícia recente, isso vai demorar.

A notícia é a seguinte. Sabendo perfeitamente que o juiz está para ouvir cinqüenta testemunhas de um processo no qual o traficante Fernandinho Beira-Mar e 23 dos seus comparsas são acusados de lavar R$ 12 milhões obtidos no tráfico internacional de drogas, o Supremo Tribunal Federal decidiu garantir aos réus presos o direito de estar presentes a todos os atos dos processos judiciais aos quais respondem. O problema é que essa decisão torna praticamente impossível levar o processo adiante. O próprio juiz já havia advertido em março de 2007: “Não tenho dúvidas de que a presença de Beira-Mar na fronteira representa alto risco em relação à sua própria pessoa. Pode até haver tentativa de resgate, o que acho difícil de ser concretizado, mas o risco de vida é incomparavelmente maior.”

O risco não é só para o acusado. É para o próprio juiz. Ao interrogar as testemunhas na presença de todos os réus, ele estará diretamente ao alcance daqueles que juraram matá-lo. A decisão do STF equivale, na prática, a uma sentença de morte lavrada contra Odilon Rodrigues de Oliveira pelo crime de haver revelado os delitos daqueles a quem os líderes do nosso partido governante preferem continuar tratando, em privado, como companheiros diletos, e em público como honrados “combatentes pela liberdade”.

A maioria das testemunhas reside no município de Coronel Sapucaia (MS), cidadezinha que só uma avenida separa de Capitán Bado, no Paraguai, e na qual o réu principal tem aliados e inimigos. Entre estes últimos, destaca-se o traficante Carlos Cabral, cujo filho de três anos foi assassinado pelos homens de Beira-Mar. Cabral jurou vingança. A presença dos réus na cidade é a oportunidade que ele espera. Mesmo tendo transferido as audiências para a cidade vizinha de Amambaí, o juiz está sob o risco de ter de interrogar as testemunhas sob uma chuva de balas. Para evitar isso, ele pediu ao Comando Militar do Oeste (CMO) autorização para fazer as audiências no Regimento Militar de Amambaí. Como o Exército respondesse que isso dependia de autorização da presidência da República, o juiz encaminhou o pedido ao ministro da Defesa, o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim. Adivinhem o resultado.
Jobim alegou que o Exército não pode nem ceder salas para a audiência nem manter os presos sob custódia no quartel, porque existem — notem o estilo — “óbices constitucionais, legais e institucionais, acometendo a instituição de providências ou responsabilidades para as quais não está devidamente preparada e legalmente amparada”.

O juiz não sabe mais a quem apelar: “Criou-se um impasse e o processo está parado.”

A notícia saiu no último dia 10 (v. Presença de Beira-Mar cria impasse em processo), com um centésimo do destaque que merecia. E foi publicada a seco, sem a mínima referência às suas implicações políticas e morais mais diretas, que são óbvias para quem estuda o assunto mas não necessariamente perceptíveis ao público em geral. Para percebê-las, é preciso raciocinar um pouco:

1º. O sr. presidente da República é um parceiro tradicional dos narcoguerrilheiros colombianos no quadro do Foro de São Paulo e já mostrou sua total falta de disposição não só de fazer algo contra eles mas até de chamá-los pela denominação apropriada de terroristas.

2º. Como assinalei recentemente (v. Infração de trânsito), o partido governante faz tudo o que pode para dar apoio aos agentes das Farc presos no Brasil, ao mesmo tempo que, por um lado, os qualifica de bandidos comuns para fingir que não têm vinculação com o movimento esquerdista e, por outro, os aceita como membros regulares do Foro de São Paulo, provando que essa vinculação existe.

3º. Se, nesse quadro, duas decisões sucessivas das autoridades federais – o STF e o ministro da Defesa – boicotam os esforços de um herói nacional que revelou verdades indesejáveis sobre os amigos do partido governante e paralisam um processo que arrisca trazer à tona uma nova dose dessas verdades, a chance de que se trate de mais uma dupla e feliz coincidência somando-se a tantas outras coincidências anteriores é, com toda a evidência, das mais modestas. Mas, se for provado que não se trata de coincidências, então será preciso concluir que todo o establishment federal se tornou um aparato auxiliar do Foro de São Paulo e das Farc. E, neste caso, será ridículo continuar falando em ordem, lei, constituição, direitos, etc. No império do crime não há nada disso.

Delicadeza letal

Olavo de Carvalho

Digesto Econômico, janeiro/fevereiro de 2008

No momento em que escrevo, o Partido Republicano hesita entre o pastor batista Mike Huckabee e o veterano de guerra John McCain. Os democratas ainda não se decidiram entre Barack Obama e Hillary Clinton. O quadro eleitoral americano divide-se, portanto, entre três enigmas e uma certeza temível. Ninguém tem a menor idéia do que se pode esperar dos três primeiros caso eleitos, mas a quarta tem todo o curriculum vitae necessário para completar o trabalho de desmantelamento da Presidência americana inaugurado com brilhante sucesso por seu marido com a ajuda de espiões chineses, de lobistas ladrões, da srta. Monica Lewinsky, dos narcotraficantes das Farc que tanto lucraram com o famoso Plano Colômbia e, last not least , de uma infinidade de agentes de inteligência colocados na CIA para servir à família Clinton em vez do Estado americano. A maior vantagem em favor de Hillary Clinton é que, como diria Paulo Francis, todo mundo já viu esse filme e sabe quem morre no fim. Num momento de tantas incertezas, isso pode gerar alguns votos.

Huckabee apresenta-se como um “social conservative”, mas ao mesmo tempo apóia as pesquisas com células-tronco, colocando seus eleitores na maior incerteza. O que ele tem a seu favor é que nada se espera dele de tão catastrófico quanto de qualquer dos outros três. Se ele conseguir provar que é inócuo, terá ainda alguma chance contra McCain.

         O que se passa na cabeça de John McCain, nem ele próprio sabe. Ele já provou que é capaz de mudar de idéia subitamente e estrangular no ato quem não goste da novidade. Os conservadores dizem que ele é o mais democrata dos republicanos, que é impossível distingui-lo nitidamente do senador Ted Kennedy, que ele mal consegue refrear um orgasmo cada vez que vê um aumento de impostos; mas na esquerda há quem jure que ele está à direita de George W. Bush, que ele é o falcão dos falcões, que a primeira coisa que ele vai fazer na presidência é sair logo bombardeando o Irã e desencadeando a terceira (ou quarta) guerra mundial. Talvez tudo isso seja verdade, mas, certamente, nada disso é bom. Dos quatro candidatos, ele ainda é o que mais tem condições de ser eleito, mas é certo que muitos de seus eleitores votarão nele tremendo de medo, seguros de que o fizeram só para evitar que um dos partidos, dominando a Presidência junto com o Senado, a Câmara e a maioria dos votos na Suprema Côrte, se torne onipotente (os americanos odeiam isso por instinto).

            Quanto ao senador Obama, ele é decerto menos interessante do que os motivos que muitos americanos têm para votar nele. Se alguém é insistentemente acusado de um defeito ao ponto de se tornar complexado por isso, com muita probabilidade acabará caindo no defeito oposto. Aplicado com astúcia, o truque é quase infalível. Acuse um sujeito de sovina e ele se tornará um desperdiçador compulsivo. Acuse-o de machista e ele se deixará dominar pela esposa. Embora o racismo nos EUA tenha sido um fenômeno muito limitado geograficamente, o país inteiro foi tão acusado de racista que os americanos em geral acabaram sacrificando sua dignidade ante a moda grotesca do politicamente correto. e agora muitos deles se sentem obrigados a votar em Barack Hussein Obama só para mostrar que são bonzinhos. O senador fala bonito, mas até agora ninguém conseguiu descobrir nos seus discursos algo que se assemelhasse mesmo de longe a um assunto. Na mais substantiva das hipóteses aparece ali alguma promessa de campanha igualzinha às de sua concorrente Hillary Clinton, senão às dos candidatos republicanos. Tal como McCain, ele promete entregar a cabeça de Osama Bin Laden, só faltando, é claro, encontrá-la. Tal como a sra. Clinton, ele promete assistência médica de graça para todo mundo (não só para os pobres, os incapazes e os velhos), sem que jamais lhe ocorra a idéia de explicar de quem vai tomar o dinheiro para fazer isso, nem muito menos como vai tapar o rombo da previdência, que já se calcula em trilhões. O senador especializou-se mesmo foi em exortações adolescentes do tipo “Vamos mudar o mundo”, porque sabe que ninguém espera que ele faça alguma coisa na Presidência, apenas que esteja lá como um símbolo.

            Símbolo do quê? Os latinos diziam que nomen est omen, “o nome é profecia”. Barack Hussein significa “abençoado descendente do Profeta” e há provas concludentes de que seu portador está mentindo quando diz que nunca foi muçulmano (Daniel Pipes tirou isso a limpo em Was Barack Obama a Muslim? e Confirmed: Barack Obama Practiced Islam). É mais ou menos como se em plena guerra do Vietnã os EUA elegessem presidente um sujeito chamado John Paul Ho Chi Minh, educado em Hanói, filho de um membro do Partido, mas que jurasse nunca ter sido comunista e ficasse ofendidíssimo se alguém duvidasse dele. A candidatura Obama é uma provocação calculada: serve de termômetro para avaliar quão profundamente o hábito adquirido da autocensura politicamente correta já infundiu na mente dos americanos a disposição de deixar-se levar ao forno só para não fazer uma descortesia com o cozinheiro.

Um detalhe significativo ilustra isso às mil maravilhas: quando o senador ouve o hino nacional, ele não põe a mão direita no coração como manda o protocolo, mas segura literalmente a bolsa escrotal com as duas mãos e todo mundo se sente inibido de dizer que isso é um insulto. Teste semelhante já foi feito no tempo de Bill Clinton. O presidente se permitia transformar a Casa Branca num bordel, mentia descaradamente e acusava de conspiração direitista quem quer que achasse ruim uma coisa ou a outra. O ar de indignação na cara dos democratas quando defendiam a honra do sem-vergonha era tocante. Tanto naquele caso quanto agora, a mais cínica proibição de perceber o óbvio é imposta em nome da moralidade, instilando na opinião pública o hábito da inversão revolucionária (v. A inversão revolucionária ). Tudo isso parece muito extravagante, mas é uma obra de engenharia psicológica de alta precisão.

O panorama desta eleição é, sob todos os aspectos, miserável. Mitt Romney mostrou ter fibra de estadista justamente no discurso em que abdicou da sua candidatura. Ele disse que a presente eleição gira em torno de temas maiores, não de rotinas administrativas. Nunca os EUA tiveram de decidir sobre questões tão graves, dispondo de cérebros tão levianos para arcar com essa responsabilidade. A desproporção entre os problemas e os personagens é tragicômica, mas o lado comédia vai passar e a tragédia vai ficar.

          As culpas da presente situação repartem-se igualmente entre os democratas, que superpuseram suas ambições políticas à segurança dos EUA, e George W. Bush, que se recusou a enxergar isso e preferiu embarcar o país numa ilusória união nacional contra o inimigo externo. A união não durou três semanas. Qualquer observador inteligente podia prever isso, mas Bush apostou tudo na cartada do patriotismo, sem querer enxergar que o de seus adversários era totalmente fingido.

           Na tradição americana, os funcionários públicos, principalmente de alto escalão, sempre tiveram orgulho de servir ao Estado, independentemente de saber qual partido estava no poder. Desde a era Clinton, o Partido Democrata rompeu com essa tradição, espalhando na rede burocrática militantes que servem a ele, não ao Estado, ao povo ou à nação. Todos já vimos isso acontecer em algum país, não é mesmo? E todos sabemos como termina. Desde o 11 de setembro, os planos de guerra de George W. Bush foram boicotados desde dentro pelos clintonistas do Departamento de Estado e da CIA, que assim produziram as situações insustentáveis cuja culpa era em seguida imputada ao presidente. A história é contada em detalhes no livro de Kenneth R. Timmerman, Shadow Warriors, The Untold Story of Traitors, Saboteurs, And The Party of Surrender (Crown Forum, New York, 2007), e quem não a conhece não entenderá jamais o que se passa hoje em dia nos EUA. Recusar-se a enxergar o mal é tão vergonhoso quanto produzi-lo. George W. Bush carrega nas costas a responsabilidade de haver fugido ao combate interno mediante o subterfúgio de uma guerra no além-mar. Quando ele foi eleito pela primeira vez, os republicanos tinham todas as condições para permanecer no poder por vinte anos e levar às últimas conseqüências as grandes transformações iniciadas na era Reagan. A timidez (ou o rabo preso) de George W. Bush pôs tudo a perder. ” Par délicatesse j’ai perdu ma vie “, dizia Rimbaud. Mas a profecia, infelizmente, não se aplica só à pessoa do atual presidente americano. É todo um povo que arrisca se desgraçar para não cometer a impolidez de declarar os nomes dos seus inimigos.

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