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Como ler a Bíblia

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 17 de janeiro de 2008

Quando você lê um romance ou peça de teatro, não tem como julgar a verossimilhança das situações e dos caracteres se antes não deixar que a trama o impressione e seja revivida interiormente como um sonho. Ficção é isso: um sonho acordado dirigido. Como os personagens não existem fisicamente (mesmo que porventura tenham existido historicamente no passado), você só pode encontrá-los na sua própria alma, como símbolos de possibilidades humanas que estão em você como estão em todo mundo, mas que eles encarnam de maneira mais límpida e exemplar, separada das contingências que podem tornar obscura a experiência de todos os dias. A leitura de ficção é um exercício de autoconhecimento antes de poder ser análise literária, atividade escolar ou mesmo diversão: não é divertido acompanhar uma história opaca, cujos lances não evocam as emoções correspondentes.

A mesma exigência vigora para os livros de História, com o atenuante de que em geral o historiador já processou intelectualmente os dados e nos fornece um princípio de compreensão em vez da trama bruta dos acontecimentos. Se você não apreende os atos dos personagens históricos como símbolos investidos de verossimilhança psicológica, não tem a menor condição de avaliar em seguida se são historicamente verdadeiros ou não. Um livro de História tem de ser lido primeiro como ficção, só depois como realidade.

O problema é que nem sempre as possibilidades que dormem no fundo da nossa alma nos são conhecidas — e então não podemos reconhecê-las quando aparecem na ficção ou na História. O resultado é que a narrativa se torna opaca. Pior ainda, você pode se deixar enganar por falsas semelhanças, reduzindo os símbolos da narrativa a sinais convencionais das possibilidades já conhecidas, senão a estereótipos banais da atualidade. O reconhecimento interior não é só um exercício de memória, mas um esforço sério para ampliar a imaginação de modo que ela possa abarcar mesmo as possibilidades mais extremas e inusitadas. Você não pode fazer isso se não se dispõe a descobrir na sua alma monstros, heróis e santos que jamais suspeitaria encontrar lá.

Compreensivelmente, os monstros são mais fáceis de descobrir do que os heróis e santos. O medo, o nojo, a raiva e o desprezo são emoções corriqueiras, e eles bastam para tornar verossímil o que quer que nos pareça ser pior do que nós mesmos. Já aquilo que é nobre e elevado só transparece a quem o ama, e esse amor traz imediatamente consigo um sentimento de dever, de obrigação, como no célebre soneto de Rilke em que a perfeição de uma estátua de Apolo transcende a mera contemplação estética e convoca o observador a mudar de vida, a tornar-se melhor. A impressão humilhante de não estar à altura desse apelo produz quase automaticamente uma reação negativa — o despeito. Negando a existência do melhor, reduzindo-o ao banal ou fazendo dele uma camuflagem enganosa do feio e do desprezível, a alma encontra um alívio momentâneo para o seu orgulho ferido, restaurando uma auto-imagem tranqüilizante à custa de encurtar miseravelmente a medida máxima das possibilidades humanas.

Se esse problema existe em qualquer livro de ficção ou de História, imaginem na Bíblia, onde o personagem central é o próprio Deus. Abrir-se ao chamado da perfeição divina é trabalho para uma vida inteira e mais uns dias, e vem entremeado de inumeráveis derrotas e humilhações — mas sem isso você não compreenderá uma só palavra da Bíblia. Cem por cento do ateísmo militante consistem em despeito e incapacidade de leitura séria.

Chega de discussão

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 16 de janeiro de 2008

Deixemos de lado os mentirosos conscientes, interesseiros. Vamos falar dos outros. Qualquer jornalista, acadêmico, político ou formador de opinião em geral que, a esta altura, ainda insista em colocar em dúvida seja a existência, seja a importância e o poder do Foro de São Paulo, é com toda a evidência um incapaz. Sua presença no debate público só serve para entorpecer a inteligência da platéia e torná-la ainda mais lerda em perceber o óbvio depois de dezessete anos de hesitações e tergiversações imperdoáveis — criminosas, na verdade — à sombra das quais a mais poderosa organização subversiva que já existiu neste continente pôde crescer sem ser notada por um povo inteiro, que tinha o direito e a necessidade absoluta de saber tudo a respeito.

Quando uma profusão de documentos de fonte primária, mais a confissão aberta dos personagens envolvidos e por fim, no III Congresso do PT, o reconhecimento oficial do Foro como central estratégica da revolução continental não bastam para convencer um cérebro de que a entidade existe e é terrivelmente influente, é que esse cérebro já perdeu a capacidade humana diferencial, que é a de perceber a realidade através da palavra, e conserva somente o dom simiesco de imitar com guinchados sem sentido a fala dos homens.

Admito debater, com comunistas, o valor ou desvalor, os méritos e culpas do Foro. Discutir sua existência e sua eficácia política, seja com comunistas, seja com não-comunistas (ou anticomunistas), é uma palhaçada a que não posso me expor. Minha paciência com a mendacidade de uns e a psicastenia de outros tem limites, e estes já foram transpostos há muito tempo.

Foi por pura generosidade e sentimento de dever patriótico que persisti oferecendo provas e mais provas quando elas já não eram mais necessárias a nenhuma alma sincera e a nenhuma inteligência normal.

Agora chega. Nenhum dever de caridade, nenhuma devoção à pátria podem obrigar um estudioso a expor-se à última desonra intelectual.

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Também não discutirei a sinceridade ou insinceridade do sr. presidente da República quando ele proclama que seqüestros são abomináveis e que não tem simpatia pelas Farc. O sr. Lula é um mentiroso abjeto, e ponto final. Já citei vezes inumeráveis o manifesto de solidariedade integral que o Foro de São Paulo, sob a presidência dele, assinou em favor da narcoguerrilha colombiana, no qual toda oposição do governo de Bogotá a essa gangue de assassinos era condenada como “terrorismo de Estado”; manifesto de louvor ao abominável, a que se seguiu anos depois, quando o tipinho já estava na presidência, a recusa terminante de aplicar às Farc o mesmo rótulo que naquele documento se concedia à pessoa do presidente Uribe e de todos os que morreram combatendo as hostes de Manuel Marulanda e Raul Reyes. Já mencionei vezes sem conta a imediata mobilização petista em favor de cada seqüestrador ou terrorista estrangeiro que a polícia prende neste país. Para que continuar insistindo no óbvio ante os que não querem vê-lo e os que não têm nem a coragem nem a capacidade de enxergá-lo?

Na Argentina os brasileiros são chamados de “los macaquitos”. Se aplicado à massa geral dos nossos compatriotas o apelido é injusto e difamatório, em outros casos – o da maioria dos formadores de opinião neste país – tudo o que ele tem de inadequado é o tom carinhoso do diminutivo. Macacos são, e dos grandes, sem o atenuante da idade tenra.

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Outra coisa que também já esgotou minha paciência é a constância obsessiva com que os temas inéditos das minhas colunas são reciclados, cinicamente, por opinadores iluminados que, sem jamais citar a fonte, vendem minhas idéias como fossem suas, reformatando-as, é claro, segundo o padrão de suas inteligências mal dotadas. Tornei-me o pauteiro oculto de uma multidão de criaturas vistosas. Os casos são centenas e já vêm desde 2001 pelo menos (v. Pauteiro da USP). Vou dar aqui só os dois exemplos mais recentes. Outro dia, o messianismo, conceito que aplico ao petismo com todo o rigor que aprendi em Norman Cohn , Luciano Pellicani e Eric Voegelin, reapareceu como artifício vulgar de retórica antipetista politicamente correta no artigo de Marcelo Otávio Dantas, “Messianismo e o credo petista”, Folha de S. Paulo , www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2312200709.htm . Agora, a contestação da vitória comunista na guerra do Vietnã, que os leitores do DC leram aqui em 7 e 14 de janeiro, reestréia com mais detalhes na coluna de Élio Gaspari do dia 16. Provavelmente Dantas e Gaspari, consultados a respeito, responderão que jamais lêem meus artigos. Claro: pessoas maravilhosas (no sentido que dei ao termo em O Imbecil Coletivo ) não lêem Olavo de Carvalho. Adivinham-no por genialidade espontânea.

A alma americana debilitada – completo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 14 de janeiro de 2008

O discurso dominante na grande mídia, no show business e nas universidades dos EUA é hoje tão francamente anti-americano que só em detalhes de estilo – se tanto – é possível distingui-lo das campanhas de difamação empreendidas pela URSS nos anos 50 e 60. A elite americana gaba-se de ter vencido a Guerra Fria, mas parece que foi psicologicamente dominada pelo inimigo perdedor e acabou acreditando em tudo o que ele dizia contra ela. A vingança póstuma dos soviéticos brilha nas páginas do New York Times , no horário nobre da CBS e nos filmes de Michael Moore e George Clooney com um esplendor que nem Willi Münzenberg, o gênio da desinformação comunista, jamais teria ousado sonhar.

            O que quer que se diga contra o governo americano, contra os militares americanos, contra a cultura americana parece hoje gozar de credibilidade automática, além de poder ser gritado desde o alto dos telhados sem o menor temor de uma resposta exasperada, ao passo que toda palavra pró-americana tem de vir cercada de precauções politicamente corretas, por medo de represálias infalíveis e ruidosas, se não de um processo judicial. Acompanhar o debate político americano é confirmar diariamente o sentido profético do verso de William Butler Yeats: ” The best lack all conviction, while the worst are full of passionate intensity .” Algo mudou radicalmente no coração da América na segunda metade do século XX, e mudou exatamente no sentido em que os mais odientos inimigos do país teriam desejado que mudasse.

            Como isso foi possível? Os agentes da mudança querem fazer-nos crer que foi tudo um processo espontâneo, natural e inevitável, dando ao curso da transformação a autoridade de uma lei histórica impessoal que só a tacanhice reacionária ousaria contestar. Mas há tempos já compreendi que leis históricas impessoais são quase sempre mera camuflagem de ações humanas que desejariam passar despercebidas para que seus efeitos se recubram de uma aura de mistério divino.

            A mudança que debilitou a alma americana foi precipitada por três grandes e bem sucedidas operações de desinformação que, por serem lançadas desde Washington e não desde Moscou, conseguiram enganar a nação inteira e forjar um novo “senso comum” (no sentido gramsciano do termo) a cuja influência nem os mais conservadores e patriotas escapam por inteiro. Nas três ocasiões as mentiras cuidadosamente elaboradas pelo próprio governo para lançar sobre os EUA a culpa pelas ações maliciosas de seus inimigos não só se tornaram verdade oficial, até hoje repetida uniformemente pela mídia e pelo sistema de ensino, mas se propagaram pelo mundo, criando a imagem monstruosamente deformada que hoje alimenta e legitima o ódio anti-americano por toda parte. Pode parecer absurdo que governantes escolham acumpliciar-se à difamação do seu próprio país para evitar problemas com a URSS ou para salvar sua própria imagem eleitoral, mas foi exatamente isso o que fizeram três presidentes americanos, dois dos quais, por ironia, são apresentados pela retórica esquerdista como personificações exemplares do anticomunismo e do “imperialismo ianque”.

            As três operações foram concebidas nas altas esferas do Partido Democrata, mas pelo menos uma delas com intensa colaboração republicana. Três livros recentemente publicados, um dos quais já comentei aqui e o outro mencionei de passagem (v. Lições da Guerra Fria e A autoridade religiosa do mal), revelam por fim o que se passou por trás do palco nessas ocasiões, as incríveis maquinações de políticos e jornalistas que por interesses imediatistas não hesitaram em favorecer o inimigo e legar às gerações seguintes um país cada vez mais enfraquecido moralmente.

            O primeiro desses episódios foi a operação montada pela administração Harry Truman – e prosseguida fielmente por Eisenhower – para negar ou dissimular a presença maciça de agentes soviéticos em altos postos do governo americano, especialmente no Departamento de Estado, bem como em funções técnicas e administrativas onde tinham acesso a informações secretas de natureza militar.

            A história é contada com detalhes e extensa documentação por M. Stanton Evans em Blacklisted by History. The Untold Story of Senator Joseph McCarthy and his Fight Against America ‘s Enemies , New York , Crown Forum 2007. Enquanto vocês não lêem o livro, podem ouvir um bom resumo feito pelo autor na Heritage Foundation, com comentário de Herbert Rommerstein, ele próprio responsável por importantes pesquisas sobre a infiltração soviética nos EUA (v. Blacklisted by History: The Untold Story of Senator Joe McCarthy).

            Para fazer uma idéia dos riscos estratégicos envolvidos na situação, basta saber que praticamente toda a orientação da política norte-americana na China durante a revolução comunista foi decidida com base em relatórios forjados por agentes soviéticos infiltrados no serviço diplomático americano em Beijing. Mediante falsificações prodigiosas, esses agentes conseguiram persuadir o governo de Washington a sonegar ajuda a seu aliado Chiang Kai-Chek e a apoiar as tropas comunistas de Mao Dzedong, que sem isso jamais teriam conseguido derrubar o governo chinês e instaurar a mais sangrenta das ditaduras genocidas que o mundo já conheceu. O embaixador americano Patrick Hurley percebeu a trama e avisou Washington em tempo, mas suas mensagens foram desprezadas. Sentindo-se insultado, Hurley pediu demissão, sendo substituído pelo general George Marshall, que acreditava naqueles relatórios como se fossem evangelhos revelados. Marshall não era pró-comunista, evidentemente, mas se o seu procedimento no caso não foi um exemplo claro daquilo que Eric Voegelin chamava de “estupidez criminosa”, não sei o que mais possa se enquadrar nessa classificação. Após o recorde genocida de 70 milhões de pessoas, o governo chinês, acumulando bombas atômicas com o dinheiro que lhe é facultado generosamente pelos investidores americanos, é hoje o maior risco de segurança para os EUA.

Alertado sobre esse e outros inumeráveis casos de infiltração soviética, o governo Truman optou por bater no carteiro, fazendo tudo para dar a impressão de que o único perigo sério para a América era o anticomunismo, especialmente o do Senador Joe McCarthy, cuja imagem demonizada ainda permanece viva na memória mundial. Para obter esse resultado, a tropa-de-choque de Harry Truman não hesitou em dar sumiço a documentos essenciais que, só agora revelados, mostram que em substância todas as acusações lançadas por McCarthy eram verdadeiras e até modestas, em comparação com as dimensões reais do problema. Além de sonegar provas e proteger-se por trás de testemunhos falsos, o governo Truman, em vez de afastar os suspeitos, preferiu apadrinhar suas carreiras, permitindo que subissem na hierarquia e continuassem prestando serviços à ditadura soviética com dinheiro dos contribuintes americanos.

Toda uma cultura de antimacartismo que se espalhou pelos livros didáticos, pelo cinema e pelo jornalismo teve origem nesse empreendimento de falsificação proposital. As conseqüências disso prolongam-se até hoje, fazendo com que os americanos, arrependidos de pecados que jamais cometeram contra os comunistas, sintam mais pavor ante a possibilidade de um “retorno à era McCarthy” do que ante a de um ataque conjugado de generais chineses e radicais islâmicos.

O segundo episódio da série veio quando Lee Harvey Oswald matou o presidente John F. Kennedy em 22 de novembro de 1963. Tanto na Casa Branca quanto na CIA ou no FBI, todo mundo sabia que Oswald era um comunista fanático e que seu intuito ao atirar em Kennedy fôra o de frustrar qualquer iniciativa americana contra a ditadura de Fidel Castro. Aterrorizado ante a perspectiva de que uma explosão nacional de revolta anticomunista respingasse sobre o Partido Democrata, reavivando suspeitas do tempo de Harry Truman, o presidente Lyndon Johnson fez o que podia para que a comissão Warren desviasse as atenções desse ponto sensível, explicando o crime de Oswald não como resultado de suas convicções ideológicas, mas de motivações genéricas como instabilidade emocional, problemas de família, etc. Por incrível que pareça, a comissão consentiu em analisar o mais famoso homicídio político do século XX sem falar em política. Vindo em socorro do presidente, a mídia chique e os intelectuais iluminados produziram então uma caudalosa literatura de pretensões pseudo-sociológicas, que lançava a culpa do delito sobre a “cultura americana de violência” e outras generalidades ocas que, no acerto final, eram debitadas na conta dos conservadores. O discurso anti-americanista da New Left, que então começava a ganhar algum destaque, recebeu assim um poderoso apoio vindo do próprio governo de Washington contra o qual ele voltava a sua histérica eloqüência. Esse discurso acabou por se incorporar no “senso comum”, ao ponto de que hoje é repetido rotineiramente pela grande mídia sem que ninguém note nisso nada de estranho. O livro que descreve essa imensa mutação psicológica que nasceu nas altas esferas de Washington e se propagou por toda a cultura americana é Camelot and the Cultural Revolution. How the Assassination of John F. Kennedy Shattered American Liberalism, de James Piereson (New York, Encounter Books, 2007).

O mais irônico em tudo isso é que, se Lee Oswald, convertido ao comunismo desde a adolescência, não podia de maneira alguma ser considerado representativo das correntes reacionárias supostamente responsáveis pela “violência americana” que o teria induzido ao homicídio, muito menos poderia sê-lo o fanático palestino Sirhan Bishara Sirhan, que em 1968 assassinou o irmão do ex-presidente, Robert Kennedy. Não por coincidência, hoje sabemos que a Autoridade Palestina da Yasser Arafat foi de cabo a rabo uma criação da KGB (v. http://www.weizmann.ac.il/home/comartin/israel/pacepa-wsj.html), mas, na época, a incansável fábrica de mitos da elite esquerdista conseguiu fazer que dois crimes praticados por agentes pró-comunistas contra dois políticos notoriamente anticomunistas parecessem obras da “direita reacionária”, e que essa versão rigorosamente invertida da realidade se incorporasse à psique americana tão profundamente que será preciso muitas décadas para desarraigá-la, se ainda for possível.

A terceira grande mentira, também definitivamente incorporada aos rituais do masoquismo pseudo-moralista da América contra si mesma, foi igualmente obra de Lyndon Johnson. Após ter dificultado por todos os meios possíveis a ação das tropas americanas no Vietnã, Johnson tirou a conclusão lógica da sua própria estratégia, transfigurando a vitória em derrota. Em 31 de janeiro de 1968, o exército norte-vietnamita de Ho Chi-Minh lançou uma grande ofensiva contra os americanos e sul-vietnamitas. A idéia era ocupar de uma vez todas as cidades do Vietnam do Sul, a começar pela capital, Saigon, preparando um levante geral com o auxílio dos guerrilheiros vietcongues. Militarmente, a ofensiva foi um fracasso monumental. Os comunistas perderam em poucos dias cinqüenta mil soldados e todos os objetivos que haviam conquistado. Mesmo o famoso ataque à embaixada americana em Saigon foi um fiasco: nem um único vietcongue conseguiu entrar no edifício – todos morreram na porta. Como, no entanto, o exército americano, procedendo segundo a norma de praxe nessas ocasiões, retirasse velozmente os funcionários civis por meio de helicópteros colocados no topo da embaixada, as imagens da retirada foram exibidas pela TV americana como provas de pânico geral e indício certo da derrota iminente do Vietnam do Sul. Quando o presidente Johnson viu essas cenas assim interpretadas pelo veterano comentarista de TV Walter Cronkite, ponderou: “Se perdi o Cronkite, perdi a nação.” O comandante norte-vietnamita, general Giap, deu-lhe toda a razão, ao admitir que sua principal arma contra o Vietnã do Sul tinha sido a mídia americana. Endossando a lenda da derrota americana, Johnson impôs a seu país uma humilhação que a mídia elegante e a intelectualidade tagarela não cessaram de celebrar desde então como um castigo justo imposto ao povo reacionário, fanático e violento que perseguira inocentes na era McCarthy e assassinara dois Kennedys…

Só agora, com o primeiro volume do livro consagrado pelo historiador Mark Moyar à guerra do Vietnã, a realidade da vitória artificialmente travestida em derrota começa a aparecer. Leiam Triumph Forsaken. The Vietnam War 1954-1964 (Cambridge University Press, 2006).

Nenhum outro país do mundo teve tantos traidores por milha quadrada quanto os EUA. Toda a mitologia anti-americana que circula no mundo originou-se em Washington e Nova York – com nada mais que leves empurrões iniciais da KGB. Como os EUA conseguiram sobreviver a tão graves mentiras lançadas contra o país por seus próprios governantes e por seus mais destacados líderes intelectuais, eis algo que só pode ser explicado pela obstinada permanência residual do apego popular às tradições americanas. É verdade que nós, brasileiros, não precisamos vir à América do Norte para conhecer um povo bom governado por trapaceiros. Mas a pergunta que não me sai da cabeça é se os trapaceiros de Brasília teriam subido tão alto sem a ajuda dos de Washington.

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