O Imbecil Coletivo: Nota sobre Charles S. Peirce

O Imbecil Coletivo, 5a. ed., pp. 68-74.

E Charles Sanders Peirce gerou William James, que gerou John Dewey, que gerou Richard Rorty, que, desembarcando no Brasil, gerou entre os nativos o maior frisson e confusão mental. Remontemos às origens.

Peirce diz que o único significado de uma idéia reside nas conseqüências práticas que dela se possa inferir. Esta tese é o miolo da sua filosofia e o que origina sua denominação de pragmatismo: pragma, em grego, são os assuntos da vida prática. Ironicamente, a tese é inaplicável na prática, porque existe uma diferença significativa e não raro uma separação abissal entre as conseqüências práticas que se pode inferir de uma idéia mediante conjetura lógica e as conseqüências práticas que ela de fato vem a desencadear no decorrer do tempo.

Por exemplo, do marxismo pode-se inferir logicamente a revolução proletária e o estado sem classes, como conseqüências pretendidas. Mas, na prática, suas conseqüências reais foram um golpe militar e a instauração da ditadura de uma nova classe. Qual dessas duas ordens de conseqüências representa o “verdadeiro significado” do marxismo? Peirce diz que o significado está na “soma” das conseqüências, mas no caso esta soma dá zero, de vez que as duas linhas de conseqüências, a pretendida e a alcançada, se excluem logicamente. Sendo assim, só nos restaria dizer que, do ponto de vista pragmático, o marxismo não tem significado nenhum, mas isto seria contraditório com o fato de que teve conseqüências práticas reais.

De outro lado, como distinguir entre as conseqüências práticas que uma idéia desencadeia por si mesma e aquelas que decorrem de sua mistura acidental com outras idéias diversas, heterogêneas e contraditórias, ou ainda dos percalços imprevisíveis que acompanham sua difusão na sociedade humana? Para poder fazer essa distinção, teríamos de reconhecer que a idéia tem algum significado independentemente e antes de quaisquer conseqüências práticas que possa desencadear. Mas isto seria confessar que ela tem significado enquanto mero esquema representativo, enquanto imagem do real, o que seria a negação de todo pragmatismo. A alternativa seria admitir que as conseqüências acidentais fazem parte do significado das idéias, o que nos levaria à conclusão de que qualquer idéia pode significar qualquer coisa, dependendo do que os acidentes de percurso venham a fazer com ela durante o processo de sua difusão. Raciocinando por esta linha, chegaríamos à conclusão de que a umbanda faz parte do significado originário da idéia cristã, já que os acidentes da História nacional produziram a fusão dessa idéia com os ritos africanos, ou que a AIDS é parte intrínseca do significado do amor, de vez que o amor fez algumas pessoas contraírem AIDS. Do mesmo modo, nada impediria que interpretássemos o pragmatismo como um idealismo, já que Royce, discípulo de Peirce, se tornou por acaso um idealista absoluto.

Em descarada contradição consigo mesmo, Peirce afirma por outro lado que o método científico deve buscar apenas a verdade, independentemente de suas conseqüências práticas. Que é que a idéia do método científico tem de tão especial, para conseguir ser dotada de significado independentemente de suas conseqüências práticas, se estas, segundo o mesmo Peirce, são o único significado possível de uma idéia?

Mais curiosa ainda é a negação peirceana de toda evidência intuitiva. Segundo Peirce, não temos nenhuma faculdade intuitiva e todo o nosso conhecimento é constituído de pensamentos feitos com signos, com base no conhecimento dos fatos externos. Porém estes fatos externos são conhecidos intuitivamente ou são também apenas signos? E como algo que não foi percebido intuitivamente poderia ser signo do que quer que fosse? Como conciliar a negação da evidência intuitiva com o conceito de “signo”? Um signo, diz Peirce, “é algo que, para alguém, equivale a alguma coisa sob algum aspecto”. Como poderia haver então qualquer signo sem a evidência intuitiva desse algo, bem como da identidade ou diferença entre o “algo” e o “alguma coisa”? Caso o bendito “algo” seja também somente signo e não uma presença efetiva captada intuitivamente, aí teremos signos de signos de signos e assim por diante infindavelmente, o que simplesmente liquidará com qualquer possibilidade do uso prático de signos, até mesmo como mentiras convencionais.

Pior ainda, não vejo como conciliar a negação da evidência com a confiança que Peirce tem no poder da lógica. A lógica nada é sem o princípio de identidade, o qual ou é uma evidência intuitiva ou é uma simples convenção aceita pela comunidade científica. Caso seja uma simples convenção, sua validade depende de um consenso numérico, o que o reduziria à mera “reafirmação tenaz de uma autoridade” (sic), método de validação que o próprio Peirce considera anticientífico.

Para Peirce, a evidência intuitiva tem validade meramente subjetiva, já que varia de um indivíduo para outro. Ele confunde aqui a evidência, no sentido lógico-ideal, com o ato psicológico de intuição — naturalmente subjetivo e falível —, e este, por sua vez, com o mero sentimento de certeza, que não acompanha somente as intuições mas também as crenças, desejos e alucinações; enfim, ele confunde o lógico com o psicológico, e isto é propriamente a marca registrada do psicologismo, do qual o pragmatismo não é senão uma versão (e contra o qual não é preciso argumentar mas somente remeter à “Introdução” das Investigações Lógicas de Husserl1).

Peirce pergunta: Se a intuição é uma percepção direta, como podemos saber que temos intuições? Podemos, por intuição, saber que temos intuições? Ele considera isto um argumento fulminante contra a intuição, mas a resposta a esta última pergunta é simplesmente “sim”. Se não intuo que intuo, nada intuo. A intuição é necessariamente acompanhada de autoconsciência, senão se confundiria com a pura e simples sensação corporal. Se vejo, mas não intuo que vejo, não posso falar de intuição visiva, mas apenas de sensação ótica, desacompanhada de consciência cognitiva, como aliás é óbvio. Um homem que, como Peirce, não reconhece intuir que intui, ou está mentindo ou está num estado de cisão esquizofrênica, negando a própria autoconsciência. Só que ele é um pouco mais pretensioso do que os esquizofrênicos comuns, e exige que também nós neguemos a nossa.

Se a evidência intuitiva não tem valor, o indivíduo sozinho nada pode saber, e, logo, diz Peirce, “é necessário toda uma comunidade de investigadores para testar objetivamente a veracidade de qualquer idéia”. Porém, se cada um desses investigadores também não é capaz de evidência intuitiva e certeza pessoal universalmente válida, quem fará a soma de seus pontos de vista para sintetizá-los numa “verdade objetiva”? Peirce parece crer que a comunidade acadêmica existe de per si, como uma substantia prima aristotélica, que ela tem uma autoconsciência unitária e capaz de certeza, ausente em cada um dos indivíduos que a compõem. A comunidade acadêmica é um ser dotado de consciência, formado pela soma de vários indivíduos inconscientes. Peirce é um transcendentalista sociológico.

Ainda desse ponto de vista, se o único significado de uma idéia reside em suas conseqüências práticas, que conseqüências práticas se inferem da negação da intuição individual? Infere-se que cada indivíduo humano, não podendo confiar na sua própria autoconsciência, negará todas as evidências intuitivas que lhe cheguem e, não podendo apoiar-se jamais em si mesmo, terá de render-se à autoridade da onipotente comunidade acadêmica. O resultado prático disto é a redução da humanidade a um rebanho de animais dóceis, incapazes de entendimento pessoal e necessitados sempre do aval da autoridade “científica”2.

Mais fundo ainda, Peirce afirma que nenhuma verdade constitui uma evidência em si, mas deve ser corroborada por alguma prova independente. Esquece-se de dizer que esta prova independente também nada vale em si e necessita de outras provas independentes e assim por diante infindavelmente, o que termina por neutralizar qualquer significado possível da afirmação de que nenhuma verdade é evidente em si.

As verdades evidentes por si próprias, diz ele ainda, nada significam em ciência, e devem ser corroboradas por um critério científico, “objetivo e público”. Ora, a validade de qualquer prova assenta-se em última análise em princípios lógicos, que ou são evidentes de per si ou são convenções arbitrárias. Peirce não aceita nem que haja verdades evidentes de per si nem que as convenções arbitrárias valham alguma coisa. Assim, simplesmente não há princípios lógicos que possam fundamentar qualquer prova que seja. A única alternativa que resta a Peirce é apelar para a autoridade do “público” científico, isto é, para a autoridade do maior número, à qual por outro lado ele mesmo nega qualquer validade científica. É tudo um beco sem saída, e talvez por isto mesmo esta “filosofia” exerça tanto fascínio numa época que sente um requintado prazer em deixar-se prender em toda sorte de labirintos psicológicos.

Segundo Peirce, a doutrina da intuição, ao afirmar que os pensamentos podem diretamente encarnar seus objetos, baseia-se na confusão entre signo e coisa significada. Bobagem. A intuição não é um pensamento ou uma representação, mas uma presença direta, como a desta folha diante dos olhos do leitor, a qual se impõe à sua consciência, sem signos e sem “pensamento”. Se algo é captado por meio de signos, não há nisto intuição alguma. Parece que Peirce confunde a intuição em ato com a mera lembrança de um objeto recém-intuído — a qual é, certamente, signo. Qualquer um sabe a diferença entre intuir uma presença e recordar-se de um ausente. Só Peirce não sabe, ou faz que não sabe3.

Assim, malgrado sua apologia da prática, o pragmatismo é refratário a qualquer aplicação prática, por ser intrinsecamente contraditório.

Também é desastroso o resultado a que se chega quando se aplica ao pragmatismo o método pragmatista de definir uma idéia por suas conseqüências práticas. A conseqüência prática fundamental do pragmatismo é a absorção das consciências individuais nulificadas numa onipotente “comunidade científica” dotada de poderes trans-humanos e incapaz, por sua vez, de obter a prova de suas crenças senão pelo voto da maioria nas sessões acadêmicas. Esta é a sua conseqüência lógica, deduzível do seu mero conceito, como foi também sua conseqüência real, historicamente verificada. É o que se vê pelo fato de que Richard Rorty, o último rebento da família peirceana, já reconhece explicitamente como único critério válido do conhecimento a lei do maior número, mostrando assim ao mundo a verdadeira cara do pragmatismo, que nem seu fundador teve a coragem de olhar de frente.
NOTAS

  1. Na nossa imprensa cultural é uso dizer a toda hora que tal ou qual teoria “foi derrubada”, “foi abandonada”, “caiu”, etc. Tais expressões irresponsáveis só servem para ludibriar o público, induzindo-o a confundir a refutação científica suficiente e o mero desuso ou esquecimento de uma teoria. Muitas teorias saem da moda sem jamais terem sido refutadas ou sequer postas em discussão. Outras, embora irrespondivelmente refutadas, continuam envoltas em prestígio. Na história das ciências e da filosofia, a refutação completa de uma teoria qualquer é antes um caso raro do que uma regra geral. Ironicamente, um dos exemplos clássicos de refutação exaustiva em filosofia é a que Husserl fez do psicologismo. Isto foi na virada do século e, não obstante, o psicologismo continua a aparecer em público como se ainda fosse uma teoria respeitável — exatamente como na tirada de Swift sobre o sujeito que morrera uns dias antes mas que continuava a circular pelas ruas por não ter sido avisado de seu próprio falecimento.
  2. Um dos efeitos mais nocivos da disseminação dessa crença é a total alienação do indivíduo em relação às suas sensações mais imediatas e patentes. Um homem psicologicamente são deve ter, por exemplo, uma idéia aproximativamente válida de seu estado de saúde corporal pela simples sensação de vigor, bem-estar e harmonia das funções. O cidadão médio norte-americano — intoxicado por cem anos de pragmatismo — não consegue mais ter essa autoconsciência espontânea, e confia mais em exames de laboratório do que nas suas sensações pessoais. Não vai ao médico por sentir-se doente, mas para que o médico lhe informese deveria sentir-se doente, dado o seu estado “objetivo” de saúde — “objetivo” significando aí (valha-me Deus!) a relação entre os resultados dos exames laboratoriais e a “média” admitida como sã. Eis como o progresso da ciência pode caminhar de mãos dadas com o aumento da burrice.
  3. Fazer que não sabe, e acabar não sabendo mesmo — eis a essência do raciocínio imbecilcoletivo. Esta essência manifesta-se sob uma variedade de formas diferentes, que vão desde a “linha justa” dos velhos PCs, que suprimia da História os eventos e personagens incompatíveis com a versão aprovada pelo consenso unânime, até um tipo de “rigor científico” que consiste em negar a existência de tudo aquilo quanto a comunidade científica do presente ainda não tenha meios de provar que existe — critério cujo únicofundamento lógico é a fé na onisciência da comunidade acadêmica e na completa nesciência de quem esteja fora dela. Outra manifestação do mesmo raciocínio é o critério jornalístico de definir como importantes somente os eventos que saem nos jornais, critério este que um dos melhores profissionais do ramo — Rolf Kuntz — denominou autofágico.

 

O Imbecil Coletivo: Rorty e os animais

RORTY E OS ANIMAIS

O Imbecil Coletivo, 5a ed., pp. 60-67.

O erro fala com voz dupla, uma das quais proclama o falso e a outra o desmente; e é um contender de sim e não, que se chama contradição… O erro condena-se, não pela boca do juiz, mas ex ore suo.” — BENEDETTO CROCE.

“A filosofia teve origem na tentativa de escapar para um mundo em que nada mudasse. Platão, fundador dessa área da cultura a que hoje chamamos ‘filosofia’, supunha que a diferença entre o passado e o futuro seria mínima.”

Assim principia o artigo de página inteira que o Sr. Richard Rorty publicou na Folha de S. Paulo no último dia 3 de março. Quando comecei a trabalhar no jornalismo, trinta anos atrás, um parágrafo desse teor seria impiedosamente riscado pelo copy desk, que ainda deixaria ao autor da pérola um bilhetinho malcriado, mais ou menos nos seguintes termos: “Mas como, ó espertinho, como poderia Platão desejar tão ansiosamente fugir para um mundo de estabilidade sem mudança, se neste mesmo mundo ele já não via grande diferença entre passado e futuro?” Hoje em dia a bobagem flagrante é publicada como alta manifestação do pensamento filosófico e não aparece um copypara dizer que ela não é aceitável nem mesmo como tentativa de jornalismo.

Mas, além de inaugurar seu artigo com um ostensivo contra-senso, o Sr. Rorty ainda pretende fazer dele o fundamento para conclusões que atentam contra as verdades históricas mais elementares. Pois, prossegue ele: “Foi só quando começaram a levar a história e o tempo a sério que os filósofos colocaram suas esperanças quanto ao futuro deste mundo no lugar antes ocupado por seu desejo de conhecer um outro mundo. A tentativa de levar o tempo a sério começou com Hegel.”

Para começar, é manifesto que Platão, como todos os gregos, via sim muita diferença entre passado e futuro: se o fato mesmo da mudança não lhe parecesse digno de atenção, ele não faria esforço nenhum para tentar descobrir um padrão imutável por trás da transitoriedade das coisas. Em segundo lugar, a preocupação com “o futuro deste mundo” foi uma das tônicas do projeto platônico, obra de reformador social e político antes que de puro contemplador teórico.

Em terceiro, datar de Hegel o início da preocupação com a História e o tempo é saltar sobre dois milênios de cristianismo, uma religião que se diferenciou da cosmovisão grega justamente por sua ênfase no caráter temporal e histórico da vida humana — coisa que já está bem clara em Sto. Agostinho.

Quarto. Por que supor uma contradição entre a preocupação com a História e o desejo de eternidade, quando justamente é a união indissolúvel desses dois temas a inspiração básica do próprio Hegel?

Quinto. Quando o Sr. Rorty interpreta o desejo de eternidade como uma “escapada” ou “fuga”, ele está fazendo mero jogo de palavras, aliás facilmente reversível: o impulso de revolucionar o mundo, de acelerar a mudança histórica também pode, com igual verossimilhança, ser interpretado como uma hübrys, uma agitação alienante, uma válvula de escape ante as realidades permanentes e inelutáveis, como a morte, a fragilidade física, a ignorância de nosso destino último, etc. Essas interpretações pejorativas só têm valor retórico, se tanto. Dá-las como pressupostas e inquestionáveis não é nada honesto.

Baseado em todos esses pressupostos, o Sr. Rorty encerra a abertura do seu artigo com a declaração de que a influência conjunta de Hegel e Darwin distanciou a filosofia da questão ‘O que somos?’ e levou-a para ‘O que poderíamos vir a ser?’. Essa pomposa generalização histórica omite para o leitor a informação de que para Hegel essas duas questões eram rigorosamente a mesma (Wesen ist was gewesen ist) e de que nisto o filósofo de Jena, longe de se afastar do pensamento grego, dava apenas desenvolvimento lógico à doutrina aristotélica da enteléquia, segundo a qual a essência não é a forma estática de um ser num dado momento do tempo, mas a meta subentendida no seu desenvolvimento. Omite, mais ainda, a informação de que Darwin, por seu lado, nunca deu um pio a respeito nem de ‘O que somos’ nem de ‘O que podemos vir a ser’, mas só se interessou por ‘O que fomos’; e confunde portanto a teoria da evolução com a ideologia evolucionista que é obra de Spencer e não de Darwin.

Num único parágrafo, são tantos os subentendidos absurdos, que talvez seja a própria força compressiva da falsidade rapidamente injetada em seu cérebro que deixe o leitor zonzo, incapaz de perceber que está diante de um charlatão barato, travestido em filósofo por obra de puro marketing.

Mas não creio que o Sr. Rorty escreva assim por mera inépcia. Ele sabe que mente — e o segredo do fascínio que ele exerce sobre hordas de jovens pedantes consiste precisamente em que, descrendo de toda verdade, eles invejam o poder de mentir bem. Há muita gente que sonha em ser Richard Rorty quando crescer.

Mas querem saber mesmo quem é esse sujeito? Querem ter uma idéia de quanto é ridículo honrá-lo como filósofo? Pois então, indo um pouco além do que ele disse na Folha, acompanhem este breve exame das suas concepções mais gerais.

“A linguagem não é uma imagem do real”, assegura o Sr. Rorty, filósofo pragmatista e antiplatônico. Devemos interpretar essa frase no sentido que o Sr. Rorty chama “platônico”, isto é, como negação de um atributo a uma substância? Seria contraditório: uma linguagem que não é imagem do real não pode nos dar uma imagem real das suas relações com o real. Logo, a sentença deve ser interpretada no sentido pragmatista: nada afirma sobre o que é a linguagem, mas indica apenas a intenção de usá-la de um determinado modo. A tese central do pensamento do Sr. Rorty é uma declaração de intenções. “A linguagem não é uma imagem do real” significa rigorosamente isto e mais nada: “Eu, Richard Rorty, estou firmemente decidido a não usar a linguagem como uma imagem do real”. É uma tese “irrefutável”: não se pode impugnar logicamente uma expressão da vontade. Não há, pois, nada a debater: dentro dos limites da decência e do Código Penal, o Sr. Rorty tem o direito de usar a linguagem como bem entenda.

O problema aparece quando ele começa a querer nos induzir a usar a linguagem exatamente como ele. Afirma ele que a linguagem não é uma representação da realidade, e sim um conjunto de ferramentas inventadas pelo homem para realizar seus desejos. Mas é uma falsa alternativa. Um homem pode muito bem desejar utilizar essa ferramenta para representar a realidade. Parece que Platão desejava exatamente isso. Mas o Sr. Rorty nega que os homens tenham outros desejos senão o de buscar o prazer e fugir da dor. Que alguns declarem desejar algo mais deve ser muito doloroso para ele, pois, caso contrário, não haveria nenhuma explicação pragmatisticamente válida para o empenho que ele coloca em mudar a clave da conversa. Diante da impossibilidade de negar que essas pessoas existam, o pragmatista dirá talvez que aqueles que buscam representar a realidade são movidos pelo desejo de fugir da dor tanto quanto os que preferem inventar fantasias; mas esta objeção só terá mostrado, precisamente, que não se trata de coisas que se excluam uma à outra. A alternativa rortyana é falsa nos seus próprios termos.

Diante dessa dolorosa constatação, o Sr. Rorty alega que sua filosofia consiste em propor um vocabulário novo, no qual serão abolidas as distinções entre absoluto e relativo, aparência e realidade, natural e artificial, verdadeiro e falso. Ele reconhece que não tem nenhum argumento a oferecer em defesa da sua proposta, de vez que ela, “não podendo ser expressa na terminologia platônica”, está acima, ou abaixo, da possibilidade de ser provada ou refutada. “Por isto, conclui ele em nome de todos os pragmatistas, nossos esforços de persuasão assumem a forma de uma inculcação gradual de novos modos de falar“. O Sr. Rorty, portanto, não pretende convencer-nos da veracidade de suas teses: pretende apenas “inculcar-nos gradualmente” seu modo de falar, uma vez adotado o qual iremos gradualmente nos esquecendo de perguntar se o que se fala é verdadeiro ou falso. Mas inculcar gradualmente nos outros um hábito lingüístico, colocando-o ao mesmo tempo fora do alcance de toda arbitragem racional, é pura manipulação psicológica. Saímos, portanto, do terreno da discussão filosófica — que o rortyanismo recusa como “platônico” — para entrar no da sutil imposição de vontades mediante a repetição de slogans e a mudança de vocabulário. É o que George Orwell denominou Newspeak, a Novilíngua de1984.

Essa é talvez a razão profunda e secreta pela qual, após ter declarado que os homens nada mais são do que bichos em busca do prazer, e de ter reduzido a linguagem a um instrumento para os bichos mais fortes dominarem os mais fracos, o Sr. Rorty ainda pode proclamar que “nós, os pragmatistas, não nos comportamos como animais”, quando seu discurso parecia indicar precisamente o contrário. É que eles são, na verdade, amestradores de animais. Um domador de cavalos não argumenta com os cavalos: usa apenas da influência psicológica para lhes “inculcar gradualmente” os hábitos desejados.

Como todos os amestradores, os pragmatistas são movidos por intenções piedosas: “O que nos importa é inventar meios de diminuir o sofrimento humano.” É com esta nobre finalidade que o Sr. Rorty propõe a abolição das oposições entre o verdadeiro e o falso, o real e o aparente, o absoluto e o relativo, etc., que tanto vêm fazendo sofrer os estudantes de filosofia, e sugere a adoção universal da Novilíngua. Uma vez aprovada esta medida, os debates filosóficos já não serão, como antigamente, um desconfortável entrechoque de argumentos e provas, mas um esforço para tornar cada vez mais prazerosa e indolor a inculcação gradual de novos hábitos na mente da platéia. As novas teorias já não chamarão em seu socorro as pesadas armas da lógica, mas os delicados instrumentos do marketing, com distribuição de brindes aos novos adeptos e sorridentes coelhinhas da Playboy nas capas das teses acadêmicas.

Mas a contribuição decisiva do Sr. Rorty ao alívio do sofrimento humano é o combate que ele move contra a idéia de que a vida possa ter um sentido. É compreensível que, num universo que faça sentido, o Sr. Rorty deva se sentir muito mal — um estranho no ninho, exatamente como se sentiria um não-pragmatista num mundo desprovido de sentido. Porém o Sr. Rorty não vê o menor proveito em polemizar com os que não sentem como ele. A controvérsia entre a existência ou inexistência de um sentido imanente no cosmos, diz ele, “é demasiado radical para poder ser julgada a partir de algum ponto de vista neutro”. Não há meio de argumentar: tudo o que um homem pode fazer é expressar o seu desejo. Portanto, novamente, a tese do Sr. Rorty é uma declaração de intenções: ele, Richard Rorty, fará tudo o que estiver ao seu alcance para que a vida não tenha o menor sentido. Ele faz isto aliás com extrema dedicação e competência. Há quem ache que a falta de sentido é que torna os seres humanos infelizes1, mas o Sr. Rorty não está nem aí. Ele defende o pluralismo democrático, a livre expressão de todos os pontos de vista. Apenas, o confronto dos pontos de vista, não podendo ser arbitrado por nenhum meio intelectualmente válido, se torna apenas uma concorrência entre desejos, cujo desenlace será determinado pela pura habilidade manipulatória do partido vencedor.

Quem conhece o Sr. Rorty pessoalmente garante que ele é um primor de simpatia. Acredito. Mas duvido que abane o rabo. Afinal, não é ele o animal da história2.

NOTAS

  1. Viktor Frankl por exemplo, o nunca assás louvado psiquiatra judeu, que no inferno dos campos de concentração descobriu que um sentido da vida é mais necessário ao homem do que a liberdade mesma. Frankl disse a um público norte-americano: “Não foram apenas alguns ministérios de Berlim que inventaram as câmaras de gás de Maidanek, Auschwitz, Treblinka: elas foram preparadas nos escritórios e salas de aula de cientistas e filósofos niilistas, entre os quais se contavam e contam alguns pensadores anglo-saxônicos laureados com o Prêmio Nobel. É que, se a vida humana não passa do insignificante produto acidental de umas moléculas de proteína, pouco importa que um psicopata seja eliminado como inútil e que ao psicopata se acrescentem mais uns quantos povos inferiores: tudo isto não é senão raciocínio lógico e consequente.” (Sêde de Sentido, trad. Henrique Elfes, São Paulo, Quadrante, 1989, p. 45.)
  2. Relendo em provas este capítulo, ocorre-me lembrar ao leitor que uma proposta como a do Sr. Rorty contém em si, junto com a recusa da prova racional, um batalhão de anticorpos contra qualquer tentativa de refutá-la na serenidade de uma discussão acadêmica. Uma “inculcação gradual” nunca se bate de frente contra argumentos, mas aproveita-se dos momentos de distração do interlocutor para subrepticiamente induzir nele uma mudança de estado de espírito. Seu modus argumentandi não é o do filósofo ou mesmo o do retórico, mas o do programador neurolinguístico: atua por baixo do limiar da consciência, após ter induzido a vítima a relaxar suas defesas por meio de uma conversa amena. Contra esse tipo de atuação, a única defesa possível é enfrentar o sedutor no terreno que ele escolheu: no da ação psicológica. Não se trata, portanto, de argumentar, mas de desmascarar, tal como em psicanálise. Durante a passagem do Sr. Rorty pelo Brasil, fiquei estarrecido com a incapacidade de seu público de perceber a diferença entre argumentação e sedução: se o próprio Sr. Rorty admite que não adianta argumentar, que outra coisa poderiam ser seus aparentes argumentos senão uma manobra diversionista, um trompe l’oeil para manter ocupada a atenção consciente enquanto por baixo e a salvo de toda fiscalização crítica o inculcador gradual vai manipulando discretamente o fundo da alma do distraído interlocutor? Mas qual mocinha caipira seria tola de tentar livrar-se de um sedutor mediante frases polidas que prolongassem a conversa? Para expulsar o sedutor é preciso recusar-lhe, desde logo e definitivamente, qualquer aceno de simpatia. Hoje em dia são muitas as correntes de opinião que, à argumentação lógica, preferem a influência psicológica. Elas não tentam conquistar nossa adesão, mas monopolizar nossa atenção. Prolongando uma conversa que elas mesmas reconhecem não poder chegar a resultados intelectualmente válidos, envolvem-nos gradualmente na sua atmosfera, de modo que, sem termos jamais concordado com elas explicitamente, de repente estamos falando na sua linguagem, pensando segundo as suas categorias, julgando segundo os seus valores, agindo segundo as suas regras. Obtêm assim, por cima ou por baixo de nossa discordância superficial, nossa mais completa obediência. Não há meio de enfrentá-las senão por ostensivas manifestações de antipatia, de modo a fazê-las entender que aquilo que nos separa delas não é uma mera discordância intelectual, mas também uma categórica rejeição moral; que, em suma, não gostamos da sua conversa. O tom do presente livro tem portanto um sentido profilático.

 

DESCARTES AND THE PSYCHOLOGY OF DOUBT

Descartes Colloquium, Brazilian Academy of Philosophy
Faculdade da Cidade, Rio de Janeiro, May 9th 1996

Translated by Pedro Sette Câmara

“La verdad es lo que es
y sigue siendo verdad
aunque se diga al revés.”

(The truth is what is and does
continue being the truth
even though one says it is not)

Antonio Machado

Descartes assures us that the sequence in the Meditationswhich takes him from the questioning of the outer world to the discovery of the Cogito axiom isn’t just a logical model, a hypothetical articulation of thinkable thoughts, but rather an actual experience, a narrative of thoughts which were thought. But, how trustworthy might have been his self-observation? Can we take the faithfulness of what he reported for granted? Furthermore, can we take for granted the paradigmatic universality of that sequence of thoughts, admitting it will happen in equal or similar fashion, with similar or equal results, to anyone who undertakes the reexamination of the architecture of one’s beliefs from its very foundations? Is it possible for a man to have a similar experience, or, on the contrary, it was Descartes who, in fact, had an entirely different experience, allowing himself to be deceived and taking as a description what is purely an invention?

The possibility of doubting our sensations, our imaginations and our thoughts is something anyone can testify. The possibility of putting the whole set of our representations on hold, reducing the “world” to a vanishing hypothesis, is also sure.

But, after performing all these operations, Descartes assures us of having found, at last, the certainty of doubt: doubt is a thought, and in the instant I doubt, I cannot doubt that I am thinking the doubt. The self-confidence in the metaphysical solidity of the thinking ego comes forth as a powerful psychological compensation for the lack of confidence in the reality of the “world”.

Even though very keen to describe the thoughts which precede the state of doubt, Descartes is oddly evasive when it comes to the state of doubt itself. Actually, he doesn’t describe it: he only affirms it, and, jumping immediately from description to deduction, he begins to draw the logical consequences which the verification of this state imposes on him.

Let us do what Descartes did not. Let us try to stop the impulse of consequentialist automatism, and keep ourselves for a moment at the description of the state of doubt.

In the first place, it is not a state — a static position in which a man may rest unchangeably, just as he gets sad or in contemplation, still or lying down. It is rather an alternation between a “no” and a “yes”, an impossibility of resting at one of the terms of an alternative without the other coming to dispute the primacy. For either “no”, or “yes”, once accepted as definitive terms, would immediately eliminate doubt, which consists of antagonistic coexistence and of nothing else. But this antagonism isn’t static: it is mobile. The doubtful mind goes endlessly from on term to the other, without reaching a support point where to rest and “be”. And, since each of the terms is the other’s denial, the mind would not be able to rest at any of them without, for an instant, denying the other: precisely at that instant, the mind is not in doubt – it is either affirming or denying, it is affirming one thing and denying the other, even though it may not be able to persevere in the affirmation or in the denial without thinking of a thousand reasons to abandon either. And, in the instant of affirmation or denial, doubt suppresses itself as such and fights for its establishment as affirmation or denial; but it fails, and it is of this failure that doubt is made of. What follows is an inevitable conclusion: a doubt that does not doubt itself, a doubt that, suspending the alternation, imposes itself as a “state” and thus remains, is impossible. In taking doubt as a “state”, omitting that it is an alternation between two antagonistic instants, Descartes reifies it and takes it as a certainty: “I cannot doubt that I doubt in the instant I doubt”, a sentence Descartes takes as an expression of the most conspicuous obviousness, is actually the expression of logical nonsense and of psychological impossibility. What would be more correct to say is that, in doubting, I doubt about everything, doubt itself included. Doubt is not a state: it is the succession and coexistence of antagonistic states, it is a not being able to be.2

What leads Descartes into error is the fact that he takes doubt for denial, or, better yet, for hypothetical denial. I can, actually, make up a hypothetical denial and repeat it indefinitely. I can even amplify it – hypothetically, of course – to a point where it embraces what I consider to be the whole extension of my knowledge. But I cannot “doubt” about my own knowledge without, at the same time, restating it, in the sense that this is the only way through which one is able to alternate its affirmations and denials in the vicious circle of doubt.

Set forth in these terms, the cogito axiom is no more than a new and more obscure enunciation of the old argument of Socrates against the skeptical: it is impossible to deny without affirming the denial, thus without affirming something. But, from this point of view, the Cartesian discovery is reduced to very little: far from having given a new foundation, critical or negative, to the world of knowledge, he makes nothing but demonstrating again, through the crooked path of a false psychological self-description, the logical primacy of affirmation over denial. However, the acknowledgement of this primacy is, simultaneously, the denial of doubt as a founding act. The discovery of Descartes is a non-discovery, it is the discovery of the impossibility of discovering anything through a way defined, more than any other thing, by an intolerable self-contradiction.3

But, with that, I have solely demonstrated that doubt, as such, cannot serve as a critical basis. I did not expose yet the bases which, in their turn, make doubt possible. And this is the decisive point, for if there is something “behind” doubt, it is this something, and not doubt, which constitutes the firm support point Descartes looked for, and which he naïvely believed to have found in the acknowledgement of doubt.

Descartes says that doubt is a certainty in the instant it is thought. But that is false: what is a certainty is the later reflection which affirms the reality of the experience of doubt. In the very instant of doubt, what happens is, as we have seen, an alternation between affirmation and denial, and hence the impossibility of affirming any state, if by state we understand, as one should, the coincidence of a factual judgement and the feeling which grants its negative or positive value, as in sadness, hurry, anger, hope etc. Doubt is not a state, for the simple reason that in it the feeling, which can be of anxiety, of hope, of curiosity, etc., does not coincide with a specific judgement, but emerges precisely from the impossibility of affirming or denying a judgement. It is rather a moment of suspension between states, an agitated void that contains the germs of various possible states – at least two – and never settles upon any of them without its own suppression. Therefore man never “is” in doubt: he simply passes by it, precisely as a transition between states. It is only when doubt is no longer a present experience and becomes the object of reflection that arises this certainty, purely retrospective and narrative: “I could not, up to this moment, establish myself in affirmation or denial.” Thus, there is not only a logical distinction but an actual separation between doubt as a present experience and doubt as an object o recollection and reflection – and it is the latter that is certain and indubitable4, not the first, even though Descartes takes one for the other and forwards to us as a direct intuitive evidence what is actually the object of later reflection. It is only this reflection that, in giving it a name, can endow with the oneness of a “state” that which is actually a succession of states which mutually suppress each other, or the coexistence of purely potential states, each of them being able to actualise itself only at the cost of the others’ exclusion. Endowing the void of alternation with the positive consistence of a “state”, Descartes at the same time transforms doubt into mere hypothetical denial, taking then as an actual psychological state what is rather simply the logical concept of a possible state.

To make things even worse, in the reflective affirmation of the reality of doubt are contained, as premises, two beliefs: one in the continuity of conscience between doubt and reflection, and other in the knowledge of the distinction between truth and falsehood.

1o Anyone who reflects about doubt is aware of still being “the same” who had the doubt; and if the act of doubting is formally distinct from the act of reflection, the conscious ego, in reflecting, knows he is the subject of two distinct acts – logically distinct and temporally distinct -, taking us to the conclusion that this ego is logically and temporally anterior to both acts and independent from them: it is not the act of doubting that founds the certainty about the ego, but, on the contrary, the certainty about the continuity of the ego is the sole guarantee that doubt was really experienced. For doubt, if it did not receive from later reflection the name that endows it with the apparent oneness of a state, would end up reducing itself to the mere succession of non-related affirmations and denials, successive hallucinations of schizophrenically plural subject, deprived of the empire of himself and dissolved in the atomistic flow of his states. In order to become the object of reflection, doubt is endowed with the artificial oneness of a name; and if just after that the mind forgets that this mind is a mere ens rationis and takes it for a substantial unity, then we are faced with a case of reflexive self-hypnosis in which a name produces magically, a posteriori, the reality of its object.

2o Being formally distinct, the two acts are empirically distinct as well, that is, distinct in time: first I doubt (that is, I come and go between successive affirmations and denials), then I reflect that I doubted (that is, I unify under the name “doubt” this multitude of antagonistic experiences). But the oneness of the ego, implied on this very reflection, and hence in the certainty of the doubt, is that continuity in time denominated memoryand recollection: memory, a premise for reflection, is logically and temporally anterior to reflection. Far from being able to base our confidence on memory, it is doubt who depends on it to have a logical foundation and to become possible in the realm of psychological facts.

But, if doubt depends on the guarantee it receives from the ego and from memory, then it has no founding capability. It is a founded thing, a secondary and derived certainty, it is the work of a more profound and unquestionable agent.

3o However, doubt implies something else. How is it possible to doubt? The possibility of doubt rests entirely over our ability to conceive things in a way different from the way they present themselves in a given moment. Doubt rests over supposition; it requires and implies the ability to suppose. Once things have presented themselves to the subject in one certain way, and not another, this second and supposed way can present itself to conscience only as a work of the subject himself, as an offspring of imagination or as a conjecture. In order to know he’s doubting, it is necessary for the subject to know that he supposed something and to thus acknowledge himself as the subject of not only two acts, as we have just seen, but of three: the act of doubting, the act of reflecting about doubt and, before both acts, the act of supposing or imagining. Imagination is, in addition to the continuity of the ego and to memory, the third requirement and the third basis for the possibility of doubt.

4o But, should the subject never notice any difference between things as they present themselves to him and things the way he imagines them, the subject would never be able to know that he supposed, since there would be no distinction between to suppose and to perceive. Therefore, the awareness of this difference is also a requirement and a basis for the possibility of doubt. To doubt, I need to distinguish, in my representation, what’s given and what’s construed, what’s received and what’s invented, that which I get already finished and that which I do and propose. Consequently, here is the assumption of the difference between the objective and the subjective, and, thus, the belief in the objectivity of the objective and in the subjectivity of the subjective.

5o Yet, should the subject confuse these two domains, believing that he supposed what was perceived and that he perceived what he supposed, he would have lost the continuity of conscience and of memory, which is, as we have seen, a condition for the possibility of doubt. Therefore, the doubt about the reality of the world cannot present itself as a mere choice between two possibilities of equal value sprang from the same origin, but always as a choice between something given and something supposed, between the perceived and the invented.

6o It is not possible to doubt about the reality of the world without knowing first that this doubt, and the supposition which serves as its basis, are but pure inventions of the subject himself, and this invention is formally and temporally distinct from the act of perceiving and from the perceived content. Doubt is a supposition that an invented world is more valid than the received world, a supposition based, in its turn, in the conscience to invent, to suppose and to pretend. The doubt about the reality of the world is always and necessarily an act of pretending, and the more the pretender works to take this doubt seriously, to make it more and more verisimilar, the more the glow of the performance will attest to the difference between the verisimilar and the true, as in a play, we applaud the actor exactly because we know that he is not the character.

7o But this conscience of pretending would be impossible if it were not founded, in its turn, on the conscience of the difference between to think and to be, to imagine and to act. For, once it is implied the conscience of the difference between to supposing and perceiving, parallel to the conscience the ego has of its own actions, there wouldn’t be a way to deny that the thinking ego is conscious of the difference between the supposed action and the effective action, once the effective action is not just thought, but physically perceived, exactly like the beings from the physical world. I cannot, therefore, doubt about the beings of the physical world without, in the same act, doubt about the physical acts I see myself performing, like the movements of my hands and legs. But, at the same time, I cannot doubt about them without questioning, in the same instant, the continuity and the oneness of the ego, which is, in spite of it, a premise for the act of doubting about just any thing. Here is another reason for which doubt, being dubious in its own nature, would not be able to establish itself if not by doubting about itself, that is, being aware that it is founded on a supposition and on deliberate pretending. Here is also why doubt is something so rare and demanding: it implies a movements that contradicts itself, that questions the very conditions which make it possible.5

8o Finally, doubt is only possible when it is known that something, either in what is perceived or in what is supposed, is not adequate, when it does not meet a fundamental requirement of truthfulness. But how could the doubting subject demand truthfulness of his suppositions if he did not have any idea about truthfulness? This demand would be inconceivable without an idea of truth, even as a mere imaginary object of desire. The desire for bases presumes in the subject at least the possibility of imagining that his knowledge can be even more reliable than he actually feels at a given moment, that is, truth as an ideal and the option for truth. But, at the same time, we saw that the subject did not know this truth just as an abstract ideal, but that he already was aware of at least one actual difference between truth and falsehood: the difference between what is given and what is supposed, followed by the true awareness that what was received was not supposed and what was supposed was not received.

Thus, doubt erects itself upon a whole building of perceptions and presumptions: far from being first logically, it is a very elaborate and sophisticated product of a knowledge machine. Far from having a founding power, it is no more than a more or less accidental and secondary manifestation of a system of certainties.

However, if things are as such, if the primacy of methodical doubt is only the primacy of a mistake, then are under suspicion, similarly, the Kantian primacy of the critique problem, the positivist dogma of the impossibility to have a valid metaphysical certainty, and many other belief which today’s man takes, in spite of his own will, as obvious and blatant truths. But this is a subject for future addresses, which will be presented in other opportunities. Thank you.

Notes

  1. First part – abridged – of the essay “To Doubt about Doubt and to Criticise Criticism: Preliminaries for a Return to Dogmatic Metaphysics”, distributed among the students of the Permanent Seminar on Philosophy and the Humanities in March 1996. 
  2. When I talk about “succession and coexistence”, it seems that I utter a monumental nonsense. But the yes and the no of which doubt is made are coexistent in one aspect, and successive in another. Logically coexistent as terms of a contradiction, they are psychologically successive, that is, they enter the stage of conscience in a cyclical, alternating mode: one enters, the other leaves, as day and night coexist in the sky and succeed each other in a certain point on Earth. 
  3. A first version of this analysis of Cartesian doubt can be found in my book Universality and Abstraction and Other Studies (São Paulo: Speculum, 1983), under the title “The Cartesian cogito on the light of spiritual psychology.” 
  4. “Certain and indubitable” or “uncertain and doubtful” are predicates which do not apply to a fact as such, but to the judgements we make about it. 
  5. It is a deviation of the human mental apparatus, a painful movement that suppresses itself, and which rare men are able to endure for much time without great risk to their psychological integrity. The possibility of taking this risk and overcome it rests on the existence of a so solid, so deeply rooted body of beliefs, that a man may grant himself the luxury of leaving it for a mental trip, sure to find it again when he comes back. This possibility, in its turn, can only be accomplished in the highly differentiated urban societies and cultures, where the thinking individual is given space for flights of imagination which will affect in nothing his conduct as a citizen or as an honourable subject attends to his duties; where he is given, more than that, free space to think one thing and do another, to cultivate the defensive hypocrisy which is notably absent among the primitives, and that, for good or bad, is a solid protection of the individual conscience against the tyranny of collective discourse. Hence the peaceful coexistence between the revolutionary audacity of Cartesian doubt and the conservatism of the “provisory morals” that make it possible.