Aurora, de F. W. Murnau (1927): cinema e metafísica

Aurora, de F. W. Murnau (1927): cinema e metafísica

Aula do Seminário de Filosofia (30 jan. 1997).

Gravação transcrita por Marcelo Tomasco Albuquerque e editada por Alessandra Bonrruquer.

Aurora, de F. W. Murnau (Sunrise, 1927), baseado no romance de Herrman Suderman, Viagem a Tilsit, é para mim o melhor filme do mundo. Quando se vê que o grande Eisenstein nada mais fazia senão juntar imagens com tanto esforço para produzir, por associação, alguma patriotada a serviço da propaganda comunista, aí é que a arte de Murnau nos surpreende por sua capacidade de conduzir, através do jogo de imagens, a algo que está acima de toda imagem e mesmo acima de nossa capacidade de expressão em palavras.

A trama se desenvolve em três níveis: o personagem (o ser humano), a natureza e o sobrenatural, tudo perfeitamente encaixado e sem nenhum apelo a uma linguagem indireta ou "hermética", no sentido de obscura, embora haja ali grandes doses de hermetismo no sentido de alquimia espiritual.

O tema de Aurora é o jogo entre as decisões humanas, as forças da natureza e a misteriosa providência que tudo ordena sem alterar a ordem aparente das coisas, sem produzir acontecimentos de ordem ostensivamente sobrenatural, e jogando apenas com os elementos naturais.

O filme começa com dois amantes — um fazendeiro de Tilsit e uma turista — tomando a decisão mais arbitrária que se possa imaginar, uma decisão que não é fundada em coisa nenhuma: fugir, sendo preciso, para isso, matar a mulher do fazendeiro. Essa decisão brota de uma paixão momentânea, uma extravagância fundada num mero desejo, que não corresponde ao sentido de vida nem da mulher (a moça que quer fugir com o fazendeiro), nem do fazendeiro e não está encaixada logicamente no quadro normal de possibilidades de suas vidas. A possibilidade normal seria tudo não passar de um episódio fortuito, algo como um namoro de férias - o que realmente a coisa era no fundo. Na hora em que eles decidem transformar este namoro de férias numa união duradoura sacramentada pelo homicídio, então Murnau começa a colocar um outro enredo em cima do enredo inicial.

Se a vida do personagem antes do caso amoroso tinha uma certa solidez, ele mesmo não estava consciente disso, ou então teria rejeitado taxativamente a proposta da amante. Mas ele a aceita. E se deixa sair da lógica de sua vida para entrar nas névoas do imaginário. Não por coincidência, a cena em que eles se encontram para tramar o homicídio se dá num lamaçal e entre névoas. Ele atravessa uma bruma, como quem vai sair do plano real para ingressar no plano imaginário, onde vai encontrar sua espectadora.

O resumo do filme é o progressivo retorno desse mundo mítico à realidade que o personagem havia abandonado. Após aquele breve instante em que ele prefere o imaginário ao real, por todo o resto do tempo o que vemos são as operações do destino para devolvê-lo à vida real. Mas esse retorno não é fácil. No primeiro instante, a reação do fazendeiro é simplesmente de ordem sentimental, o sentimento de pena pela esposa que ele não amava, e arrependimento. Mas esse arrependimento não é ainda uma conquista sua, pois ele se dá de maneira passiva e na esfera do imediato. O retorno à realidade terá de passar pela reconstrução de todos os elementos que foram compondo a sua vida.

Quando, após a tentativa de homicídio falhada, ele acompanha a esposa até a cidade, ela ainda está muito triste e ele tenta recomeçar o diálogo com ela – afinal, ele tinha se tornado um estranho. Ele tenta retomar a condição de marido, como quem diz: "Eu não sou um assassino, eu não sou um estranho", mas ele, de fato, não é mais o mesmo. Ele terá de reencontrar sua velha identidade, e evidentemente isso não é tão fácil.

Temos então duas cenas decisivas: aquela em que na casa de chá ele oferece um bolinho a ela, e ela acaba não aceitando; e a cena do casamento a que eles assistem na igreja. Nesse casamento, novamente não por coincidência, os convidados estão à porta, esperando a saída dos noivos, e quem sai são eles, que vieram andando na frente dos noivos e nem percebem o que se passa em volta. Na igreja, ele toma novamente consciência do sentido do casamento, ou seja, do que ele tinha ido fazer ali, de por que é que ele estava ao lado daquela mulher que até poucas horas atrás já nada significava para ele. De certo modo, ele tem aí uma recapitulação de toda a sua existência.

No instante em que ele desiste de matar a esposa, ele já havia se arrependido por dentro, mas isso não era exatamente um arrependimento, no sentido cristão. Era remorso. Que é remorso? Um sentimento de culpa desesperador. O arrependimento é um sentimento de culpa acompanhado de alívio, de esperança de poder resgatar de algum modo o que foi perdido. O homem só passa por isso na igreja: neste momento, ele troca o remorso pelo arrependimento.

Mas aí a trama ainda não complicou. É preciso que ele confirme esta intenção. Ele precisa adquirir certeza absoluta de sua identidade recuperada. No instante em que aceitou matar, ele jogou fora toda a sua vida, ele agiu como se fosse um outro. Um outro que teria uma outra vida, num outro lugar, com outra mulher. Na cena em que a amante fala da vida na cidade e ele se vê dançando nas boates, ele imagina para si uma outra biografia, que começaria miraculosamente do nada. Após ter construído toda uma vida como homem do campo, ele repentinamente se vê em outra cena, e para vivê-la realmente ele precisaria ter tido toda uma outra vida, precisaria trabalhar em outra coisa, ter nascido em outro lugar. O apelo dessa vida imaginária o entorpece de tal maneira que ele perde sua identidade: ele não está mais conectado nem com a esposa, nem com a profissão, nem com o ambiente material, com nada. Ele está desligado do sentido da vida, e por isto esta vida lhe parece vazia e tediosa — é a vaidade psicológica, que projeta na vida em torno a miséria interior do homem incapaz de assumir seu dever vital.

O restante do filme vai encaixá-lo de volta, primeiro, em sua vida; segundo, em seu casamento; terceiro, no lugar onde ele construiu a sua vida, para de certo modo devolvê-lo ao sentido da vida que ele tinha abandonado momentaneamente por um sonho maluco. E como se dará isso? Ele será obrigado, pelo desenrolar dos acontecimentos, a apostar de novo, repetidamente, no valor de tudo aquilo que tinha desprezado, e terá de apostar cada vez mais alto. Ele reconquista por um esforço de vontade consciente tudo o que havia abandonado por vaidade.

Ele começa por pedir perdão; depois oferece o bolinho; em seguida, na igreja, tem um segundo arrependimento e faz como que um voto; tira então uma fotografia, que é como uma fotografia de casamento; e por fim vai para um parque de diversões, que seria o equivalente da viagem durante uma lua-de-mel. Com tudo isso, ele recuperou sua identidade de casado, mas não recuperou ainda o sentido da sua vida. Para isto ele precisará ainda apostar mais um pouco.

E a aposta será uma segunda tentação, que já não vem por meio humano, mas por meio dos elementos da natureza, quase que propositadamente mobilizados para esse fim, que executam a intenção dele, isto é, afogam realmente a mulher que ele antes tinha tentado afogar. Veja; aquilo que ele sonhou, já não é mais ele que está executando, é um poder imensamente maior que o dele, ou seja, ele pediu e o céu executou. Nesta hora, ele tem de fazer a aposta decisiva para salvar aquela mulher que ele quisera matar.

Enquanto vai retornando para casa, dá-se a tempestade, e nesse retorno é que se dá também o retorno dele à plena posse do sentido da sua vida. Ele vai dizendo uma série de "sins" a tudo aquilo a que antes tinha dito "não". Mas quem se opõe a esse sim, quem é o tentador que lhe oferece novamente o não? Agora já não é o demônio: é o próprio Deus, para saber se ele quer mesmo. O filme é teologicamente exato ao mostrar que o diabo age dominando a imaginação, a fantasia e os desejos, enquanto Deus age através dos acontecimentos reais, do reino da natureza transformado em mensageiro do sobrenatural.

O personagem será então obrigado a reafirmar com muito mais força sua adesão a todos os valores que havia desprezado. E terá agora de arriscar a sua própria vida para defendê-los e, mais ainda, arriscar de certo modo a própria salvação de sua alma; pois não pode evitar o sentimento de revolta contra os céus quando pensa que a mulher morreu, e ele se sente preso numa armadilha terrível montada pelo diabo, que executou o pedido do qual ele já tinha desistido. Ele tem de reafirmar e apostar tudo de novo, desta vez lutando contra todas as probabilidades aparentes.

Aurora, na verdade, transcorre para trás. A mudança do fazendeiro para a cidade, planejada no começo, não se realiza, e tudo o que é importante acontece no retorno da cidade para o campo, onde ele vai novamente botar os pés no chão. O filme tem algo de "romance de formação" (Bildungsroman), gênero tipicamente alemão, que tem como conclusão a formação da personalidade humana, onde o indivíduo, através de seus erros, se transforma num homem de verdade. Um exemplo é Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister; Herman Hesse também fez isso em O Lobo da Estepe e em Demian. São romances cuja única conclusão é o crescimento humano em direção à maturidade. Mas esse crescimento é sempre uma diminuição, é sempre o indivíduo voltando à terra, depois de haver sonhado alguma maluquice e viajado por um céu de mentira. É uma apologia caracteristicamente germânica do "pão-pão, queijo-queijo" como valor supremo da existência. A idéia, portanto, é de que o sentido da existência está colocado na própria existência: ela tem sentido em si mesma, e não num outro mundo colocado acima deste, como o mundo imaginário que a amante oferece ao personagem, e que é mais ou menos como o mundo da falsa vocação teatral de Wilhelm Meister. Meister tem o sonho de ser ator, mas ele não serve para ser ator, ele não é um ator, ele é um burguês no fim das contas, e sua descoberta de que é um burguês de classe média alta, um sólido burguês, é a verdadeira educação dele. A vida cotidiana do burguês, na medida em que é real, e pelo simples fato de ser real, tem em si uma força mágica superior a toda imaginação, porque não é constituída de imagens, tem uma tridimensionalidade que a fantasia não tem.

O imaginário como alternativa oferecida pelo tentador diabólico é um mundo bidimensional, um mundo só de imagens, imagens no meio da névoa. A cena em que o fazendeiro e a amante conversam no pântano remete à carta 18 do Tarô, que é A Lua: o homem de um lado, a mulher de outro, como o cão e o lobo; a água em baixo e a lua no meio, formando um losango. Esse "mundo da lua" é o mundo dos reflexos na água, onde as coisas não acontecem verdadeiramente, apenas parece que vão acontecer. A imagem pode ser encantadora, mas ela não tem a tridimensionalidade, a profundidade da vida real. É no retorno à terra que o homem encontra o verdadeiro céu, o sentido da vida.

Ora, a coisa mais espantosa desta vida real é justamente que nela as coisas não chegam a ter uma explicação final, ao passo que o mundo imaginário é facilmente compreensível e explicável, pelo simples fato de que foi você mesmo que o imaginou. Na hora em que o personagem imagina uma outra vida na cidade, tudo para ele faz sentido, porque é ele mesmo quem quer que as coisas sejam assim ou assado. Aí a relação causa e efeito é perfeitamente nítida, ao passo que, no retorno à vida real, o jogo de causa e efeito é infinitamente mais complicado, mais sutil, e nunca se pode dizer que isto aconteceu por causa disto ou daquilo exclusivamente; há sempre um tecido, um emaranhado de causas, e nunca se consegue assinalar uma linha causal única.

Então, por que a tempestade acontece justamente no momento em que ele estava voltando? Ela poderia acontecer em qualquer outro momento. Não há no filme a menor insinuação mágica a respeito disso. Não foi um anjo quem fez cair a tempestade, mas, se ela não acontecesse, certamente a resolução do sentido da vida desse indivíduo tomaria uma outra direção. As causas naturais interferem e não se sabe nunca se existe nelas um propósito ou não. Não se pode dizer propriamente: "Deus fez cair a tempestade para tal ou qual finalidade ", porque Deus não aparece no filme, só a tempestade. Cada um está livre para interpretar isso como uma intencionalidade divina ou como uma casualidade, mas nos dois casos este fato entra como elemento componente de um sentido geral.

Quando cai a tempestade e a mulher se afoga, nada no filme nos permite interpretar que foi Deus que a fez cair propositadamente para ensinar algo ao personagem. Deus não aparece, não há a menor insinuação de um sentido religioso evidente envolvido no caso. Nós simplesmente vemos a tempestade, vemos o que aconteceu. Não podemos dizer que foi uma causa divina, ou uma causa natural fortuita, mas em qualquer dos casos esse acontecimento se encaixa não na ordem das causas, mas na ordem do sentido, e e força causal divina não aparece como causa eficiente e sim só como causa final, que age através da combinação natural das causas eficientes. Qualquer que seja a causa, para o personagem, aquele acontecimento tem um sentido muito nítido, não subjetivamente, mas objetivamente, dentro da vida real dele. E que sentido é esse? O da intenção maligna da qual ele já havia desistido, e que é realizada justamente no instante em que ele a tinha renegado e em que ele a temia. Os seus pensamentos viram ações no exato instante em que ele não os aceita mais. Este sentido não é subjetivo, não é o personagem quem interpreta as coisas assim: elas simplesmente são assim, em si mesmas e objetivamente. Sem precisar recorrer à idéia de uma providência que propositadamente está "fazendo acontecer" isto ou aquilo - e esta é uma das coisas mais bonitas do filme - o evento tem um sentido objetivo, e este sentido, por meios puramente naturais, vai na direção indicada pela intencionalidade divina, que é a reconquista do sentido da vida. É uma espécie de ironia da natureza, e por momentos o personagem se sente vítima desta ironia. Ela pode ser premeditada ou fortuita, isso não a torna menos irônica. Para ele, naquela hora, pouco interessa se foi o diabo que fez chover, para prejudicá-lo, ou se a natureza inocentemente e quase que mecanicamente produziu a chuva. A tempestade é irônica nos dois casos, e em ambos os casos faz sentido.

Há aí uma distinção muito nítida entre o a ordem das causas e a ordem do sentido. Só que esse sentido não é subjetivo, não é apenas humano, é um sentido real; dentro do contexto dos acontecimentos, a tempestade tem uma significação nítida, é uma ironia cruel da natureza, pouco importando se foi intencional ou não. Na verdade, se não foi intencional é até mais cruel, porque então o destino do personagem parece mais absurdo ainda. De repente, ele cai totalmente dentro do absurdo que ele mesmo havia premeditado. Se houve intencionalidade por trás dos fatos, foi uma intencionalidade pedagógica, e se não houve, foi uma coincidência irônica.

Essa ironia já aparece no episódio do cachorro. Por que o cachorro, na hora que eles vão sair de barco, sai latindo atrás da dona? É porque ele anteviu que ia acontecer uma desgraça? Ou é simplesmente porque ele quer ir atrás da dona? O filme nada diz a esse respeito. Você está livre para interpretar como quiser. Mas como quer que se interprete a causa que fez o cachorro se mover, o que importa não é a causa, mas o sentido que esse episódio acaba tendo no conjunto. Por quê? Porque, ao retornar para deixar o cachorro em casa, o homem poderia ter desistido da viagem e do plano assassino. O cachorro aparece ou como uma casualidade ou como uma intencionalidade, que poderia ter salvado a mulher antecipadamente e bloqueado o curso posterior dos acontecimentos. Poderia, mas falhou. O cachorro não teve força suficiente, é um elemento natural demasiado isolado e fraco para por si determinar o rumo dos acontecimentos. O cachorro, pura sanidade natural, é impotente para deter o mal; para isso será preciso a mobilização de todos os elementos da natureza — a tempestade.

Mas em todos os instantes o que se vê é que, não importando a causa, o sentido é nítido. E esse sentido não é subjetivo. De fato, a ação do cachorro naquele momento poderia ter impedido a desgraça. Quase impediu. E esta é outra característica desse filme: o tempo todo você tenta prever o que vai acontecer em seguida, e essa previsão toma o aspecto de um voto de fé: você deseja que as coisas tomem um certo rumo, você torce pára que isso aconteça — e, nunca acontecendo o que você deseja, no fim o resultado é, pelos meios mais impremeditados e surpreendentes, exatamente aquele que você desejava. Na hora em que você sabe que o sujeito vai tomar o barco para matar aquela inocente mulherzinha, você deseja que ele não faça isto. E na hora em que o cachorro começa a latir e vai atrás, o cachorro está realizando de certa maneira o seu desejo, mas ele falha. Nesta cena, todo mundo vacila: você, o cachorro, o personagem, a mulher – ela também não sabe direito o que vai acontecer. Ela também está numa interrogação. Todos esses elementos, todos esses fatos têm sempre um sentido muito nítido, sempre referido ao antecedente e ao conseqüente. Em nenhum momento você depende da interpretação subjetiva que os personagens fazem.

A partir de elementos psicológicos simples, cria-se esta história profundamente enigmática na qual todos os elementos concorrem, afinal de contas, para uma tomada de consciência e para que o personagem retome posse da sua vida. Está subentendido no filme inteiro que tudo está concorrendo para um sentido final. Mas se isto ocorre conforme uma premeditação ou não, esta é uma questão deixada em suspenso. Faz parte da realidade da vida você não saber quais são os elementos que determinaram seu destino. Mas também faz parte da vida você poder compreender o sentido do que está acontecendo. Eu não sei quem foi que fez chover, nem com qual intenção fez chover, eu sei que para a ordem constitutiva da minha vida, neste momento, a chuva tem um sentido muito nítido. E o sentido, o que é? É a obrigatoriedade moral de uma ação, que por sua vez faça sentido dentro do caminhar da minha vida e dentro de minha própria identidade. Sendo eu quem sou, vivendo do jeito que vivo, tenho a obrigação de fazer isto assim e assado, pois só assim minha vida fará sentido. Viktor Frankl daria pulos de entusiasmo se visse este filme.

A interpretação metafísica fica condicionada a uma interpretação ética, que a precede de certo modo. Pouco importando se existe uma providência por trás de tudo ou não, o sentido dos fatos se impõe na medida em que impõe a obrigação de agir de uma determinada maneira, porque é a única que faz sentido. O problema da providência está colocado não na esfera causal, mas na esfera do sentido, pouco importando se essa providência age através de causas naturais ou sobrenaturais.

A chuva pode ser uma mera coincidência. Veja-se isto do ponto de vista de Deus. Se já estivesse predeterminado por leis naturais que iria chover naquele determinado instante, Deus certamente sabia disso, e não precisaria mandar uma chuva especialmente para que as coisas se resolvessem desta ou daquela maneira. A simples somatória de causas naturais e humanas é suficiente para criar um sentido. A providência está aí para quê, então? Para criar e manter o sentido.

A providência, sendo sobrenatural, não precisa no entanto recorrer a meios sobrenaturais. Do simples jogo das causas naturais e humanas em número indefinido, haverá um resultado x. Não era necessário uma premeditação para aquele caso específico: estava já tudo ordenado, de tal modo que o homem, que é um ser pensante e que tende sempre a criar uma unidade de sentido em sua vida, aproveitaria, para realizar esse sentido, os acontecimentos quaisquer que fossem. Desta maneira, o próprio caráter fortuito dos acontecimentos é de certo modo superado. São fortuitos quanto à sua causalidade eficiente, isto é, àquilo que os desencadeou, mas não quanto à sua causa final. Ou seja: um monte de causas eficientes dispersas de modo fortuito podem concorrer a uma causa final de natureza fundamentalmente boa. Este é um elemento da filosofia de Leibniz (Princípio do Bem Maior). Não sei se Murnau pensou em Leibniz nessa hora, mas para ser leibniziano não é preciso ter lido Leibniz: é uma questão de personalidade e de afinidade espiritual espontânea. Em todo caso, não é inútil lembrar que, antes de se dedicar ao cinema, Murnau estudou filosofia e teologia.

Num outro filme dele, Tabu, há uma mensagem de sentido aparentemente contrário: a causalidade humana e natural concorrendo para um desenlace trágico. Isso também pode acontecer. De qualquer modo, se tudo termina em comédia (quando tudo termina bem é comédia, por mais que a gente sofra) ou em tragédia é coisa que não é decidida na ordem das causas eficientes, mas na ordem da causa final, e com isso escapamos da famosa polêmica entre determinismo e livre-arbítrio.

As duas coisas de certo modo se exigem mutuamente; não há como conceber uma sem a outra. Existe determinismo na medida em que certas causas desencadeadas vão fatalmente produzir certos resultados. Podemos tomar as causas naturais que aparecem neste filme, como o comportamento do cachorro e a tempestade, como simples resultados de leis naturais. Há processos naturais que explicam esses fatos. Pode estar tudo predeterminado na ordem das causas eficientes, mas nada pode estar predeterminado com relação ao fim, à finalidade. Não haveria nenhum sentido em criar um ser capaz de escolher, capaz de agir, capaz de ter culpa inclusive, se a finalidade de vida dele já estivesse dada infalivelmente de antemão. Isso seria um nonsense: não é necessário um ator consciente para desempenhar um papel mecânico; não seria preciso um ser tão inteligente quanto o homem para desempenhar esse papel. Portanto, existe uma certa margem de manobra dentro mesmo do determinismo da natureza. O sentido da vida existe, mas sua realização pelo homem é eminentemente falível.

Podemos dizer que o cachorro "não teria" outra alternativa senão ir atrás da dona, porque esse é seu instinto, e a chuva também não teria outra alternativa senão cair naquele preciso momento. O homem é que tem a alternativa de entender ou não entender o que está se passando e de dirigir a vida dele num sentido que esteja harmonizado com quadro natural, com o seu dever e o sentido da sua vida. Para realizar o sentido de sua vida, ele precisa compreender o que se passa em torno, e compreender em quê essas coisas o influenciam.

Os fatos (como por exemplo a amante, que não existia na vida do personagem e que chega de férias a um determinado local num determinado momento, ou seja, faz uma intervenção) vão se sucedendo e vêm do ambiente em torno. O indivíduo mesmo é que entende ou não entende. E para não entender, basta ele se desligar por um momentodeste tecido denso da causalidade e entrar num outro mundo onde ele próprio é a única causa; que é o mundo imaginário, um mundo inteiramente lógico e nítido, onde ele inventa as causas e os efeitos se seguem da maneira mais lógica possível. É a lógica do plano criminoso proposto pela visitante: nós matamos a sua mulher e vamos para a cidade, e você vai morar lá comigo e vamos dançar naquela boate onde sempre vou, etc., etc., etc. Tudo isso é muito lógico, de maneira linear.

Mas, no retorno à vida real, as causalidades não são mais lineares, mas concomitantes e em número inabarcável. A conexão entre elas pode ser percebida ou não, porque o indivíduo mesmo é um elo de muitas cadeias causais cruzadas. Uma coisa é acontecer uma chuva e outra coisa é acontecer a chuva na hora em que você está ali. Mesmo do ponto de vista puramente natural, do ponto de vista físico, não é a mesma coisa chover sobre um terreno onde não há nenhum ser vivo, sobre um terreno onde há plantas, sobre um terreno onde há bichos e sobre um terreno onde há gente. As conseqüências da chuva fatalmente serão diferentes nesses vários casos. No caso aqui presente, chove na hora em que está ali exatamente aquele cidadão, portanto essa chuva já não é igual para todos, ela tem significados diferentes.

Ele poderia não ter compreendido a situação. Poderia ficar tão idiotizado pela morte da mulher que não sentisse sequer a ironia da situação, não tirasse a lição moral nela implícita. Ele consente em tirar esta lição porque continua dialogando moralmente com a natureza, perguntando: "O que você quer de mim?", ou seja: confiando no sentido da vida mesmo quando este sentido se tornou invisível por efeito dos erros que ele próprio cometeu. Ora, a natureza nunca responde totalmente, mas é o ser humano que completa as suas respostas. E na medida em que responde, responde assumindo o sentido e as implicações todas, as implicações reais que aquilo tem. Ou então fantasiando em cima, inventando, fugindo do dever e do sentido da vida.

Quando vemos que tudo isso foi dito só com imagens mudas, notamos que este filme é realmente uma obra-prima assombrosa. No sentido de jogar com um monte de causas para provocar um efeito final, existe uma analogia entre Aurora e A Tempestade de Shakespeare, mas a diferença é que nesta há um agente regendo as causas, que é o mago Próspero, enquanto que aqui, não. Aqui não aparece mago nenhum, você sequer sabe quem está dirigindo a cena ou mesmo se ela está sendo dirigida. O que você sabe é que ela faz um sentido tremendo. Perguntar se isso foi premeditado ou não, neste caso, é inteiramente ocioso, porque a pergunta não é essa. A pergunta não é quem está dirigindo e com que propósito, a pergunta é: O que precisamente está acontecendo? É uma chuva como qualquer outra? Não. É a chuva que acontece neste momento e mata a mulher que o sujeito queria matar meia hora atrás. O momento em que isso acontece não é indiferente. A vida real é justamente essa densidade na qual todos os fatores são absolutamente inseparáveis, e a única coisa que está realmente em jogo é se você vai aceitar essa densidade ou se vai fugir para um outro mundo, plano e sem gravidade, o mundo da fantasia subjetiva. É justamente esse drama que dá ao filme todo seu valor e seu impacto.

A história que o personagem havia inventado ele próprio entendia perfeitamente, mas, e esta outra história que de fato lhe acontece? São tantos os fatores em jogo, que ele não poderia ter uma explicação completa. Para entender tudo o que aconteceu, ele precisaria ser Deus. Imagine o número de causas que teriam de ser investigadas para se saber por que houve toda essa convergência de acontecimentos. Isso nunca ninguém terá. Em nenhum momento haverá uma explicação completa de tudo que aconteceu. No entanto, longe de compreender isso no sentido vulgar das "limitações do conhecimento humano", temos aí uma indicação preciosa sobre a natureza mesma da realidade: a realidade só é real quando, nela, o conjunto finito dos elementos conhecidos, e que em si mesmos podem não fazer sentido, é abarcado por um infinito que, incognoscível em si mesmo, dá a unidade e o sentido do quadro finito. Sempre que o finito se fecha em si mesmo, pretendendo ser auto-explicativo, estamos no reino da fantasia lógica otimista e prometéica. E sempre que o finito se dissolve num infinito sem sentido, estamos no reino da fantasia macabra. É na articulação sensata do finito no infinito que se encontra o conhecimento da realidade.

O sentido da vida do personagem não apenas não é subjetivo: ele é, por assim dizer, um sentido histórico. O personagem é este homem e não outro, ele teve esta vida e não outra, enfim ele não está livre para sentir o que quiser na hora em que quiser. Ele vai sentir de acordo com o que aconteceu antes e de acordo com o que ele pretende que aconteça depois.

Justamente na hora em que o indivíduo voltava para casa, esperando retornar à sua paz doméstica depois de tudo aquilo que viveu, depois da tentação e do remorso, nesse instante incide a chuva e ela tem esse sentido porque se encaixa na seqüência desse antes e desse depois, e não porque o indivíduo "sentiu" isto ou aquilo. Na verdade, ele poderia não sentir, ele poderia ficar idiotizado. Muitas pessoas, diante de um sofrimento desse tipo, na hora em que a vida realiza sua fantasia macabra, enlouquecem e não querem pensar mais. Aí elas perdem a percepção do sentido do que está acontecendo, mas esse sentido continua presente e pode ser reconhecido por quem, de fora, observe o que se passa.

O preço do sentido da vida é entender o que está acontecendo, por mais que doa. Mas entender sempre apenas do ponto de vista humano e sem ter a explicação global. Ora, isso é muito importante para o estudante de filosofia, pelo seguinte: em qualquer investigação do tipo metafísico que se faça, a tendência humana é sempre voar direto para o problema da providência, do determinismo, da intencionalidade divina, tratando desses temas de uma maneira genérica e abstrata, sem ter este arraigamento prévio do sentido da vida pessoal, o qual é, evidentemente, o único intermediário pelo qual se poderia chegar à compreensão da intencionalidade divina. Se você não compreende sequer o que os acontecimentos representam dentro do enredo da suavida, como é que você vai entender as intenções do Escritor que produziu a obra? Se você não entende nem a história, como é que você vai entender a psicologia do Autor? É ridículo que pessoas de alma tosca, incapazes de apreender e assumir responsavelmente o sentido de suas próprias vidas, se metam a opinar sobre questões filosóficas simplesmente porque leram Kant ou Heidegger. Primum vivere deinde philosophari tem precisamente este sentido: o verdadeiro filósoso é filósofo na vida real e não apenas um estudioso que fala sobre filosofia. Por isso mesmo é que a investigação metafísica nunca pode ser uma mera investigação abstrata no sentido científico e impessoal, ela sempre vai implicar uma responsabilidade pessoal. E a pergunta que se coloca é a seguinte: você aceita compreender o que está se passando na sua vida? E em que medida você vai agüentar? Oitenta por cento dos filósofos a quem você fizesse essa pergunta correriam de medo, porque há certas coisas que são terríveis de entender, sobretudo as conseqüências do que cada um fez na vida.

Construa a hipótese de que exista um Deus, de que Ele conhece seus pensamentos e de que Ele pode, como neste caso, tornar realidade os seus piores pensamentos. Você deseja conhecer esse Deus? A maioria das pessoas, aí, já não vai querer mais. É melhor não saber. Surge aqui a famosa emoção da "máquina do mundo" do Carlos Drummond de Andrade, quando o indivíduo, após ter investigado e perguntado a vida inteira, na hora em que o Universo vai finalmente se abrir e mostrar tudo, ele diz: — "Não quero mais saber".

"como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demostrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera
seguia vagaroso, de mãos pensas."

(Trechos de "A máquina do mundo" - Carlos Drummond de Andrade, em Claro Enigma)

O acesso ao conhecimento de ordem metafísica tem de passar primeiro por um conhecimento de ordem moral e ética que não consiste em "seguir" uma moral ou uma ética já dada e pronta, mas, ao contrário, em de fato desejar compreender a própria vida e realizar o seu sentido, assumindo o dever com todas as forças, porque é na vida real que se vai encontrar o elo entre o natural e o sobrenatural. E onde mais poderia agir o tal sobrenatural, se não fosse no real, neste mundo histórico e humano onde vivemos?

A natureza já está dada, é um fato que está diante nós. Ela já está resolvida, se não de maneira eterna, pelo menos de maneira habitual; embora haja um coeficiente de indeterminismo na natureza, pelo menos no plano macroscópico, no plano da natureza visível, as coisas funcionam segundo uma certa regularidade na qual você não interfere. A interferência do homem nos processos naturais é mínima. Pois bem, onde mais você vai interferir? No sobrenatural? Não, o sobrenatural é Deus, é onipotente, você não pode mexer lá. Então, você não pode mexer, na verdade, nem na natureza e nem no sobrenatural. Você está colocado, por assim dizer, na natureza, mas um pouquinho acima dela, na medida em que pode enxergar a natureza como um todo e perguntar sobre alguma coisa que está para além dela, mas aonde você não pode chegar. Então, onde você está? Exatamente entre um e outro. Entre um conjunto que você enxerga mas não entende e outro que, se conhecer, vai entender, mas não conhece. A natureza é visível e cognoscível, está diante de nós, mas nós não a entendemos, porque não parece ter intencionalidade. Às vezes parece que, outras vezes parece que não, então você não sabe. Como é que vamos saber? Bom, precisamos interrogar o que está além da natureza, aquilo que está acima dela e que a determina. Em suma, precisamos conversar com o Autor da história. Se você conhecesse o Autor da história, tudo estaria explicado; mas você não O conhece. Aquilo que você conhece, você não entende e aquilo que você entende, não conhece. Deus é perfeitamente compreensível; na hora em que você começa a pensar em Deus, você vê que tudo faz um sentido tremendo, mas nós não O vemos, não O escutamos e não O conhecemos. E tudo aquilo que vemos, escutamos e conhecemos nem sempre faz sentido. Você tem o fato em baixo e o sentido em cima. Você desejaria subir para este sentido. Mas onde está o eloEm você, porque você também existe materialmente, ou seja, você é objeto de conhecimento seu, você conhece o seu próprio corpo, a sua própria vida, exatamente como você conhece a natureza. E qual é o sentido da sua vida? Você tem a realidade da sua vida, mas qual é o sentido dela? Com relação a você mesmo, você também está dividido. Você conhece a realidade da sua existência, mas não o sentido dela. O sentido, é claro, faz sentido, mas você não o conhece. E a vida você conhece, mas não sabe se faz sentido. Então, você é esse elo, porque a cada instante você pode ligar a esfera dos fatos com a esfera do sentido. Como é que você faz isso? Compreendendo o sentido que os fatos impõem, não abstratamente e em si mesmos, mas com relação à sua vida histórica.

Só na medida em que vai aceitando compreender esse sentido que está na sua própria vida, você tem ao mesmo tempo a abertura para aquele laço maior que há entre o natural e o sobrenatural. A relação que existe entre a sua vida e o sentido da sua vida é a mesma que existe entre a natureza e Deus. Sendo você o único elo, há algo que tem de se resolver na sua esfera e na sua escala antes de você poder fazer a sério qualquer indagação de ordem metafísica.

Ora, quando entendemos isso, cada um de nós pode também colocar a seguinte pergunta: Quais os fatos que foram determinantes do meu destino? E, se você começa a contar sua história direitinho, verá que houve fatos que determinaram o seu destino real, sem que você opinasse a respeito, sem que fosse consultado e às vezes sem que sequer os percebesse. Na vida dos outros a gente percebe isso muito bem; na nossa, é preciso um esforço.

Por exemplo, você monta um armazém. Depois de uma crise econômica no Zâmbia, que muda o comércio internacional de um produto, seu armazém afunda. Você não precisa conhecer essa crise econômica toda, você não precisa saber onde ela começou e você não precisa saber o tamanho dela. Você sabe apenas que seu armazém afundou. Agora, eu pergunto a você: você quer ver o tamanho do inimigo que liquidou seu armazém? Quer ver o tamanho do elefante que pisou em cima de você, ou não? Quer conhecer realmente o que determina sua vida? Note que não estamos falando de causas sobrenaturais, estamos falando de causas sócio-econômicas. Nesse momento, a maior parte das pessoas baixa os olhos como o personagem da "Máquina do Mundo". Não quer ver, e não querendo, volta à condição de animalzinho — o bichinho vivente cuja vida não tem sentido, cuja vida não precisa ter sentido, e que só espera morrer o mais rápido possível. A partir desse momento, mesmo o esforço que o sujeito faça para atender aos seus impulsos vitais, seus desejos, estará atendendo apenas a um instinto de morte. Qual é o resultado final da vida biológica? A morte. É o único resultado a que a vida biológica pode levar. Portanto, na hora em que você limita sua vida ao biológico, por encantadora que ela ainda possa parecer, você sabe que está indo apenas na direção da morte e de mais nada. A renúncia ao sentido leva embora consigo a própria vida.

Conhecer o sentido da vida pressupõe conhecer o sentido das coisas que vão acontecendo enquanto ela se passa. Mas a apreensão desse sentido às vezes implica o conhecimento de forças terríveis, forças de escala histórica, social, planetária ou supra-planetária. Suponha, por exemplo, que os planetas exerçam alguma influência sobre a sua vida. Suponha que um planeta se deslocando em sua órbita planetária possa causar um efeito na sua vida. Como é que você vai dialogar com um monstro desse tamanho? A maior parte das pessoas não deseja, por medo, levantar os olhos para ver o que determina a sua vida. Mas a aquisição do sentido da vida pressupõe a aquisição do sentido do cenário cósmico em que você está; não em si mesmo, como se faz ecologicamente, mas como cenário da peça que é a sua vida. Partindo do ponto onde você está, a consciência pode ir se alargando em círculos concêntricos cada vez maiores, para compreender gradativamente o conjunto de fatores que determinam objetivamente a sua existência. E à medida que esta consciência se amplia, mais nítido se torna o dever pessoal que dá sentido à sua vida. E aí você não busca mais proteção na inconsciência covarde (fingida no começo, mas que com o tempo se torna inconsciência mesmo), e sim no dever, que lhe infunde coragem cada vez maior.

Acontece que, quando alguém faz isso, vê que é quase um milagre tomar alguma decisão em meio a todos esse fatores enormemente poderosos. Nessa hora, o indivíduo é obrigado a enxergar a realidade mais brutal da vida humana: a fragilidade do poder individual. A expansão da consciência pressupõe uma retração das pretensões e uma perda do egocentrismo, e neste ponto a maior parte das pessoas volta atrás. Para não perder aquele falso senso inicial de segurança, aquela ilusão de que ele próprio é o centro do mundo, de que ele próprio decide livremente sua vida, o sujeito fecha os olhos ante a máquina do mundo, baixa a cabeça, e daí para diante é igual a um carneiro, ou um porco, ou um ganso; mas um carneiro, um porco ou um ganso que continua com a ilusão de que é uma grande coisa.

Nesse sentido específico, o personagem do filme aceita o mais plenamente possível a condição humana. Ele entende e assume o que se passa. Ele entende que sua vida é determinada por um diálogo, um confronto, com forças infinitamente poderosas, forças que podem inclusive fazer com ele uma piada sinistra. Aliás, o título do filme, Aurora, nascer do sol, tem um motivo bastante óbvio. O personagem do filme é o verdadeiro twice born, o renascido em Deus, o renascido no reino do Espírito.

É óbvio que há fatores que ele pode ignorar, mas que jamais o ignoram. Nós podemos ignorar os fenômenos cósmicos, ou históricos, mas eles nos atingem; nós não sabemos deles, mas eles sabem de nós. Como um judeu na Alemanha nazista: ele podia ignorar o Führer, mas o Führer não o ignorava. Como um cristão na URSS: ele pode ignorar Stálin, mas Stálin o conhece muito bem. Em certo momento, esse cenário assume de fato uma configuração sinistra. E você agüenta enxergá-la? Você quer saber, ou não? Nesta passagem é que se decide se o homem vai ser digno da condição humana ou se ele vai se imputar aquela autocastração espiritual, que é a pior perda por que um sujeito pode passar, e que nenhuma reparação material pode compensar. O homem que desistiu de saber pelo quê são determinadas sua vida, sua biografia, desistiu dessa vida e dessa biografia. Ele já não lhe dá mais valor, jogou-a no lixo. Agora, no máximo, ele está reduzido a uma criança que, ignorando tudo em volta, pede milagres ou amaldiçoa o destino, a socieadde, o próprio Deus; Deste ponto em diante, só um milagre, mesmo. Mas o pedir milagre é uma coisa amaldiçoada pelo próprio Cristo. "Maldita a geração humana que pede prodígios". E como é que o sujeito vai obter prodígios se não quer sequer olhar para a natureza em torno, olhar para o mundo real onde esses prodígios se sucedem a todo instante?

Aqui é preciso citar uma frase do velho Gurdjieff (não gosto dele, mas ele tem uns achados verbais incríveis), que diz que a maior parte das preces consiste em pedir que dois mais dois dêem cinco. O indivíduo não sabe exatamente o que pedir. Ora, se ele não olha nem a realidade em torno, ele não sabe onde está, portanto também não sabe o que quer. Vai pedir uma coisa qualquer, uma bobagem. Ao fazer isso, está recusando o dom do Espírito, está cometendo o pecado primeiro: "Eu não quero ser um ser individual consciente e responsável, eu quero ser um bichinho que não sabe de nada, quero permanecer no estado de inocência animal." Ele quer pecar contra o Espírito e ainda quer que Deus faça um milagre? Todos os pecados são perdoados, menos esse.

É por isso que vejo uma blasfêmia profunda na apologia vulgar da "vida simples", das "pessoas simples". Esse é um aspecto que nunca foi muito bem estudado. A autêntica simplicidade evangélica consiste justamente em pedir pouco, em não precisar de muito, e não em levar a vida de um bichinho que ignora o mundo que o cerca. Este ignorar é recusar o dom do Espírito, e este é o pecado que não é perdoado nem nesta vida nem na outra, o pior dos pecados. Tudo é perdoado menos o pecado contra o Espírito Santo. Qual é este pecado? A ignorância voluntária — e ainda há quem chame isso de "simplicidade evangélica".

A falta de interrogação sobre o sentido da vida, a depreciação desta busca ou sua redução a uma curiosidade acadêmica, como se algo desligado do eixo da vida, isto é o desprezo pelo Espírito. Se o sujeito faz isso e depois vai ler a Bíblia, vai rezar, ele está perdendo tempo. É uma besteira: ele já informou a Deus que não quer nada com Ele.

Essa desespiritualização é a total absorção do indivíduo nas tarefas de subsistência, incluindo as tarefas de prazer, que também são para subsistência. Você precisa de uma certa quota de prazer sexual, gastronômico, etc., simplesmente para sobreviver, assim como, para sobreviver, precisa de uma certa dose de esforço dolorido. Enquanto o indivíduo está limitado a essas duas coisas, ele optou pela vida natural, não quer saber do sobrenatural. Se ele quiser saber do sobrenatural, terá de passar por essa interface, que é o sentido da vida dele mesmo.

Para você saber o sentido de uma coisa, primeiro precisa saber que coisa é esta. "Que é que eu sou?", "Onde é que eu estou?", "Que é que eu estou fazendo aqui?", "Que é que está me acontecendo?" e "Em que rumo está indo o curso da minha vida?" Por exemplo: Você deseja realmente saber todos os impulsos hereditários malignos que herdou de seus antepassados? Assassinos, estupradores, traficantes, contrabandistas, proxenetas, dedos-duros — quer? Quer ver tudo isto? A isto Dante chama descida aos infernos: reconhecer as possibilidades inferiores que ainda estão em você. Você querver isto? Não, não quero. diz a maioria. Então, se não quer, não adianta ir rezar, porque a função do Espírito Santo é revelar precisamente isso para você. Pelo olharfirme e inteligente é que você supera todo o mal que há em você: se você é capaz de saber, de olhar, você já está acima do seu próprio mal interior; agora, se você não quer ver, você ainda está em baixo. Não temos medo daquilo que nos é inferior. Só quando você quer ver esse conjunto é que, pelo simples fato de ser vistas, essas possibilidades então são queimadas, passam a fazer parte do seu mundo cognitivo e você de certo modo já está colocado acima delas.

Então, se formos pensar a ferro e fogo, a idéia que se tem hoje da preocupação "realista" com o cotidiano repetível é uma fuga do Espírito, uma sucessão de analgésicos. Quando acontece uma grande desgraça, o indivíduo se pergunta "por que isso aconteceu a mim?". Boa pergunta, mas antes de perguntar pela desgraça, já devia ter perguntado uma série de outras coisas. Não, ele deixa para fazer perguntas só quando acontece a desgraça. Ora, a desgraça pode ser complicada, e ele talvez não a entenda. A situação do personagem do filme é uma situação evidentemente ideal, portanto artisticamente simplificada. É o indivíduo que nunca tinha pensado em nadae repentinamente tem de entender tudo. E ele entende. Ora, ele entende porque é um filme, é um esquema simplificado, simbólico, da vida. Na verdade, se o indivíduo passar a vida toda ignorando solenemente tudo o que se passa, quando ocorrer a desgraça ele também não vai entender, vai ficar ainda mais burro do que estava antes.

Não acredito que deixar tudo para o último minuto possa adiantar, exceto no filme. No filme, há um idiota jogado de repente numa situação trágica, onde ele tem de entender tudo e realmente entende, e, na hora em que entende, sua compreensão tem uma função catártica. Na hora em que toma consciência do que aconteceu, ele descarrega o mal que havia na situação e esse mal instantaneamente se converte em bem e sua esposa é resgatada.

Eu não nego que possa haver, neste sentido, uma atuação mágica do ser humano sobre o cenário histórico e até mesmo o cósmico, na medida em que entende o mal e, entendendo, o expressa e sublima de alguma maneira, exatamente como dizia Thomas Mann, que algumas previsões a gente faz justamente para que não aconteçam.

Mas, e se ninguém quer ver o mal? Aí vai acontecer mesmo. Se você não quer ver, você deixa tudo atuando na esfera da mecanicidade, das causas que já estão atuando independentemente de você e que vão chegar fatalmente às suas finalidades. Se você percebe e absorve este impacto, é possível que a sua tomada de consciência tenha uma função catártica capaz de beneficiar muitos seres humanos em torno.

É por isso que em geral profetas e grandes místicos são pessoas que tendem a ser mais tristes do que alegres, porque sabem o que está se passando. Podem antever certos resultados que os outros não antevêem e já sabem o que vai dar errado. Maomé olhava para um sujeito e sabia que o sujeito já estava no inferno, sabia que não podia fazer nada por ele, então chorava. Mas esta é uma última instância. Não é preciso antever o sujeito no inferno, mas um sujeito na câmara de gás ou num pelotão de fuzilamento é impossível que não haja ninguém capaz de antever. Entretanto, nas situações em que esse mal se aproxima, muitos esperam para tomar consciência no último momento.

Toda tragédia tem esse elemento: ver ou não querer ver. Na tragédia antiga, esse não ver não envolve culpa. A tragédia antiga parte do princípio de que existe uma certa limitação da inteligência humana. É um caso extremo, onde, mesmo agindo no melhor de suas capacidades, o homem não conseguiria entender, então ele se torna uma vítima inocente do jogo cósmico.

Na esfera cristã, já não se admite isso e sempre há um sentido culposo, e por isso mesmo o gênero trágico não floresce muito aqui. No mundo cristão, o que não quis ver tem culpa. Sempre há uma margem de manobra: as coisas poderiam ser de outra maneira. Pode haver um desenlace horrível, mas não trágico, porque não fatal. Foi uma escolha errada. De maneira aparentemente paradoxal, a culpa restaura a liberdade, porque ao assumir a culpa o sujeito vence, de certo modo, o destino fatal. As pessoas que hoje falam levianamente contra o senso cristão da culpa não entendem ou fingem não entender que a única alternativa a isso é o retorno à fatalidade trágica grega onde o inocente é sempre condenado. Os inimigos do sentimento de culpa são inimigos da liberdade.

Mas há maneiras distintas de entender, por exemplo, a história de Adão. Adão erra por fatalidade, ou tinha margem de manobra? Ele podia enxergar o que estava acontecendo ou foi uma pobre vítima dos acontecimentos? A interpretação muçulmana diz que foi um simples lapso intelectual, por isso não aceitam o pecado original: ali onde Adão errou qualquer um erraria. Mas é preciso compreender que a perspectiva islâmica, nesse caso, está referida à espécie humana e não ao indivíduo. No plano das ações individuais existe culpa, sim. O que o islamismo professa no fundo é apenas que o pecado de Adão foi de ordem cognitiva, e não propriamente moral.

Epílogo em junho de 1997

A gravação desta aula termina assim, abruptamente. Mas lembro que encerrei dizendo que Aurora, obra de um cineasta que foi um profundo estudioso da filosofia, da religião, do simbolismo e do esoterismo, era um cume de realização artística que o cinema nunca havia ultrapassado, precisamente porque nele as imagens condensavam diretamente e sem qualquer linguagem enigmática os problemas mais altos da metafísica do destino e da providência, com uma sutileza digna de Sto. Agostinho e Leibniz. Continuo dizendo isto e Friedrich Wilhelm Murnau continua sendo para mim o maior diretor de cinema de todos os tempos, até prova em contrário.

FICHA

Direção: F.W. Murnau
Roteiro: Carl Mayer
Baseado no romance Die Reise Nach Tilsit ("Viagem a Tilsit") de Hermann Sudermann
Cinematografia: Charles Rosher and Karl Struss
Música: Hugo Riesenfeld
Montagem: Harold D. Schuster
Produção: William Fox

Papéis principais:

George O'Brien - O marido
Janet Gaynor - A esposa
Margaret Livingston - A mulher da cidade

LINKS

Se você quer saber mais sobre a vida e a obra de F. W. Murnau, dê uma espiada nestas esplêndidas páginas:

http://home.earthlink.net/~jakre/murnau/index.html

http://www.fh-bielefeld.de/fb4/murnau/start1.htm

http://gurukul.ucc.american.edu/dshep/modern_students/nw0461a/home.htm

O Imbecil Coletivo: O Imbecil do Pires e o meu

Olavo de Carvalho

30 de setembro de 1996

Relembrando o Pires

Pires, no caso, não é aquela concavidade, geralmente de louça ou porcelana, em que se apóia a bunda da xícara. É um ser humano, com todos os atributos aparentes da espécie, inclusive o ridículo de nascença. Apenas, ele vai, neste particular, um pouco além da média humana, provando, para gáudio dos igualitaristas, que todo mundo pode ser superior em alguma coisa.

Pelo texto que a seguir reproduzo, e diante do qual o Pires permaneceu mudo e estatelado como sói acontecer com os objetos de louça quando admoestados, o leitor poderá notar que o Pires estava particularmente qualificado para escrever, com a maior isenção, sobre a minha edição dos Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux, sendo por isto escolhido para essa tarefa pelo seu chefe, isto é, por ele mesmo. Sim, o Pires dirige o caderno Prosa ao Inverso, e não pode nem mesmo alegar que só escreveu porque lhe mandaram. Data venia do falecido presidente Jânio, o Pires fê-lo porque qui-lo. Fê-lo porque gosta. Fê-lo porque é o Pires, porque está condenado a sê-lo pelo resto de seus dias e porque nada se pode fazer para salvá-lo desse destino.

Que o Pires é um sujeito isento, é coisa que não nego. Só não me perguntem isento de quê, porque, se perguntarem, eu digo.

Sua resenha do meu trabalho também foi isenta — isenta de qualquer referência e esse trabalho.

Certa vez, quando o editor do caderno hoje dirigido pelo Pires era Luciano Trigo, fui convidado para escrever a resenha de um livro de João Ricardo Moderno. Respondi que, sendo o autor um notório inimigo meu, eu só faria a resenha se, lendo a obra, encontrasse nela algo que pudesse louvar. Qualquer jornalista digno do nome faria o mesmo. Mas eu sou do tempo em que a ética ainda não tinha voltado a ser tal como era antes de Sócrates, isto é, tal como a entendia o velho Alcebíades: ajudar os amigos e sacanear os inimigos.

O Imbecil do Pires e o meu

Extraído de O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras
(2ª ed., Rio, Faculdade da Cidade Editora, 1997).

É manifesto que o crítico Paulo Roberto Pires ( Prosa & Verso, 31 de agosto ) não gostou do meu livro O Imbecil Coletivo. Tanto não gostou que inventou outro e escreveu sobre ele, jurando que era o meu. Superando além de toda medida o mero “não li e não gostei”, inaugura-se assim uma nova e mais econômica modalidade de crítica literária, que prescinde do autor, do editor e do livro, ficando todas essas funções reunidas na pessoa do crítico. Para que o leitor faça uma idéia de como se pratica o novo gênero, assinalo aqui algumas das diferenças substanciais entre o livro que escrevi e aquele que o crítico comentou:

  1. Segundo o Pires, chamo as pessoas de “medalhões”. A palavra “medalhão” só aparece duas vezes no meu livro: na citação do título “Teoria do Medalhão” de Machado de Assis, e na explicação do uso que dela faz Lima Barreto. Não qualifiquei uma única pessoa com esse adjetivo.
  2. “A seus olhos – diz o Pires – , a presença de autores estrangeiros nos papersuniversitários, ensaios e suplementos culturais é sinal de subserviência intelectual.” Não afirmei nem afirmaria jamais uma asneira dessas, que o Pires mesmo inventou com a finalidade mal disfarçada de fazer-me parecer um asno.
  3. Segundo o Pires, meu livro acusa sistematicamente de “macaqueação” quem quer que cite um autor que não me agrade. Onde ele viu isso? Ao longo de todas as páginas, não acuso ninguém de macaquear qualquer autor que seja, quer me agrade ou não.
  4. Ainda segundo o Pires, insinuo que sou perseguido pela massa ignara. Nunca insinuei nem afirmei isso, muito menos no livro. O único ignaro que me persegue é o Pires.
  5. Informa o mesmo Pires que acuso os intelectuais de “conservadores”. Não encontro nada disto no meu livro, mesmo porque, no meu entender, nem “conservador” é xingamento, nem “progressista” é elogio, embora possam sê-lo para o Pires, sujeito progressista a mais não poder.
  6. Na contagem do Pires, meu livro tem 289 páginas. Nem nisto o infeliz diz a verdade: tem 383.

Por que o Pires não pode, como os críticos normais, se ater fielmente ao texto que pretende criticar? Por que tem de inventar um texto fictício para fazê-lo posar em lugar de um livro do qual não sabe sequer o número de páginas, e que provavelmente só conhece por referências de terceiros ou por uma lambida muito rapidinha no índice e no prólogo? A resposta é simples: é que ele não pretende criticar, nem mesmo impiedosamente, um texto. Quer difamar um homem, destruir-lhe o crédito e a auto-estima, feri-lo psicologicamente e criar em torno dele uma atmosfera de hostilidade maliciosa e suspicaz — propósito que só não se cumpre em razão da fraqueza do agressor e do bom estado de saúde da vítima. Prova suplementar dessa intenção, caso fosse preciso, é que o Pires não se contenta com falsificar o conteúdo da obra, mas se aventura a colar um rótulo depreciativo e falso diretamente na pessoa do autor: segundo ele, sou filósofo apenas por autodenominação. Mas não me autodenomino coisa nenhuma, nem poderá o Pires assinalar uma única página d’O Imbecil Coletivo onde eu o tenha feito. Sou assim denominado pela Academia Brasileira de Filosofia — onde acabo de ser publicamente homenageado nessa condição —, pelo Instituto Brasileiro de Filosofia, pela Faculdade da Cidade, pela Universidade Católica do Salvador, por muitos intelectuais de primeira ordem e pelo mesmo jornal onde o Pires escreve mal que dói. Não podendo ignorar esse fato notório, o Pires mentiu deliberadamente, com intuito de difamação, nisto como em tudo o mais que falseou. E após ter assim procurado ferir de maneira intencional a dignidade de um sujeito que ele nunca viu e que nunca lhe fez mal algum, o Pires ainda o acusa de “grosseiro”. Certo, certo. O Pires é que é fino. Fino e de porcelana como um urinol do Império.

No seu dedicado empenho de tudo distorcer, o Pires chega a trocar o sujeito das minhas frases. Segundo ele, afirmo que meu trabalho “é mais que uma alusão satírica”. Digo isso do título, não do livro. Mas como o Pires leu do livro pouco mais que o título, compreende-se a troca.

E tal é sua ânsia de destruir, que ele não recua diante das maiores temeridades no uso de uma lógica extravagante. Ele diz que meu livro está cheinho de contradições. Mas, com inexplicável comedimento, cita uma só: é que o autor “não prescinde da mesma mídia que condena”. Conclui-se que, para o Pires, toda crítica à mídia, para ter coerência, deve abster-se de ser divulgada. O Pires, além de não saber ler, definitivamente não raciocina. Ademais, não condenei mídia nenhuma, apenas o uso que os Pires fazem dela.

O Pires, em resumo, não gostou nem leu: inventou. Sua crítica é pura fraude, que não vai enganar a ninguém. Nem sequer a ele mesmo, que já revela, no fundo, a sujidade da sua consciência. Querem ver? Segundo ele, o “formulário-padrão”, em que vacino meu livro contra os chavões da maledicência, “anula qualquer possibilidade de diálogo”. Deduz-se daí, inescapavelmente, que o Pires não concebe nenhuma outra forma de diálogo possível senão as rotulações padronizadas que o “formulário” satiriza. E ele se sente muito constrangido porque, não sabendo fazer outra coisa, já não pode mais exercer esse tipo de “diálogo” sem se autodenunciar no ato. Nunca vi tanta pressa em vestir uma carapuça.

Tão malevolente é o Pires, que, num paroxismo de raiva insana, condena no meu livro até o fato de só trazer na contracapa as críticas favoráveis. Que eu saiba, todos os livros são assim. Desejaria o Pires que o meu editor, ao contrário de todos os outros, fizesse propaganda contra o próprio produto? Ademais, não existia, até o advento do Pires, nenhuma crítica desfavorável a O Imbecil Coletivo ou a qualquer outro livro meu. Mas, para não irritar mais ainda um sujeito já tão enfurecido pelo meu pecado de fazê-lo rir de si mesmo — humilhação suprema para quem se leva infinitamente a sério —, concordo em publicar o parecer do Pires na contracapa da próxima edição. Por menos que ele goste de mim, ou eu dele, não posso negar a esse rapaz a única oportunidade que ele vai ter na vida de aparecer ao lado de Paulo Francis, Herberto Sales, Josué Montello e Bruno Tolentino.

 

A Nova Era e a Revolução Cultural: Introdução geral à Trilogia

INTRODUÇÃO GERAL À TRILOGIA

MANUAL DO USUÁRIO

de O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras e dos volumes que o antecederam: A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci e O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César – Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil.

Texto lido no Lançamento de O Imbecil Coletivo. Faculdade da Cidade, Rio de Janeiro, 22 de agosto de 1996.

O Imbecil Coletivo encerra a trilogia iniciada com A Nova Era e a Revolução Cultural ( 1994 ) e prosseguida com O Jardim das Aflições ( 1995 ).

Cada um dos três livros pode ser compreendido sem os outros dois. O que não se pode é, por um só deles, captar o fundo do pensamento que orienta a trilogia inteira.

A função de O Imbecil Coletivo na coleção é bastante explícita e foi declarada no Prefácio: descrever, mediante exemplos, a extensão e a gravidade de um estado de coisas – atual e brasileiro – do qual A Nova Era dera o alarma e cuja precisa localização no conjunto da evolução das idéias no mundo fora diagnosticada em O Jardim das Aflições.

O sentido da série é, portanto, nitidamente, o de situar a cultura brasileira de hoje no quadro maior da história das idéias no Ocidente, num período que vai de Epicuro até a “Nova Retórica” de Chaim Perelman. Que eu saiba, ninguém fez antes um esforço de pensar o Brasil nessa escala. Meus únicos antecessores parecem ter sido Darcy Ribeiro, Mário Vieira de Mello e Gilberto Freyre, o primeiro com a tetralogia iniciada com O Processo Civilizatório, o segundo com Desenvolvimento e Cultura, o terceiro com sua obra inteira. Separo-me deles, no entanto, por diferenças essenciais: Ribeiro emprega uma escala muito maior, que começa no Homem de Neanderthal, mas ao mesmo tempo procura abranger esse imenso território desde o prisma de uma determinada ciência empírica, a Antropologia, e fundado numa base filosófica decepcionantemente estreita, que é o marxismo nu e cru. Vieira de Mello, com muito mais envergadura filosófica, não se aventura a remontar além do período da Revolução Francesa, com algumas incursões até o Renascimento e a Reforma. Quanto a Gilberto, o ciclo que lhe interessa é o que se inicia com as grandes navegações. De modo geral, os estudiosos da identidade brasileira deram por pressuposto que, tendo entrado na História no período chamado “moderno”, o Brasil não tinha por que tentar enxergar-se num espelho temporal mais amplo. Estou, portanto, sozinho na jogada, e posso alegar em meu favor o temível mérito da originalidade.

Temível porque originalidade é singularidade, e a mente humana está mal equipada para perceber as singularidades como tais: ou as expele logo do círculo de atenção, para evitar o incômodo de adaptar-se a uma forma desconhecida, ou as apreende somente pelas analogias parciais e de superfície que permitem assimilá-las erroneamente a alguma classe de objetos conhecidos. Entre a rejeição silenciosa e o engano loquaz, minha trilogia não tem muitas chances de ser bem compreendida.

Mas a singularidade, nela, não está só no assunto. Está também nos postulados filosóficos que a fundamentam e na forma literária que escolhi para apresentá-la, ou antes, que sem escolha me foi imposta pela natureza do assunto e pelas circunstâncias do momento.

Quanto à forma, o leitor há de reparar que difere nos três volumes. O primeiro compõe-se de dois ensaios de tamanho médio, colocados entre duas introduções, vários apêndices, um punhado de notas de rodapé e uma conclusão. O todo dá à primeira vista a idéia de textos de origens diversas juntados pela coincidência fortuita de assunto. A um exame mais detalhado, revela a unidade da idéia subjacente, encarnada no símbolo que fiz imprimir na capa: os monstros bíblicos Behemot e Leviatã, na gravura de William Blake, o primeiro imperando pesadamente sobre o mundo, o maciço poder de sua pança firmemente apoiado sobre as quatro patas, o segundo agitando-se no fundo das águas, derrotado e temível no seu rancor impotente. Não usei a gravura de Blake por boniteza, mas para indicar que atribuo a esses símbolos exatamente o sentido que lhes atribuiu Blake. Detalhe importante, porque essa interpretação não é nenhuma alegoria poética, mas, como assinalou Kathleen Raine em Blake and Tradition, a aplicação rigorosa dos princípios do simbolismo cristão. Na Bíblia, Deus, exibe Behemot a Jó, dizendo: “Eis Behemot, que criei contigo” ( Jó, 40:10 ). Aproveitando a ambigüidade do original hebraico, Blake traduz o “contigo” por from thee, “de ti”, indicando a unidade de essência entre o homem e o monstro: Behemot é a um tempo um poder macrocósmico e uma força latente na alma humana. Quanto a Leviatã, Deus pergunta: “Porventura poderás puxá-lo com o anzol e atar sua língua com uma corda?” ( Jó, 40:21 ), tornando evidente que a força da revolta está na língua, ao passo que o poder de Behemot, como se diz em 40:11, reside no ventre. Maior clareza não poderia haver no contraste de um poder psíquico e de um poder material: Behemot é o peso maciço da necessidade natural, Leviatã é a infranatureza diabólica, invisível sob as águas – o mundo psíquico – que agita com a língua.

O sentido que Blake registra nessas figuras não é uma “interpretação”, na acepção negativa que Susan Sontag dá a esta palavra: é, como deve ser toda boa leitura de texto sacro, a tradução direta de um simbolismo universal. Para Blake, embora Behemot represente o conjunto das forças obedientes a Deus, e Leviatã o espírito de negação e rebelião, ambos são igualmente monstros, forças cósmicas desproporcionalmente superiores ao homem, que movem combate uma à outra no cenário do mundo, mas também dentro da alma humana. No entanto não é ao homem, nem a Behemot, que cabe subjugar o Leviatã. Só o próprio Deus pode fazê-lo. A iconografia cristã mostra Jesus como o pescador que puxa o Leviatã para fora das águas, prendendo sua língua com um anzol. Quando, porém, o homem se furta ao combate interior, renegando a ajuda do Cristo, então se desencadeia a luta destrutiva entre a natureza e as forças rebeldes antinaturais, ou infranaturais. A luta transfere-se da esfera espiritual e interior para o cenário exterior da História. É assim que a gravura de Blake, inspirada na narrativa bíblica, nos sugere com a força sintética de seu simbolismo uma interpretação metafísica quanto à origem das guerras, revoluções e catástrofes: elas refletem a demissão do homem ante o chamamento da vida interior. Furtando-se ao combate espiritual que o amedronta, mas que poderia vencer com a ajuda de Jesus Cristo, o homem se entrega a perigos de ordem material no cenário sangrento da História. Ao fazê-lo, move-se da esfera da Providência e da Graça para o âmbito da fatalidade e do destino, onde o apelo à ajuda divina já não pode surtir efeito, pois aí já não se enfrentam a verdade e o erro, o certo e o errado, mas apenas as forças cegas da necessidade implacável e da rebelião impotente. No plano da História mais recente, isto é, no ciclo que começa mais ou menos na época do Iluminismo, essas duas forças assumem claramente o sentido do rígido conservadorismo e da hübris revolucionária. Ou, mais simples ainda, direita e esquerda.

O drama inteiro aí descrito pode-se resumir iconograficamente no esquema em cruz que coloquei depois em O Jardim das Aflições, mas que já está subentendido em A Nova Era e a Revolução Cultural, pois constitui a estrutura mesma do enfoque analítico pelo qual procuro aí apreender a significação das duas correntes de idéias mencionadas no título: o holismo neocapitalista de Fritjof Capra e o empreendimento gramsciano de devastação cultural.

Nesse primeiro volume, a forma adotada inicialmente não podia ser mais clara e foi imposta pela natureza mesma do assunto: uma introdução, um capítulo para Capra, outro para Gramsci, um retrospecto comparativo e uma conclusão inescapável: as ideologias, quaisquer que fossem, estavam sempre limitadas à dimensão horizontal do tempo e do espaço, opunham o coletivo ao coletivo, o número ao número; perdida a vertical que unia a alma individual à universalidade do espírito divino, o singular ao Singular, perdia-se junto com ela o sentido de escala, o senso das proporções e das prioridades, de modo que as ideologias tendiam a ocupar totalitariamente o cenário inteiro da vida espiritual e a negar ao mesmo tempo a totalidade metafísica e a unidade do indivíduo humano, reinterpretando e achatando tudo no molde de uma cosmovisão unidimensional.

As notas e apêndices, que aparentemente colocam alguma desordem na forma do conjunto, servem aí a dois propósitos opostos e complementares: de um lado, indicar as bases mais gerais que o argumento conservava implícitas, mostrando ao leitor que a análise de Capra e Gramsci era apenas a ponta visível de uma investigação muito mais ampla que, àquela altura, só meus alunos conheciam através das aulas e apostilas do Seminário de Filosofia, mas que, nas condições de uma vida anormalmente agitada, eu não estava certo de poder redigir por completo algum dia; de outro lado, indicar que minhas análises não pairavam do céu das meras teorias, mas que se aplicavam à compreensão de fatos políticos que se desenrolavam na cena brasileira na hora mesma em que eu ia escrevendo o livro – daí as arestas polêmicas que dão a trechos desse ensaio uma aparência de jornalismo de combate. Se alguns leitores não viram no livro mais que essa superfície – como outros não verão em O Imbecil Coletivo senão a crítica de ocasião a certos figurões do dia e em O Jardim das Aflições um ataque ao establishment uspiano –, não posso dizer que perderam nada, pois o restante e o melhor do que se contém nesses livros não foi feito realmente para esses leitores e é bom mesmo que permaneça invisível aos seus olhos.

Se no primeiro volume permiti que a idéia central fosse apenas esboçada em fragmentos, um tanto à maneira minimalista, para que o leitor, antes pressentindo-a do que percebendo-a, tivesse o trabalho de ir buscá-la no fundo de si mesmo em vez de simplesmente pegá-la na superfície da página, no segundo, O Jardim das Aflições, segui a estratégia inversa: ser o mais explícito possível e dar à exposição o máximo de unidade, obrigando o leitor a seguir uma argumentação cerrada, sem saltos ou interrupções, ao longo de quatrocentas páginas. Mas, para não dar a ilusão de que essa forma completa abrangesse a totalidade do meu pensamento a respeito do tema, espalhei ao longo do texto centenas de notas de rodapé que indicavam os pressupostos teóricos implícitos, as possibilidades de aprofundamentos por realizar ( ou já realizados só oralmente em aula ), e mil e uma sementes de desenvolvimentos possíveis e interessantes, que eu realizaria se tivesse uma vida sem fim, mas que os leitores inteligentes bem podem ir realizando por sua conta. A unidade de argumentação de O Jardim das Aflições, que na minha intenção, confirmada por alguns leitores, dá a esse livro não obstante pesadíssimo e complexo a legibilidade de um romance policial, mostra assim não ser a unidade cerrada de um sistema, mas a unidade de um holon, como diria Arthur Koestler: algo que, visto de um lado, é um todo em si, e, de outro lado, é parte de um todo mais vasto. Esta homologia de parte e todo repete-se, por sua vez, na estrutura interna do livro, onde o evento aparentemente insignificante que lhe serve de ponto de partida já contém, na sua escala microcósmica, ou microscópica, as linhas gerais da interpretação global da história do Ocidente, que é apresentada nos capítulos restantes. Aqueles leitores que se queixaram de que um livro tão substancioso começasse pelo comentário polêmico de um acontecimento menor, mostraram não compreender bem uma das mensagens principais do livro, que é a de que, à luz de uma metafísica da História, não há propriamente acontecimentos menores – o grande e o pequeno estão coeridos na unidade orgânica de um Sentido que tudo pervade. Aquilo que nada pesa na ordem causal pode muito revelar na ordem da significação.

E, na verdade, se houvesse acontecimentos perfeitamente insignificantes, que nada merecessem senão o desprezo e o silêncio, o terceiro volume da série, O Imbecil Coletivo, não poderia sequer ter sido escrito: pois o que nele apresento é um mostruário comentado de banalidades culturais que muito significam precisamente na medida em que não valem nada. E, se decidi reuni-las num volume, dando-lhes a dignidade de serem lembradas quando seus autores já nada mais forem senão sombras no Hades, que é o sepulcro do irrelevante, foi precisamente porque entendi que, partindo de cada uma delas, e girando em círculos concêntricos cada vez mais amplos, se poderia chegar a visões de escala universal semelhantes àquela em que, partindo de uma picuinha cultural ocorrida no Museu de Arte de São Paulo em 1990, mostrei aos leitores de O Jardim das Aflições o combate de Leviatã e Behemot no horizonte inteiro da história Ocidental. E, não podendo refazer tamanho esforço hermenêutico a cada nova babaquice cultural que lesse nos jornais, decidi reunir algumas e oferecê-las aos leitores como amostras para fins de exercício. O Imbecil Coletivo é, portanto, o livro de tarefas que acompanha o texto-base trazido em O Jardim das Aflições, ficando A Nova Era como abreviatura para principiantes. Quem leia assim O Imbecil Coletivo, buscando ali as lições de casa para reconstituir, desde três dezenas de exemplos, os lineamentos da visão da História e do método interpretativo exposto nos volumes anteriores, e buscando sempre a unidade orgânica entre a parte e o todo, entre a visão filosófica de uma cultura milenar e as amostras da incultura momentânea de um país esquecido à margem da História, esse terá conquistado para si a melhor parte do que lhe dei. Pois é assim que se lêem os livros dos filósofos, mesmo quando se trate apenas de um filosofinho como este que lhes fala.

Admito que, se em qualquer dos três livros tivesse adotado uma forma expositiva mais ao gosto acadêmico, eu não precisaria estar agora chamando a atenção para uma unidade de pensamento que transpareceria à primeira vista. Mas essa visibilidade custaria a perda de todas as referências à vida autêntica e o aprisionamento do meu discurso numa redoma lingüística que não combina nem com o meu temperamento nem com a regra que me impus alguns anos atrás, de nunca falar impessoalmente nem em nome de alguma entidade coletiva, mas sempre diretamente em meu próprio nome apenas, sem qualquer retaguarda mais respeitável que a simples honorabilidade de um animal racional, bem como de nunca me dirigir a coletividades abstratas, mas sempre e unicamente a indivíduos de carne e osso, despidos das identidades provisórias que o cargo, a posição social e a filiação ideológica superpõem àquela com que nasceram e com a qual hão de comparecer, um dia, ante o Trono do Altíssimo. Estou profundamente persuadido de que somente nesse nível de discurso se pode filosofar autenticamente.

Ademais, existe algum mérito pedagógico em não ser bem arrumadinho, em poder dispor os dados não na ordem mais costumeira em que os desejaria o espectador preguiçoso, mas em desarrumá-los inteligentemente de modo a obrigar o leitor a tomar parte ativa na investigação. E há um prazer imenso em misturar os gêneros literários quando se é autor de um livreto que antes os distinguiu e catalogou com requintes de rigidez formal1.

Estou imensamente satisfeito de ter podido concluir esta trilogia e de poder estar aqui hoje, nesta celebração que para mim é menos a do lançamento de um livro que a da conclusão de uma parte, de uma etapa da tarefa que me cabe nesta vida. Tarefa que é, em essência, a de romper o círculo de limitações e constrangimentos que o discurso ideológico tem imposto às inteligências deste país, a de vincular a nossa cultura às correntes milenares e mais altas da vida espiritual no mundo, a fazer em suma com que o Brasil, em vez de se olhar somente no espelho estreito da modernidade, imaginando que quatro séculos são a história inteira do mundo, consiga se enxergar na escala do drama humano ante o universo e a eternidade. Tarefa que é, no seu mais elevado e ambicioso intuito, a de remover os obstáculos mentais que hoje impedem que a cultura brasileira receba uma inspiração mais forte do espírito divino e possa florescer como um dom magnífico a toda a humanidade.

22/08/96

NOTAS

  1. Os Gêneros Literários: Seus Fundamentos Metafísicos (Rio, Stella Caymmi / IAL, 1993)

Prefácio à segunda edição