Notas sobre Simbolismo e Realidade

Olavo de Carvalho

Apostila do Seminário de Filosofia

25 de dezembro de 1997

Estas notas serviram de base para as aulas do Seminário de Filosofia de janeiro de 1998, onde receberam extensos desenvolvimentos orais. — O. de C.

1. O simbolismo natural

Há três métodos de uso corrente para a explicação do símbolo:

1º O método etnológico, que o refere às intenções e valores de uma cultura em particular ou de várias delas comparativamente.

2º O método psicológico, que os refere às estruturas mais ou menos permanentes da psique humana.

3º O método esotérico (às vezes chamado também tradicional, no sentido estrito que René Guénon confere ao termo), que refere o símbolo a uma intencionalidade supra-humana.

Esses três métodos são redutivistas: os dois primeiros, ostensivamente; o terceiro, veladamente. Reduzem o símbolo a um véu, a um disfarce: de normas culturais implícitas, no primeiro; de anseios ou temores inconscientes, no segundo; no terceiro, de realidades metafísicas.

Nenhum dos três, portanto, nos responde à pergunta: Que é o símbolo? Fingindo respondê-la, substituem-na pela pergunta: De quê o símbolo é símbolo? E, tendo-nos dito o simbolizado, pretendem que aceitemos isso como conceito de símbolo — como um homem que, interrogado sobre o que são as palavras, respondesse indicando as coisas que elas nomeiam.

Esses três métodos desviam a nossa atenção do fenômeno “símbolo” enquanto tal e a dirigem às causas reais ou supostas da produção do símbolo, escorregando do quê para o porquê — o expediente clássico de quem não sabe de quê está falando. Isto não quer dizer, evidentemente, que tudo o que essas teorias tenham a dizer sobre as causas do símbolo seja despropositado ou falso; quer dizer apenas que é destituído de fundamento suficiente e que este fundamento só poderia ser encontrado justamente na investigação que essas teorias eludem e pretendem substituir, que é a investigação do quid — a primeira de todas as investigações, se não na ordem do tempo, ao menos na ordem da prioridade lógica.

Dito de outro modo, esses três métodos tomam por implícito que uma interpretação de símbolos, desde que se feche num sistema mais ou menos completo, coerente e fundamentado, já é, por si, uma elucidação suficiente quanto à natureza do símbolo — confusão idêntica à de quem tomasse a interpretação exaustiva de uma obra poética — ou mesmo de várias — como resposta suficiente à questão: Que é a poesia? Ora, pode ocorrer, por desgraça, justamente o contrário: que a elucidação da natureza da poesia acabe por impugnar todas essas interpretações, por exaustivas e coerentes que sejam, e por mais amparadas que estejam em conhecimentos científicos, revelando nelas algo assim como uma paralaxe, um desvio do eixo de atenção em relação ao centro de interesse do objeto, uma concentração das questões em objetos parecidos, associados ou circunvizinhos, uma metabasis eis allo genoscomo tão freqüentemente sucede nas investigações científicas não suficientemente ancoradas numa consciência crítico-filosófica das complexidades e peculiaridades do objeto que se pretende investigar.

A estratégia que proponho para a abordagem do símbolo adotará como ponto de partida metodológico a seguinte regra: todo empenho sistemático de interpretação de símbolos deve ser posto entre parênteses como meramente hipotético, até que se alcance uma elucidação suficiente da natureza do símbolo. Esta elucidação, por sua vez, deve ser independente de qualquer chave ou sistema interpretativo ou explicativo-causal previamente dado, por elegante, completo ou prestigioso que seja.

Como objeto inicial da investigação, não admitirei nada mais senão o fato bruto de que existem palavras, grafismos, objetos, entes enfim, aos quais os homens atribuem um tipo especial de significação que denominam “simbólica”, diferente de uma outra que denominam “não simbólica”. Este é um fato de ordem histórica e cultural. A crença nele subentendida refere-se a uma dualidade de modos de significação. Nossa primeira tarefa será simplesmente verificar se essa dualidade é possível e, se possível, em que pode ela consistir.

2. A perspectiva rotatória

1. Cada termo significa uma constelação de intenções atualizáveis. No curso habitual do pensamento, essas intenções permanecem latentes e em germe, como que comprimidas no invólucro do termo. Não as atualizamos senão quando temos algum motivo especial para fazê-lo. Uma pergunta, uma dúvida, podem convidar-nos ou obrigar-nos a desdobrar as significações que supomos carregar em algum canto obscuro do nosso “interior”. Então às vezes verificamos que elas não estão lá; foram-se, ou então a enumeração não vem tão completa quanto esperávamos.

2. Esse caráter meramente potencial da intenção significante revela-nos que, na comunicação habitual, as funções expressiva e comunicativa da linguagem ( K. Bühler ) prevalecem amplamente sobre a função denominativa, com a qual contamos, apenas, como com uma reserva bancária sobre a qual passamos cheque após cheque sem verificar o saldo.

3. A filosofia analítica pretende suplantar as “imprecisões” da linguagem corrente, explicitando até o extremo limite as intenções e significados latentes e submetendo-os à crítica filosófica. Mas uma certa latência e imprecisão não são inerentes à natureza mesma do pensamento, da percepção e do próprio ser das coisas? Uma explicitação plena de todos os significados só é realizável sob a forma de um sistema ideal de conceitos e juízos, que por sua vez não se atualizará na consciência todo de uma vez, mas parte por parte, enquanto as demais partes permanecem latentes no fundo. Ou seja, a consciência que temos desse sistema terá ela mesma a estrutura de perspectivas rotatórias que observamos na vida psíquica corrente e na comunicação habitual: um conceito vem para a frente, enquanto os outros vão para o fundo, desaparecem como conteúdos atuais da consciência para se tornarem esquemas compactos de conteúdos meramente atualizáveis.

4. Uma cadeia lógica não é, assim, mais conhecível de instantâneo e no todo do que uma casa ou uma paisagem. Temos de percorrê-la, e quando no fim cremos conhecê-la “no todo”, o que sobrou em nossas mãos não é mais que um esquema simplificado, ou seja, uma potência de reatualizar no tempo a cadeia percorrida. “Conhecer” um raciocínio é poder reproduzi-lo na seqüência, não é reproduzi-lo no todo e com todos os detalhes num instante sem duração.

5. Forçosamente, cada passo que é atualizado na consciência implica a virtualização dos outros, seu recuo para o depósito do meramente atualizável.

6. É isto o que quero dizer com “perspectiva rotatória”. É a estrutura do ato mesmo de conhecimento, seja do conhecimento pelos sentidos, seja do mero pensamento.

7. É, por outro lado, a estrutura mesma da fenomenalidade como tal: nenhum objeto, nenhum ser, pode se apresentar a um determinado sujeito cognoscente na totalidade instantânea dos seus aspectos. É ilusão pensar que o objeto meramente ideal pode fazê-lo. O conceito mesmo de “quadrado” só se apresenta a mim no resumo compacto de um termo, e não no desdobramento completo das propriedades que inclui. Tanto o pensamento abstrato quanto a percepção sensível têm a estrutura de uma perspectiva rotatória: o sujeito cognoscente circunda o objeto tanto quanto circunda o conceito, e o faz precisamente porque seu foco de atenção é circundado pelas latências de inumeráveis objetos, conceitos e signos.

3. Dado, sentido e unidade (I)

A percepção do mundo como amontoado ou coleção de “coisas” ou meros “dados” sem uma conexão espiritual última pressupõe um observador destituído, por seu lado, de sua própria conexão espiritual, do elo interior entre sensação e significado, consciência e ação, antes e depois; um observador estúpido, em estado de divisão hipnótica e quase paralisia catatônica. É curioso, ou mais propriamente absurdo, que o “mundo” fragmentário captado por essa percepção deficiente seja tomado como norma da “realidade” e medida de aferição da validade da conexão interior que apreendemos no universo. A percepção efetiva do real exige, na mais alta medida, as supremas faculdades de síntese, que nos revelam, para lá mesmo da própria unidade física do mundo, a unidade de um “sentido” do mundo para o qual convergem todos os atos conscientes de um homem no mundo, até os mais mínimos. O kantismo e outras escolas que tomam como “realidade” os puros dados sensíveis e reduzem toda síntese a uma contribuição subjetiva que a mente faz ao mundo ignoram que um mundo sem unidade não poderia ser “dado” a nenhum sujeito, para que o ordenasse segundo suas categorias a priori, porque toda ordenação pressupõe a unidade consciente do sujeito e esta unidade só se realiza, precisamente, nos instantes de coesão ótima em que o mundo lhe aparece como uno, não como um amontoado fragmentário de sensações. A fragmentação do mundo em “dados” supostamente pré-categoriais só se obtém por dois meios: pelos estados patológicos de divisão do eu ou por esforço pessoal de abstração imaginativa; no primeiro caso, o sujeito está separado de si funcionalmente; no segundo, hipoteticamente e, em suma, fingidamente. Os “dados” não são prévios à síntese significativa; obtêm-se, ao contrário, por divisão abstrativa desta última, seja como resíduos de uma sonolência alucinatória, seja como meras formas fantasiosas de um mundo construído pela imaginação. Os famosos “dados” são em suma construídos, e a unidade espiritual última do mundo, em vez de construída, é dada. Por isto fracassam todas as tentativas de construí-la (ou mesmo de reconstruí-la) por meio de criações mentais, seja na arte, seja na ciência, seja na metafísica. A verdadeira metafísica não constrói um mundo, não é metafísica construtiva; é fundamentação discursiva da unidade do mundo espontaneamente percebida. Daí também o fracasso de toda tentativa de “expressar” o sentido último; ele é o pressuposto de toda expressão; é o supremamente percebido, jamais construído; e, fatalmente, só expressamos o que nossa mente constrói. É uma ilusão deduzir, da inexpressabilidade do sentido, sua inapreensibilidade. Ele é inepressável justamente por ser apreensível eminenter, por ser “o” aprensível como tal, enquanto todos os demais apreensíveis só são apreensíveis nele e por ele, sendo por isto expressáveis.

Por não fazer parte nem do mundo pragmático que construímos com nossas ações, nem do mundo imaginativo que construímos com nossa arte, nossa ciência, etc., ele acaba por parecer, à reflexão filosófica de primeira instância (reflexão sobre a cultura, sobre o mundo construído pelo homem), como um “x” remoto e distante, ao qual só poderíamos chegar no termo de uma caminhada que começa no “dado” sensível. Mas é uma ilusão de ótica, que inverte a ordem do real; ao sentido não se chega, pois ele é o pressuposto da própria percepção e, mais ainda, da caminhada reflexiva. O objetivo desta não é atingir o sentido, mas recuperar, no nível discursivo (portanto intersubjetivo), a certeza inicial e intuitiva do sentido. O objetivo é tornar patrimônio comum essa certeza inicial e fundamental que o homem só possui enquanto individualidade vivente, não enquanto ser social falante, plural na variedade de seus papéis e idiomas. No curso dessa recuperação, muitos desastres acontecem, que separam o homem da recordação do sentido e o levam a imaginar, seja que pode construir um sentido a partir dos dados, seja que pode encontrar um sentido partindo de dados sem sentido, seja que pode provar a inexistência do sentido ou a separação abissal entre o dado e o sentido, seja que não necessita de um sentido e pode viver entre puros dados. Tal é o panorama da história da filosofia.

As presentes considerações vão um pouco além do que habitualmente se chama “realismo”. O realismo afirma somente a realidade do mundo. Elas afirmam que a realidade do mundo é um dado, e que também o são, inseparavelmente dela, a unidade espiritual e o sentido do mundo. Realidade, mundo e sentido não podem ser construídos, seja pelo filósofo, seja pela cultura; só podem, por isto, ser percebidos intuitivamente, subentendendo que a intuição pressupõe um sujeito cognoscente dotado de unidade autoconsciente ótima no momento do ato intuitivo. Todo o trabalho da filosofia – e da cultura – é registrar o mundo intuído e defendê-lo, mediante a faculdade discursiva, da dissolução. E quem o ameaça de dissolução é a própria faculdade discursiva, constitutivamente dupla e auto-antagônica – dialética, em suma – ; dupla pela duplicidade de suas operações (significatio e suplentia), dupla pela duplicidade de suas funções (pensar e comunicar).

4. Dado, sentido e unidade (II)

A percepção imediata do sentido e da unidade do mundo, a que me refiro, é simplesmente o saber imediato que temos acerca do que estamos fazendo nele naquele preciso momento, e de aonde pretendemos chegar em seguida, e de aonde pretendemos que vão dar, no fim, todas as nossas ações. Sem esse pressentimento, seríamos incapazes de dar o próximo passo. Seria tolice imaginar que um homem dá seu próximo passo independentemente de qualquer consideração do que vem depois – um próximo passo isolado, atomístico. O “viver cada momento” é apenas uma figura literária. Aquele que diz “viver o momento” o faz sobre o pano de fundo de toda uma concepção do universo, a qual inclui, forçosamente, uma expectativa de continuidade. Tanto que, se fosse informado de sua morte iminente, seu momento seguinte seria bem diferente daquele que experimentaria se lhe dissessem, ao contrário, que a dama de seus desejos o espera no quarto ao lado.

A expectativa de uma continuidade que se prolonga para além da morte, seja na forma de uma vida celeste, seja sob a forma da simples permanência temporal do mundo após nossa saída dele, seja sob qualquer outra forma que se imagine, é uma conditio sine qua non do agir humano, e está subentendida mesmo nas nossas ações mais mínimas e corriqueiras. Mas essa diversidade de imaginações e suposições traduz apenas a variedade de reações individuais a uma experiência que é única e a mesma em todos os seres humanos: a experiência do movimento geral do cosmos, que vai para alguma direção e nos leva. Essa experiência pode ser vivenciada de maneira consciente, com mais probabilidade, na infância, mas em geral ela se torna inconsciente pelo fato mesmo de ser a mais constante e ininterrupta experiência humana, fundamento e condição de toda e qualquer experiência em particular.

5. Unidade e unidades

Mas, se a unidade do mundo é dada e a unidade de cada ente conhecido é apenas potencial, atualizada parcialmente e passo a passo pela perspectiva rotatória, uma conclusão se segue imediatamente: cada ente conhecido só é uno e só é ente a título de imago mundi. Da unidade total extraem sua unidade as unidades parciais.

O Imbecil Coletivo II: Estatais do pensamento

Olavo de Carvalho

Bravo!, Ano 1, no 3, São Paulo, dezembro de 1997.

Quando um padre é apanhado num hotel com uma mini-prostituta de treze anos, quando um oficial de alta patente é surpreendido de joelhos ante o membro viril de um soldado, quando um senador ou deputado é pego em flagrante delito de tráfico de tóxicos, já ninguém mais se surpreende. Acostumamo-nos à idéia de que a Igreja, as Forças Armadas, o Estado são estruturas impessoais, onde cabe toda sorte de gente — dos santos aos bandidos, passando pela horda inumerável dos indiferentes e medíocres.

Mas, quando é um filósofo quem se revela assassino, traficante ou corruptor de menores, as pessoas ainda sentem o choque do escândalo, igual ao que sentiriam, décadas atrás, se o personagem fosse prelado ou almirante. É que a filosofia, no entender do senso comum, não é um emprego, um cargo, uma ocupação como outra qualquer. Ela tem algo a mais, que a linguagem comum não expressa mas a consciência de cada um apreende, e que recobre os seus praticantes de uma aura de dignidade especial. Ela é um sacerdócio informal, que, não obrigando o noviço a nenhum voto perante a autoridade exterior, nem lhe conferindo em recompensa o poder que a autoridade acaba por delegar aos servidores obedientes, não compromete o homem senão perante a sua própria consciência nem lhe dá outro prêmio, quando dá algum, senão a sabedoria. Ela é o sacerdócio leigo do homem livre — o sacerdócio mais alto que se pode conceber.

De tudo isso sabe o senso comum, e por isto mesmo sofre ao ver o filósofo metido na lama, que não lhe parece no entanto local totalmente impróprio aos poderosos deste mundo, sejam prelados, ministros ou almirantes.

Não estará porém a opinião comum um tanto desatualizada com o estado de coisas? Não estará ela projetando sobre os meros funcionários de talento que mediante concurso o Estado nomeou “filósofos” uma expectativa moral formada à imagem dos grandes filósofos do passado? E haverá entre estes e aqueles, realmente, algo mais que uma coincidência do termo que os designa? Não terá a filosofia perdido toda ligação originária com a sabedoria e descido ao nível de uma profissão como qualquer outra, onde cabem, mediante concurso, os heróis e os covardes, os santos e os corruptos, os mártires e os carrascos?

Saber e viver

A filosofia surgiu como um esforço de interiorização do conhecimento, uma ascese do espírito que, ao buscar a unidade do saber, buscava nela a sua própria unidade e, nesta, a unidade de saber, ser e agir. Em todo o período grego, a interrogação sobre a alma, o bem e a conduta na vida não era um domínio separado das investigações físicas e ontológicas, mas formava com elas, na pessoa do filósofo, a síntese de conhecimento e vida. As escolas de filosofia não eram apenas centros de ensino e investigação científicos, mas escolas de sabedoria e, até certo ponto, sociedades iniciáticas. Não procuravam apenas transmitir a seus membros um certo conhecimento, mas educá-los numa certa maneira de viver que, para a consciência filosófica, era a maneira certa de viver.

Essa síntese permanece viva e atuante até o fim do mundo antigo, na escola estóica e no neoplatonismo. Na Idade Média, ganha ainda mais peso e consistência, graças à associação que se forma entre o estudo da filosofia e a prática da moral cristã. Levando às últimas conseqüências o ideal grego de cultivo da sabedoria, a filosofia medieval torna-se um caminho de santidade, realizando a máxima de Clemente de Alexandria: “A filosofia é o pedagogo que conduz a alma até o Cristo”. Concepção similar desenvolve-se no mundo islâmico, onde a filosofia se alia, na fraternidade de Basra e em outras escolas de mística, a práticas ascéticas destinadas a obter a máxima concentração da alma e torná-la plenamente dócil a evidências cada vez mais altas que lhe vão sendo reveladas pela intuição espiritual.

Mesmo diluído na onda de mundanismo e esteticismo que então se avoluma, esse ideal sobrevive no Renascimento: nem Descartes, nem Pascal, nem Malebranche, nem Leibniz, nem Newton podiam conceber uma ciência que fosse desligada do autoconhecimento e do cultivo das virtudes.

A filosofia como emprego

Em contraste com essa concepção, que durou dois mil anos, a filosofia que se pratica no mundo desde o século XIX é uma profissão remunerada, geralmente exercida numa instituição estatal ou sob a fiscalização do Estado. Seu exercício requer do praticante apenas a posse de determinados conhecimentos, a obediência aos regulamentos administrativos e, last not least, um certo traquejo social ou habilidade política, que com muita freqüência se revela um fator mais decisivo que os dois anteriores. Toda ascese interior e busca da sabedoria não apenas se revelam dispensáveis, como também sua prática se torna extremamente dificultosa nas condições em que a nova profissão se exerce. A filosofia torna-se um emprego, um papel social, e a seleção dos candidatos nada exige em matéria de condições morais, espirituais ou psicológicas: desde que passe no concurso, um esquizofrênico, um farsante, um demagogo, um assassino ou um mentiroso compulsivo pode agora adornar-se do título que um dia significou “amante da sabedoria”. O filósofo é alguém que sabe e que sobretudo fala, mas que não tem a mais mínima obrigação de ser.

O risco de decadência moral, nessas condições, é considerável. Se Kant julgava ingênuo buscar respostas às questões metafísicas sem antes de fazer uma investigação preliminar sobre a possibilidade teórica do conhecimento metafísico, mais ingênuo ainda é julgar que podemos chegar a bom resultado nesta investigação, ou na busca daquelas respostas, sem antes termos resolvido o problema prático de saber se nossa mente pessoal é idônea o bastante para tratar desses assuntos sem deformá-los à imagem e semelhança de sua própria insinceridade.

À medida, porém, que o mundo moderno se imbuía de todas as precauções kantianas contra a possibilidade de erros teóricos, ao mesmo tempo foi negligenciando cada vez mais as precauções mais elementares de ordem prática concernentes à qualificação moral e psicológica requerida para o exercício da filosofia.

Na escola platônica, o estudante não adormecia antes de repassar de memória todos os seus atos e pensamentos do dia, de modo a não esmorecer no seu empenho de autoconsciência; e na manhã seguinte, se aparecesse despenteado ou mal vestido, não era admitido em classe: a ordem no interior da alma devia refletir-se numa aparência física limpa e saudável.

Na Idade Média, a disciplina interior do aspirante a filósofo tornou-se ainda mais aperfeiçoada e exigente, com a adoção generalizada das práticas cristãs da confissão, do exame de consciência e do discernimento dos espíritos.

Desde o Renascimento, e cada vez mais à medida que o mundo Ocidental entrava na chamada “modernidade”, essas exigências foram se afrouxando, até o ponto de se aceitarem como filósofos, sem a menor reticência, malandros bem-falantes como Voltaire, mentirosos patológicos como Rousseau, loucos perigosos como o Marquês de Sade e homicidas como Louis Althusser.

Uma das causas desse estado de coisas é que a filosofia universitária, tendo adotado os critérios padronizados de informação científica, incorporou, junto com eles, o modo de discussão e triagem consensual empregado nas “ciências humanas”. Isto é à primeira vista um progresso, mas tem por conseqüência levar o estudioso para cada vez mais longe da ascese interior e transformá-lo num trabalhador científico rotineiro, empregado numa atividade coletiva onde o que interessa é obter um resultado global no qual o nível de consciência e a perfeição da alma de cada participante não contam para absolutamente nada. Nessas circunstâncias, cada nova tese deve antes harmonizar-se com as exigências do meio acadêmico do que com as demais opiniões e atitudes do homem que a produziu. O pensador tem de prestar mais reverência ao superego universitário do que à sua própria consciência: pede-se que defenda bravamente suas opiniões, com primores de dialética e erudição se possível, mas não que acredite nelas sinceramente ou que as leve a sério fora do horário de expediente. E como a diversidade das perspectivas que se confrontam nos debates é geralmente grande, e bem extensa a lista de trabalhos anteriores sobre o mesmo assunto que é preciso levar em conta, cada estudioso, que tenha uma idéia nova, com mais probabilidade a dispersará em debates acadêmicos muito antes de ter a oportunidade, ou mesmo o desejo, de averiguar o que ela significa para ele mesmo e de tirar dela a menor conseqüência para a conduta da sua vida. Forçado a amoldar sua idéia o quanto antes aos padrões do intercâmbio acadêmico, e jamais convidado a assumir por ela uma responsabilidade pessoal, o estudante de filosofia mal percebe o quanto isto arrisca transformá-lo com mais facilidade num amante da tagarelice do que num amante da sabedoria. Ganha-se assim em riqueza do debate geral o que cada participante perde em profundidade e seriedade de seu próprio compromisso filosófico: a comunidade acadêmica consolida dia após dia sua autoridade científica, enquanto os filósofos se tornam pessoas cada vez mais imaturas e inconseqüentes, cada vez mais necessitadas, portanto, de apoiar-se na autoridade do consenso acadêmico. Ao mesmo tempo, toda elaboração de problemas de consciência é relegada para o recinto fechado da clínica psicoterapêutica e psicanalítica, onde é tratada como assunto da “vida privada” sem a menor ligação com a educação superior e a busca do saber. Obtida assim a plena consagração da ruptura entre ciência e consciência, o rolo compressor que, a pretexto de rigor científico, esmaga todo senso de responsabilidade pessoal, torna-se um mecanismo infernal de auto-reprodução circular: uma vez caído na máquina, um homem não tem mais como conservar, se não sua independência de julgamento, ao menos a conexão profunda entre pensar e ser, entre suas opiniões filosóficas e as camadas mais profundas de sua vida interior. Em troca, recebe o direito de participar da construção do consenso, bem como o reconhecimento público de seu estatuto profissional, com todas as vantagens materiais decorrentes. Se isto não é vender a alma, não sei o que seja.

É por perceber algo dessa atmosfera, mais que por encontrar dificuldades para dominar a terminologia técnica, que o homem comum não vê em geral nas discussões acadêmicas nada mais que tediosos e vãos litígios de pedantes.

O culto do “gênio”

Para aqueles que se sentem oprimidos nesse ambiente, mas não desejam abandoná-lo, há sempre o refúgio do esteticismo, da retórica e da filosofice literária, que são ali bem aceitos a título de complemento dialético ao ritualismo da racionalidade vigente. O que permite este fenômeno é que, perdendo a unidade de ciência e consciência que constituía a sua identidade específica, a filosofia, ao mesmo tempo que copiava o modus operandi das ciências especializadas, absorvia das artes e letras o modelo do “gênio”, compreendido como o indivíduo cujo talento especializado pode compensar, pela singularidade de suas criações, os piores defeitos de caráter, incluindo a inconsciência moral e a falta de senso do real, que no contexto antigo e medieval o incapacitariam no ato para o exercício da vida filosófica: sem um rosto próprio, reduzido a um híbrido de literato e cientista, o novo profissional pode agora correr entre o templo das Letras e o das Ciências, como um crente inseguro que busca, por via das dúvidas, a proteção alternada de dois deuses. Deste modo, se sua filosofia se reduz a um caleidoscópio de belas intuições fragmentárias impossíveis de reduzir a um todo lógico e muito menos à coerência de uma ética pessoal, tanto mais valorizado será o pensador, porque ante a comunidade profissional ele simboliza a nostalgia da unidade perdida, da qual a confusão mesma da sua mente é, por assim dizer, a imagem caricatural e inversa: incapaz de alcançar a síntese de ciência e consciência, ele neutraliza ambas na névoa brilhante e multicor da “genialidade”, em cuja contemplação quase mística o estudante encontra, como num entorpecente, o alívio factício que o desviará para sempre de toda tentação de buscar a unidade autêntica e, após o mergulho curativo nas águas lustrais do irracionalismo, o tornará apto a reintegrar-se como inofensivo burocrata na rotina alienante da vida acadêmica.

Se, quanto mais poderoso se torna o establishment filosófico, mais tendem a predominar nele as correntes de pensamento anti-espirituais, esquizofrênicas e alienantes, isto se deve grande parte à dinâmica mesma de um exercício profissional que exige do praticante a ruptura entre sua faculdade discursiva, desenvolvida até o paroxismo, e sua consciência íntima, que se cala ou se perde por lhe faltarem ali os mais elementares meios de expressão legítima. A inibição de dizer qualquer coisa que não tenha amplo respaldo na bibliografia existente, o temor de acreditar mais no que vê pessoalmente do que naquilo que afirma o discurso dominante, fazem com que o modo de pensar do pensador acadêmico se torne cada vez mais indireto e metalingüístico, até perder toda referência ao mundo da experiência comum e à pessoa concreta de quem fala. E se, até certo ponto ao menos, Marx tinha razão ao dizer que o modo de existência social determina a forma da consciência, o modo de existência da classe acadêmica acaba por se transpor numa característica Weltanschauung gremial, em que a realidade aparece diminuída sub specie academiae e o ser humano reduzido a um fantoche parlé par le langage, exatamente como se cada membro da espécie homo sapiensfosse um acadêmico a defender numa assembléia científica, como um papagaio erudito, opiniões ante as quais sua consciência íntima permanece neutra e indiferente, se não totalmente cética. A expropriação da consciência em troca do discurso autorizado culmina no instante em que o discurso, elaborado até o requinte de provar a si mesmo que não pode ser veículo de nenhuma consciência, ergue a inconsciência falante ao nível de uma obrigação científica. E quando um dos autores de semelhante façanha intelectual, subido ao mais alto patamar da carreira, que é o estado de zumbi alucinado, decide tomar uma providência coerente e estoura os miolos, repentinamente a condição humana de seus devotos cultores, tanto tempo reprimida que já nem mais lembra o que pudesse ter sido um dia o velho senso das proporções, irrompe numa súbita efusão de sentimentalismo caricatural e histérico, proclamando, em todas as cátedras, revistas científicas e suplementos literários dos jornais, que o falecido se matou porque era bom demais para este mundo.

A filosofia, enfim, foi deixando de ser uma busca da sabedoria, que envolvia o homem inteiro, corpo, alma e espírito, numa preparação para a posse das mais altas verdades, e se tornou uma mera habilidade especializada, como a de cantar, desenhar ou fazer rimas, completamente autônoma em relação à personalidade moral e à forma completa da “alma”. O filósofo tornou-se um “pensador” — um homem que tem o talento especial de produzir pensamentos interessantes. Como toda habilidade particular, essa pode ser cultivada como um território separado, perfeitamente compatível com todos os defeitos de personalidade, incluindo a repugnância pela verdade ou mesmo a total incapacidade para captar as evidências mais óbvias. Esta incapacidade, não raro, torna os pensamentos ainda mais interessantes, no sentido de exóticos e atraentes. Mas, mesmo quando não se chega a esse extremo, a mera insinceridade basta para conferir a muitos escritos filosóficos aquela aura de ambigüidade e mistério que rodeia de um prestígio mágico as obras dos poetas. A produção de idéias criativas tornou-se enfim uma espécie de “arte”, com seu círculo de aficionados, seus subsídios estatais, seu mercado e seu panteão de artistas fascinantes — em nada se distinguindo do ambiente das artes plásticas ou da música. E não espanta que, nesse ambiente de colorido mundanismo, o mal e a mentira acabem por prevalecer.

APÊNDICE

Miséria da filosofia nacional

Diante desse quadro, o leitor imaginará talvez que nos países pobres, onde a filosofia universitária é incipiente e não alcançou um bom nível de organização profissional, a vocação filosófica no sentido antigo, o amor à sabedoria, possa ter mais espaço para se expandir, ainda que não profissionalmente, sem ter de passar pelo rolo compressor. Infelizmente, isso não se realiza, por três motivos.

Primeiro. Quanto mais incipiente, mais a universidade estatal tende a ser ciumenta e monopolística: envolvida numa luta sem tréguas pela manutenção de seus benefícios corporativos (sempre excessivos para quem os paga, mesquinhos para quem os recebe), ela tende a ver o pensador de fora do grêmio como um intruso, um virtual inimigo da classe. Daí o culto fanático do “diploma”, uma exigência que em ambientes universitários mais desenvolvidos é muito mais branda e, nos casos de notório saber, inteiramente dispensável.

Segundo. A inexistência mesma de uma profissão filosófica organizada no padrão moderno faz com que este padrão se torne um ideal fervorosamente imitado. E esta, como toda imitação contínua, cai no exagero caricatural: o molde é tão valorizado que acaba por se tomar como a única encarnação possível da filosofia e por excluir do campo todas as expressões não-acadêmicas do pensamento filosófico que, nos países mais desenvolvidos, o academismo respeita e procura absorver. Nos ambientes letrados brasileiros, a palavra mesma “filosofia” já não evoca um universo de temas, de problemas ou de atos intelectuais, mas a carreira funcional correspondente. Quando alguém diz que se interessa por filosofia, não se entende que pensa em tais ou quais assuntos, nem que lê tais ou quais livros, mas que é ou pretende ser portador de um certificado, que ocupa ou pretende ocupar certo lugar na hierarquia funcional. É a completa coisificação burocrática da filosofia, agravada ainda pelo hábito da “especialização”, copiado das ciências particulares (onde é requisito inteiramente legítimo), o que leva a filosofia a rebaixar-se ao estatuto de mera “ciência da filosofia”, pois, por definição, o conhecimento “especializado” de uma filosofia consiste em expô-la fielmente segundo os métodos da história e da filologia, e não em filosofar pessoalmente sobre ela, criando uma outra filosofia que, logicamente, não poderia ser classificada sob a mesma especialidade (no sentido em que não é na condição de especialista, mas de filósofo, que Heidegger interpreta Nietzsche ou Sto. Tomás comenta Aristóteles). Mas ao mesmo tempo esses costumes grotescos e aviltantes são, da parte do nosso miúdo establishment acadêmico, uma autodefesa compreensível: quanto mais insegura a consciência, mais repressivo o superego.

Terceiro. Para que poderosas vocações filosóficas se desenvolvessem à margem do academismo nascente seria necessário existir uma forte presença do elemento filosófico na cultura geral, na imprensa e no movimento livreiro, coisa que não existe. Se existisse, muitos homens cultos talvez pudessem retomar, em ligação direta e passando por cima do cerco acadêmico, o contato pessoal com antigas tradições sapienciais da filosofia, e reenxertá-las no diálogo cultural corrente, o que viria a beneficiar, a longo prazo, a própria cidadela acadêmica, fazendo circular dentro dela um pouco de ar puro. Mas essa condição não existe na nossa sociedade, e, exceto para o homem de gênio que pode buscar a conexão por conta própria (é o caso de um Mário Ferreira dos Santos, por exemplo), o acesso a que me referi está bloqueado. Em resultado, o estudante, se da universidade recebe apenas a filosofia de tipo rolo compressor, não encontra, fora dela, senão minguadas oportunidades de adquirir conhecimento e desenvolver seus talentos; e, por falta de cultura, acaba por cair no mero diletantismo — dando assim involuntariamente um reforço retroativo, falacioso mas verossímil, ao preconceito do academismo local contra toda pretensão de filosofar fora dele.

Mas o mais tristemente irônico de tudo é que, nesse ambiente filosófico de Terceiro Mundo, o estudante que, não tendo alternativa, se amolde às exigências da filosofia acadêmica, acaba por não obter, em troca da expropriação de sua consciência, nem mesmo as compensações que sacrifício idêntico lhe daria numa universidade da Europa ou dos Estados Unidos: perdendo sua alma, ele não ganha nem a oportunidade gratificante de dar uma contribuição substancial à formação do consenso filosófico internacional, nem a estabilidade financeira de um próspero cidadão de classe média, que a profissão universitária confere a seus praticantes na França ou nos Estados Unidos. Ao entrar na universidade, ele é um joão-ninguém; ao sair, é um joão-ninguém com diploma e sem alma. Não admira que viceje nos seus bofes tanto rancor contra o Estado que lhe arrancou tanto em troca de tão pouco. Nem que, incapaz de conscientizar sua situação pessoal exceto pelas vias de pensamento padronizadas que absorveu em sua formação acadêmica, o jovem bacharel em filosofia trate logo de despejar seu rancor em algum empreendimento desconstrucionista, em alguma apologia esteticista da perversão ou em alguma teorização da violência revolucionária — os canais consagrados por onde a comunidade acadêmica escoa, numa linguagem cujo pedantismo a faz parecer educada, serena e superiormente científica, os mais baixos sentimentos de uma classe média frustrada e cheia de ódio.

17 de novembro de 1996.

A mensagem de Viktor Frankl

Olavo de Carvalho

Bravo!, novembro de 1997

No dia 2 de setembro [de 1997] morreu, aos 92 anos, um dos homens realmente grandes deste século. Acabo de escrever isto e já tenho uma dúvida: não sei se o médico judeu austríaco Viktor Frankl pertenceu mesmo a este século. Pois ele só viveu para devolver aos homens o que o século XX lhes havia tomado – e não poderia fazê-lo se não fosse, numa época em que todos se orgulham de ser “homens do seu tempo”, alguém muito maior do que o século.

Viktor Emil Frankl, nascido em Viena em 26 de março de 1905, foi grande nas três dimensões em que se pode medir um homem por outro homem: a inteligência, a coragem, o amor ao próximo. Mas foi maior ainda naquela dimensão que só Deus pode medir: na fidelidade ao sentido da existência, à missão do ser humano sobre a Terra.

Homem de ciência, neurologista e psiquiatra, não foi o estudo que lhe revelou esse sentido. Foi a temível experiência do campo de concentração. Milhões passaram por essa experiência, mas Frankl não emergiu dela carregado de rancor e amargura. Saiu do inferno de Theresienstadt levando consigo a mais bela mensagem de esperança que a ciência da alma deu aos homens deste século.

O que possibilitou esse milagre singular foi a confluência oportuna de uma decisão pessoal e dos fatos em torno. A decisão pessoal: Frankl entrou no campo firmemente determinado a conservar a integridade da sua alma, a não deixar que seu espírito fosse abatido pelos carrascos do seu corpo. Os fatos em torno: Frankl observou que, de todos os prisioneiros, os que melhor conservavam o autodomínio e a sanidade eram aqueles que tinham um forte senso de dever, de missão, de obrigação. A obrigação podia ser para com uma fé religiosa: o prisioneiro crente, com os olhos voltados para o julgamento divino, passava por cima das misérias do momento. Podia ser para com uma causa política, social, cultural: as humilhações e tormentos tornavam-se etapas no caminho da vitória. Podia ser, sobretudo, para com um ser humano individual, objeto de amor e cuidados: os que tinham parentes fora do campo eram mantidos vivos pela esperança do reencontro. Qualquer que fosse a missão a ser cumprida, ela transfigurava a situação, infundindo um sentido ao nonsense do presente. Esse senso de dever era a manifestação concreta do amor – o amor pelo qual um homem se liberta da sua prisão externa e interna, indo em direção àquilo que o torna maior que ele mesmo.

O sentido da vida, concluiu Frankl, era o segredo da força de alguns homens, enquanto outros, privados de uma razão para suportar o sofrimento exterior, eram acossados desde dentro por um tirano ainda mais pérfido que Hitler – o sentimento de viver uma futilidade absurda.

Frankl tinha três razões para viver: sua fé, sua vocação e a esperança de reencontrar a esposa. Ali onde tantos perderam tudo, Frankl reconquistou não somente a vida, mas algo maior que a vida. Após a libertação, reencontrou também a esposa e a profissão, como diretor do Hospital Policlínico de Viena.

Assim ele registra, no seu livro Man’s Search for Meaning, uma das experiências interiores que o levaram à descoberta do sentido da vida:

“Um pensamento me traspassou: pela primeira vez em minha vida enxerguei a verdade tal como fora cantada por tantos poetas, proclamada como verdade derradeira por tantos pensadores. A verdade de que o amor é o derradeiro e mais alto objetivo a que o homem pode aspirar. Então captei o sentido do maior segredo que a poesia humana e o pensamento humano têm a transmitir: a salvação do homem é através do amor e no amor. Compreendi como um homem a quem nada foi deixado neste mundo pode ainda conhecer a bem-aventurança, ainda que seja apenas por um breve momento, na contemplação da sua bem-amada. Numa condição de profunda desolação, quando um homem não pode mais se expressar em ação positiva, quando sua única realização pode consistir em suportar seus sofrimentos da maneira correta – de uma maneira honrada -, em tal condição o homem pode, através da contemplação amorosa da imagem que ele traz de sua bem-amada, encontrar a plenitude. Pela primeira vez em minha vida, eu era capaz de compreender as palavras: ‘Os anjos estão imersos na perpétua contemplação de uma glória infinita’.”

Frankl transformou essa descoberta num conceito científico: o de doenças noogênicas. Noogênico quer dizer “proveniente do espírito”. Além das causas somáticas e psíquicas do sofrimento humano, era preciso reconhecer um sofrimento de origem propriamente espiritual, nascido da experiência do absurdo, da perda do sentido da vida: “O homem, dizia ele, pode suportar tudo, menos a falta de sentido.”

Das reflexões de Frankl sobre a experiência do absurdo nasceu um dos mais impressionantes sistemas de terapia criados no século dos psicólogos: a logoterapia, ou terapia do discurso – um conjunto de esquemas lógicos usados para desmontar os subterfúgios com que a mente doentia procura eludir a questão decisiva: a busca do sentido.

Mas o sentido não teria o menor poder curativo se fosse apenas uma esperança inventada. A mente não poderia encontrar dentro de si a solução de seus males, pela simples razão de que o seu mal consiste em estar fechada dentro de si, sem abertura para o que lhe é superior. Em vez de criar um sentido, a mente tem de submeter-se a ele, uma vez encontrado. O sentido não tem de ser moldado pela mente, mas a mente pelo sentido. O sentido da vida, enfatiza Frankl, é uma realidade ontológica, não uma criação cultural. Frankl não dá nenhuma prova filosófica desta afirmativa, mas o caminho mesmo da cura logoterapêutica fornece a cada paciente uma evidência inequívoca da objetividade do sentido da sua vida. O sentido da vida simplesmente existe: trata-se apenas de encontrá-lo.

Universal no seu valor, individual no seu conteúdo, o sentido da vida é encontrado mediante uma tenaz investigação na qual o paciente, com a ajuda do terapeuta, busca uma resposta à seguinte pergunta: Que é que eu devo fazer e que não pode ser feito por ninguém, absolutamente ninguém exceto eu mesmo? O dever imanente a cada vida surge então como uma imposição da estrutura mesma da existência humana. Nenhum homem inventa o sentido da sua vida: cada um é, por assim dizer, cercado e encurralado pelo sentido da própria vida. Este demarca e fixa num ponto determinado do espaço e do tempo o centro da sua realidade pessoal, de cuja visão emerge, límpido e inexorável, mas só visível desde dentro, o dever a cumprir.

Em vez de dissolver a individualidade humana nos seus elementos, mediante análises tediosas que arriscam perder-se em detalhes irrelevantes, a logoterapia busca consolidar e fixar o paciente, de imediato, no ponto central do seu ser, que é, e não por coincidência, também o ponto mais alto. Eis aí por que é inútil buscar provas teóricas do sentido da vida: ele não é uma máxima uniforme, válida para todos – é a obrigação imanente que cada um tem de transcender-se. Discutir o sentido da vida sem realizá-lo seria negá-lo; e, uma vez que começamos a realizá-lo, já não é preciso discuti-lo, porque ele se impõe com uma evidência que até a mente mais cínica se envergonharia de negar.

A logoterapia tem uma imponente folha de sucessos clínicos. Porém mais significativa do que suas aplicações médicas talvez seja a função que ela desempenhou e desempenha – a missão que ela cumpre – no panorama da cultura moderna. Num século que tudo fez para deprimir o valor da consciência humana, para reduzi-la a um epifenômeno de causas sociais, biológicas, lingüisticas, etc., Frankl nadou na contracorrente e ninguém conseguiu detê-lo. Ninguém: nem os guardas do campo nem as hostes inumeráveis de seus antípodas intelectuais – os inimigos da consciência. Frankl apostou no sentido da vida e na força cognoscitiva da mente individual. Apostou nos dois azarões do páreo filosófico do século XX, desprezados por psicanalistas, marxistas, pragmatistas, semióticos, estruturalistas, desconstrucionistas – por todo o pomposo cortejo de cegos que guiam outros cegos para o abismo. Apostou e venceu. A teoria da logoterapia resistiu bravamente a todas as objeções, sua prática se impôs em inúmeros países como o único tratamento admissível para os casos numerosos em que a alma humana não é oprimida por fantasias infantis mas pela realidade da vida. Por isto mesmo a crítica cultural de Frankl, parte integrante de uma obra onde o médico e o pensador não se separam um momento sequer, tem um alcance mais profundo do que todas as suas concorrentes. Desde seu posto de observação privilegiado, ele pôde enxergar o que nenhum intelectual deste século quis ver: a aliança secreta entre a cultura materialista, progressista, democrática, cientificista, e a barbárie nazista. Aliança, sim: seria apenas uma coincidência que o século mais empenhado em negar nas teorias a autonomia e o valor da consciência também fosse o mais empenhado em criar mecanismos para dirigi-la, oprimi-la e aniquilá-la na prática? Dirigindo-se a um público universitário norte-americano, Viktor Frankl pronunciou estas palavras onde a lucidez se alia a uma coragem intelectual fora do comum:

“Não foram apenas alguns ministérios de Berlim que inventaram as câmaras de gás de Maidanek, Auschwitz, Treblinka: elas foram preparadas nos escritórios e salas de aula de cientistas e filósofos niilistas, entre os quais se contavam e contam alguns pensadores anglo-saxônicos laureados com o Prêmio Nobel. É que, se a vida humana não passa do insignificante produto acidental de umas moléculas de proteína, pouco importa que um psicopata seja eliminado como inútil e que ao psicopata se acrescentem mais uns quantos povos inferiores: tudo isto não é senão raciocínio lógico e conseqüente.” (Sêde de Sentido, trad. Henrique Elfes, São Paulo, Quadrante, 1989, p. 45.)

Com declarações desse tipo, ele pegava pela goela os orgulhosos intelectuais denunciadores da barbárie e lhes devolvia seu discurso de acusação, desmascarando a futilidade suicida de teorias que não assumem a responsabilidade de suas conseqüências históricas. Pois o mal do mundo não vem só de baixo, das causas econômicas, políticas e militares que a aliança acadêmica do pedantismo com o simplismo consagrou como explicações de tudo. Vem de cima, vem do espírito humano que aceita ou rejeita o sentido da vida e assim determina, às vezes com trágica inconseqüencia, o destino das gerações futuras.

Frankl era judeu, como foram judeus alguns dos criadores daquelas doutrinas materialistas e desumanizantes que prepararam, involuntariamente, o caminho para Auschwitz e Treblinka. Se ele pôde ver o que eles não viram, foi porque permaneceu fiel à liberdade interior que é a velha mensagem do Sentido em busca do homem: “SE ME ACEITAS, Israel, Eu sou o Teu Deus.”

(Publicado na revista Bravo! de novembro de 1997, e reproduzido em “O Imbecil Coletivo II”)