O capital

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 14 de maio de 1998

Todos os políticos, intelectuais, artistas, líderes comunitários, enfim, todas as pessoas maravilhosas querem que o povo brasileiro seja rico e feliz (subentendendo-se que o dinheiro não traz felicidade a quem não o tem). Para esse fim, concebem programas de ação que consistem em distinguir quem deve ir para o governo e quem deve ir para a cadeia (ou, nos casos agudos, para o cemitério). Os programas divergem somente quanto aos grupos de pessoas que formam as duas colunas da lista. Os militares achavam que eles mesmos deveriam estar no governo, e na cadeia os que achavam o contrário, isto é, os chamados corruptos e subversivos . Hoje, os esquerdistas acham que quem deve estar no governo são eles, e na cadeia os corruptos e reacionários , isto é, todos os outros.

Descontados os eufemismos e outras figuras de estilo, é nisso, substancialmente, que consiste o chamado debate nacional.

Não posso assegurar que a distribuição dos lugares mais confortáveis e mais desconfortáveis da sociedade seja totalmente irrelevante para o destino do bolso popular, mas tenho razões para crer que há outros fatores que deveriam ser examinados antes de se decidir tão transcendente disputa.

Um deles é o seguinte. Lao-tsé já dizia que sem dinheiro é muito difícil fazer dinheiro. Não disse exatamente com essas palavras, mas disse. Significa que para ser rico é preciso fazer alguma coisa e esta coisa custa alguma coisa. Tão decisiva é esta segunda coisa, que recebeu o nome de capital. Quaisquer que sejam as ações a cumprir para tornar você rico, o capital é que lhe dá os meios de executá-las – despesas de material e transporte, sustento próprio e dos subordinados durante a realização do projeto, etc., etc.

Só há quatro métodos para obter o capital.

O primeiro é ter sorte. Ter sorte é estar de bem com o céu e receber dele aquilo de que se precisa, como por exemplo um alimento no deserto ou um caminho no meio do mar. Moisés usou muito este método na fuga do Egito, com sucesso comprovado. A Bíblia fornece várias receitas de como praticá-lo, em duas versões, antiga e moderna ou judaica e cristã. Ambas exigem que você confie, reze, seja um bom sujeito, não mexa com a mulher do próximo e, de modo geral, não encha o saco.

O segundo, mais apropriado aos descrentes, é usar aquilo que você já tem e espremer, se existirem, as últimas gotas de um limão seco que já deu cinco limonadas. Num velho filme de Sidney Lumet, O Homem do Prego (“ The Pawnbroker ”) , o usurário – judeu, mas morbidamente ateu – representado por Rod Steiger explicava a técnica ao jovem porto-riquenho que queria montar um negócio: “Viva apenas de pão seco, use sempre o mesmo par de calças, reduza para a metade a ração de leite das crianças e, se chorarem de fome, espanque-as. Ao fim de umas poucas décadas você terá o capital para começar.”

As eruditas páginas de Karl Marx sobre a acumulação primitiva do capital não valem essas palavras, ainda que reproduzidas imperfeitamente.

O terceiro método é roubar, supondo-se que você tenha suficiente força física – um precioso capital natural – para derrubar seu vizinho e torcer-lhe o pescoço antes de esvaziar-lhe a carteira, posto que haja nela o que justifique tamanho risco. Caso não se trate de enriquecer um indivíduo, mas uma nação, é preciso ter armas e soldados em número superior ao do adversário, o que supõe que antes de recorrer a este terceiro método se tenha praticado o primeiro ou o segundo, ou ambos, durante um bom tempo.

O quarto e último método é pedir a quem tem, seja sob a forma de empréstimos, seja de investimentos. Nas duas hipóteses é preciso aceitar a seguinte conseqüência implacável: se você conseguir ficar rico, um outro sujeito vai ficar mais rico ainda, e, se você não conseguir deixar de ser pobre, ele vai deixar você mais pobre ainda.

Não há um quinto método. O problema com o Brasil é que nenhum dos quatro nos agrada. A resistência a todos está, como se diz, na nossa cultura, a qual, por mal dos pecados, é obra das mesmas pessoas maravilhosas que querem pôr umas às outras na cadeia com o objetivo de enriquecer o povo.

Objetamos ao primeiro que é demorado e incerto (além de anticientífico), ao segundo que é escorchante, ao terceiro que é imperialista e ao quarto que resulta, segundo dizia Leonel Brizola, em intoleráveis “perdas internacionais”.

Não dispondo, portanto, de capital, não podemos agir no campo econômico. Em compensação, atuamos com raro entusiasmo e proficiência no terreno mais próximo dele, que é a política. A política consiste, segundo Carl Schmitt, em favorecer os amigos e sacanear os inimigos – o que é precisamente o que temos feito, empregando para isso o melhor de nossos recursos financeiros, intelectuais, jurídicos, musculares, vegetais, animais e hidromineralógicos.

Não é um método de gerar riqueza, mas não deixa de ser um método de repartir equitativamente os bens existentes: quando todos tivermos passado um tempo no governo e um tempo na cadeia, estará realizada a justa redistribuição da riqueza, preconizada pela Constituição. Aí pode ser que estejamos felizes, e sempre nos restará a esperança de que, se o dinheiro não traz felicidade, a felicidade venha talvez a trazer dinheiro.

A vitória do mais apto

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 30 de abril de 1998

O que tem circulado de besteira a respeito de “darwinismo social” é de natureza a sugerir que o homem não apenas descende do macaco, mas quase chega a ombrear-se, em inteligência, a esse seu engenhoso antepassado.

Emprega-se essa expressão, sistematicamente, num contexto em que denota a concorrência capitalista brutal, que esmagaria os pequeninos se não fossem socorridos, em tempo, pelo igualitarismo marxista.

O socialismo aparece aí como a antítese por excelência da struggle for life, como o chamado celeste à resolução fraternal dos conflitos que, abolindo a competição natural, estabelecerá sobre a Terra a igualdade contratual dos fracos e dos fortes.

Karl Marx, infelizmente, não concordava com isso. Entusiasta do evolucionismo, propôs a Darwin (que modestamente rejeitou a oferta) dedicar-lhe a segunda edição de O Capital, e enxergava na luta de classes o exato equivalente histórico da seleção natural. No seu entender, nada ilustraria de maneira mais eloqüente a “sobrevivência dos mais aptos” do que a futura vitória do proletariado sobre a burguesia, espécie votada à extinção por sua incapacidade de ajustar-se evolutivamente ao desenvolvimento dos meios de produção.

O paralelismo não ficou na teoria. Vitoriosa a Revolução de Outubro, o evolucionismo foi integrado na doutrina oficial do Estado soviético, com a incumbência de justificar cientificamente a extinção sistemática dos dissidentes, dos alienados e dos inúteis.

Mais tarde, a ideologia que associa a mudança revolucionária com o sucesso e a saúde foi levada às últimas conseqüências, quando os inimigos do regime passaram a ser tratados como doentes mentais: submetidos pela força a injeções de haloperidol que tanto acalmam os delirantes quanto perturbam os sãos, acabavam mostrando sintomas delirantes que tornavam necessário tratá-los com injeções de haloperidol – o que bem demonstra a infalibilidade da medicina evolucionista.

Fora e antes do mundo comunista, houve alguns doutrinários que buscaram associar a seleção do mais apto à concorrência comercial e buscar nela um argumento para legitimar a exploração imperialista dos povos mais fracos. Mas essa corrente encontrou sempre forte resistência, sobretudo dos conservadores, que viam na concorrência capitalista uma “seleção inversa” que privilegiava, em vez dos melhores, os piores e os mais descarados. Foi também abominada pelos principais artistas e escritores, como Tolstoi e Flaubert, a quem repugnava uma ética de alpinistas sociais. Enfim, foi taxativamente condenada pela Igreja, que, rejeitando o darwinismo tout court, não teria como engolir seus corolários político-ideológicos. O darwinismo social foi enfim, nos países capitalistas, nada mais que uma idéia entre outras, jamais hegemônica, sobretudo jamais elevada ao status de uma doutrina do Estado.

Os únicos lugares do mundo onde foi apadrinhada oficialmente pelo culto estatal foram, de um lado, a Alemanha nazista, de outro, os países comunistas. Ambos esses totalitarismos encaravam a História, substancialmente, como uma concorrência darwiniana entre as espécies. A diferença era apenas de nuance: para os nazistas, “espécie” queria dizer “raça”; para os comunistas, “classe”. O método para realizar a sobrevivência dos mais aptos, em ambos os casos, era o mesmo: matar os inaptos.

Para maior glória da teoria darwiniana, houve mesmo uma concorrência evolutiva entre os dois evolucionismos estatais. A competição mostrou, acima de toda dúvida, que o mais apto era o comunismo: matando mais gente, sobreviveu mais tempo. E, enquanto o nazismo se encontra hoje sepultado sob toneladas de filmes, livros e jornais que o marcaram para sempre com o estigma do horror e da monstruosidade, seu concorrente vitorioso ainda desfruta, depois de oficialmente extinto, uma honrada sobrevida espiritual nas pessoas laureadas de seus porta-vozes acadêmicos e eclesiásticos, em cuja conduta intelectual ninguém parece enxergar nada de particularmente indecoroso. Se isto não prova o darwinismo, prova ao menos a reencarnação.

Mas, se menciono os eclesiásticos, não é por acaso. Para fazer uma idéia de quanto a força darwiniana do comunismo superou a capacidade de sobrevivência de seu adversário, basta atentar para o seguinte fato: enquanto a Igreja católica hoje se submete a um abjeto mea culpa ante a mídia por “não ter combatido vigorosamente o nazismo” – imitando os acusados dos Processos de Moscou que para posar de bons meninos confessavam crimes que não tinham cometido -, o clero católico parece jamais ter sentido vergonha alguma do “pacto de Metz”, pelo qual, mediante promessa de não fazer nas declarações oficiais do Concílio Vaticano II nenhuma denúncia concreta contra o regime comunista que àquela época já matara 100 milhões de pessoas, se obteve para esse divino conclave o aplauso unânime da mídia elegante, que até hoje ressoa aos nossos ouvidos como um hino de amor à hipocrisia universal. Também a Igreja, afinal, evolui.

O saber e a pose

Olavo de Carvalho

Folha de São Paulo, 20 de abril de 1998

Escrevendo na Folha, uma cientista social (ah, como é rico em cientistas sociais este Brasil!) explica-nos que a eficácia dos ritos indígenas para produzir chuva é um resultado do consenso social. Não é maravilhoso? Pressionadas pela opinião pública, as nuvens fazem pipi de medo. Já a “Veja”, com seu característico ar de menininho primeiro da classe, alerta contra o ressurgimento das crendices, como se fosse muito mais racional e científico acreditar na “Veja” do que nos pajés de Roraima.

Da minha parte, não me lembro de jamais ter acreditado piamente numa única linha dessa revista. Não vai nisso nenhuma ofensa aos coleguinhas: um jornalismo saudável não dá por pressuposta a sua própria infalibilidade, sobretudo em assuntos tão estranhos à mente jornalística como o é a arte de fazer chover.
Havendo motivos de sobra para duvidar de que citadinos incapazes de extrair um pingo d’água de um coco seco tenham grande autoridade para opinar em questões de pluviosidade ritual, parece-me que as classes falantes têm oferecido ao público, no que dizem da chuva que salvou Roraima, um triste espetáculo de ignorância presunçosa.

Enquanto os pajés davam com modéstia exemplar um show de eficiência e poder, os ditos civilizados procuravam esconder sua vergonhosa impotência por trás de pedantismos verbais, recriminações mútuas, acusações ao “governo ladro” que não produz chuva e, “last but not least”, despeitadíssimas tentativas de diminuir e aviltar o grande feito dos dois admiráveis sacerdotes.
Mas que mais poderiam fazer? Que entende de diálogos com o céu essa gente imersa na “completa terrestrialidade e mundanização do pensamento” preconizada por Antônio Gramsci?

A “Veja”, por exemplo, está tão longe do assunto que, quando fala de “renascimento da fé”, não entende por essa expressão nada mais que um fenômeno de marketing. Crendice, no sentido rigoroso do termo, seria acreditar que mentalidades lacradas na atualidade jornalística mais compressiva, incapazes de desligar-se mesmo hipoteticamente dos preconceitos contemporâneos, pudessem nos ensinar alguma coisa sobre o supratemporal e o eterno.

Para quem enxerga alguma coisa nesses domínios, há uma diferença abissal entre o mero “sentimento religioso”, fato imanente à psique humana, e o ato espiritual propriamente dito, cujo alcance se prolonga para muito além dos limites da subjetividade individual ou coletiva e chega a tocar um outro plano de existência, que nem por invisível é menos real e objetivo do que este mundo nosso de pedra e sangue.
Uma das mais notórias ilustrações dessa distinção é, precisamente, a diferença entre a pura força auto-hipnótica da sugestão coletiva e o efeito físico que certas preces e ritos determinam sobre a natureza em torno, imune, por definição, às flutuações da opinião pública.
Em última instância, como já ensinava o episódio de Moisés ante os magos do Egito, é o domínio sobre o mundo físico que atesta a diferença entre o carisma em sentido estrito – dom de Deus e poder espiritual autêntico – e o “carisma” em sentido sociológico, redutivo e caricatural, vulgar atração mútua entre as massas e seu ídolo.

Mas essa diferença é, por definição, invisível à mentalidade radicalmente mundanizada das classes falantes, um clero leigo empenhado em tampar o céu para que, na escuridão resultante, sua potência iluminista de meio watt pareça um verdadeiro sol.

Eis por que essas pessoas chegam ao supremo ridículo de atribuir o efeito dos ritos sobre a natureza ao funcionamento imanente da psique e da sociedade, como se árvores e nuvens, bichos e galáxias fossem regidos pelas leis da nossa vã sociologia. Explicar o objeto pelo sujeito, o transcendente pelo imanente é o mesmo que conferir às leis da eletrotelefonia o poder de determinar o que se diz numa conversa telefônica.
Mas, na ânsia de negar, o orgulho moderno não hesita em afundar no ilogismo mais estúpido. O apego à modernidade científica torna-se, então, uma crendice supersticiosa que faz um sujeito regredir à noite dos tempos e pensar como um neandertalóide.

Não, caros intelectuais, vocês não têm nenhuma explicação válida para a chuva produzida em Roraima pelas preces dos dois pajés, e o ar de superioridade fingida com que falam do que não entendem só mostra que sua ciência é bem menos confiável que a deles.

Certas tribos brasileiras conservam uma intensidade de vida religiosa e o domínio de conhecimentos espirituais que de há muito se tornaram, para a intelectualidade citadina, misteriosos e incompreensíveis. Os índios não fazem mistério algum em torno desses conhecimentos, assim como os santos da igreja, os gurus vedantinos, os grandes mestres do budismo. É a malícia temerosa do observador que torna obscuro e ameaçador o luminoso e evidente e que, não suportando a luz, busca reduzi-la à refração das suas próprias trevas.

Malgrado o empobrecimento de suas culturas, os índios são no Brasil de hoje um dos últimos redutos de uma espiritualidade autêntica, feita de um conhecimento que é objetividade, simplicidade e poder; nada tem a ver com o misto de sentimentalismo e exaltação ideológica apresentado como a única religião possível por uma pseudociência cega e pretensiosa, por todo um cortejo desprezível de padrecos e acadêmicos incapazes de enxergar além das paredes do poço gnosiológico em que se enfurnam.

Se os dois pajés fizeram o que a gente da cidade não pôde fazer, o mais elementar bom senso aconselharia admitir a hipótese de que sabem algo que ela não sabe. Se ela exclui essa hipótese “in limine” e ainda fala deles com despeito, isso, além de constituir uma ingratidão para com benfeitores -um dos “cinco pecados que bradam aos céus”, segundo a Bíblia-, é um vexame intelectual que ilustra de maneira especialmente eloquente a distância invencível que existe entre o saber e a pose.