Consciência e estranhamento

(Descartes e a psicologia da dúvida – Parte II)

Olavo de Carvalho

16 de junho de 1998

Esta aula de 1998, transcrita por Fernando Manso e revista por Luciane Amato (responsável também pelas notas assinaladas N. R.), já deveria constar desta página faz muito tempo, pois a considero essencial para a compreensão do meu modo de enfocar a filosofia moderna. Simplemente esqueci de enviá-la ao webmaster. Continuação de Descartes e a psicologia da dúvida, ela passa da análise lógica da estrutura da dúvida metódica à análise existencial da dúvida metódica como experiência vivida, levando, passo a passo, a conclusões surpreendentes, mas, creio eu, exatas. É claro que ainda pretendo dar-lhe uma redação final, com correções, mas a transcrição não pode mais ficar fora do alcance dos meus alunos e dos demais visitantes desta homepage. – O. de C.

1. Revisão do itinerário

Examinei na parte anterior o passo inicial da filosofia de René Descartes, a dúvida metódica, que muitos, entre os quais Husserl, consideram também o passo inicial de toda a filosofia moderna. É ele que inaugura realmente um estilo de enfoque filosófico que se tornou dominante do século XVII até hoje. (1) Esse estilo é marcado pela idéia da dúvida preliminar, de que nenhuma verdade será aceita sem que haja razões suficientes para aceitá-la. Dessa proposta nasce toda uma linhagem de pensadores cujo último e mais ilustre representante será Edmund Husserl, o qual, numa série de conferências feitas no Collège de France, que depois receberam o título de Meditações Cartesianas, afirmou explicitamente que a dúvida metódica é o começo obrigatório de toda e qualquer filosofia. O primado da dúvida é tido assim como uma coisa tão óbvia, que não é nem preciso declará-lo: praticamente a filosofia moderna está identificada com o exercício preliminar da dúvida metódica, ou com aquilo que Mário Ferreira dos Santos chamava a suspicácia preliminar, uma atitude de suspeita perante quaisquer afirmativas que tenham pretensão à verdade.

Na seqüência de pensamentos que resume sob o título Meditationes de Prima Philosophia, René Descartes começa, como todo mundo sabe, por rejeitar todas aquelas verdades costumeiras que lhe tinham ensinado desde a infância, nas quais ele não visse um fundamento suficiente.

Ele notava, por exemplo, que os cinco sentidos, nos quais geralmente acreditamos, não são fundamentos de si mesmos, quer dizer, não trazem consigo a prova das informações que nos dão. Ele usa, para impugnar a confiabilidade dos sentidos, uma série de argumentos que, na verdade, não são dele, que são bem antigos, que são da escola pirrônica, e que consistem em alegar os enganos costumeiros dos sentidos — a famosa história do pau que, posto na água, parece quebrado, ou o efeito da perspectiva que dá a ilusão de que as coisas mais distantes são menores do que as que estão perto. São esses erros ou enganos comuns dos sentidos que nos mostram, então, que os sentidos podem ser uma fonte de conhecimento, mas não uma fonte segura. Ademais, existe o fato de que durante o sonho também temos sensações e nem sempre temos a prova de que o sonho é apenas sonho. Se não temos a prova de que o sonho é sonho também não temos a prova de que a vigília seja vigília, e assim por diante.

Em seguida, Descartes faz a crítica da memória, dizendo que esta também falha, e o que ele faz com a memória faz também com a imaginação e, enfim, com todos os seus pensamentos habituais e as com as crenças do senso comum.

Descartes vai derrubando tudo isso, sempre em busca de qual seria o ponto arquimédico, o ponto seguro que poderia servir de fundamento à construção de um sistema válido de filosofia. Não importando agora quais tenham sido as conclusões a que ele chegou, é esse movimento de negação inicial que é considerado por Husserl o paradigma do movimento filosófico como tal.

O que fiz no § 1 foi examinar o ato da dúvida metódica, porque Descartes descreve apenas as conclusões a que foi chegando no exercício da dúvida metódica, mas não faz em nenhum momento a descrição do próprio estado de dúvida. Se é para fazermos um exame radical do assunto, então, não podemos saltar essa etapa: temos de nos perguntar o que acontece, efetivamente, quando estamos em dúvida. Que é estar em dúvida, concretamente falando? A definição de dúvida todo o mundo conhece, mas só o suficiente para reconhecê-la quando aparece no exercício real do pensamento, não o bastante para descrevê-la em sua estrutura interna. Então, é esta pergunta que me faço: qual é a estrutura ontológica, a estrutura real do ato de duvidar? Vimos em primeiro lugar que a própria conclusão que René Descartes vai extrair desta parte do exame — que, enquanto estamos duvidando, não podemos duvidar de que duvidamos, e que, portanto, o próprio ato da dúvida seria a primeira certeza filosófica inabalável –, também não é inabalável, porque, se a dúvida é uma alternância entre duas convicções contrárias, ela não apenas admite a dúvida a respeito de si mesma, mas a exige, quer dizer: não podemos ter propriamente a “certeza” de que estamos em dúvida. Por que? Porque estar em dúvida é oscilar entre duas certezas. Se no momento em que pensamos uma das alternativas, não temos nem uma certeza aparente dela, e ao instalar-nos na outra também não temos essa certeza, então não estamos em dúvida, porque já negamos as duas. Então, no momento em que uma das alternativas é pensada, ela não é pensada como dúvida, mas como uma certeza temporária, que em seguida é destruída pelo confronto com a hipótese contrária. Portanto, a dúvida não é um estado, a dúvida é a impossibilidade de permanecer num estado e por isto mesmo ela tem um caráter proliferante que se alastra sobre si mesma. No fim das contas, não é possível alguém duvidar sem duvidar de que duvida, porque, se a certeza fosse excluída do horizonte, não existira mais dúvida, existiria simplesmente a negação. (2)

Em seguida, examinei os outros componentes da dúvida, no seguinte sentido: Quais são as condições reais necessárias para que o indivíduo esteja em dúvida, no sentido cartesiano da coisa? Quais são as crenças que estão pressupostas no próprio ato de duvidar? Este exame, então, é um exame da estrutura lógica da dúvida, que vou completar, neste § 2, com o exame da estrutura existencial da dúvida. Um tempo considerável foi necessário para que eu saltasse do primeiro exame ao segundo; porque estas questões são realmente complicadas.

O exame da estrutura lógica da dúvida mostrava quais são os pressupostos lógicos sem os quais a própria dúvida não é possível (refiro-me à dúvida cartesiana, à dúvida radical, é claro, não à dúvida vulgar). Um deles é a própria continuidade do eu entre a pergunta e a resposta. René Descartes diz que o famoso “penso, logo existo” não é um raciocínio, mas um ato intuitivo. Quando ele afirma: “Eu não posso duvidar de que duvido no momento em que estou duvidando”, diz ele que isto não é uma conclusão lógica, mas um ato intuitivo, uma percepção instantânea. Porém, essa percepção, ainda que seja instantânea, se refere ao mesmo eu que estava duvidando antes. Portanto, existe aí uma continuidade do eu no tempo que transcorre entre essas duas vivências: o estado de dúvida e a certeza intuitiva da dúvida. Não que esta já não esteja contida potencialmente no primeiro estado, mas o fato é que ela só se atualiza na consciência após o recuo reflexivo, o giro da atenção que se desvia do objeto inicial da dúvida para a dúvida mesma enquanto estado.

Mas, de modo mais geral, toda dúvida, na sua própria estrutura lógica, pressupõe a continuidade do eu entre a primeira alternativa alternativa pensada e a segunda alternativa que a desmente. Por exemplo, tomemos uma dúvida teológica elementar: nada se cria do nada, no entanto Deus criou o mundo do nada. Todo o mundo sabe que nada se cria do nada, mas, pelo que está escrito na Bíblia, Deus criou o mundo do nada. Então, os teólogos têm de se arranjar com esse problema e discutiram isso durante séculos. Ora, se tenho uma dúvida a respeito é porque vejo aí uma contradição, e se vejo a contradição é porque vi duas hipóteses contrárias, e eu permaneci o mesmo enquanto via a primeira e enquanto via a segunda. Portanto, a continuidade do eu é um pressuposto da dúvida: não é possível ter uma dúvida sem afirmar, no mesmo ato, a continuidade do eu.

Outro pressuposto da dúvida é a identidade do objeto a respeito do qual tenho a dúvida, porque se digo uma coisa a respeito do objeto A e a coisa contrária a respeito do objeto B, elas não se contradizem necessariamente e o confronto das duas afirmações não tem por que suscitar dúvida. Só dois predicados contrários do mesmo sujeito podem contradizer-se. Se me dizem que José é gordo, mas Antônio é magro, isso não é contradição, porém, se dizem que José é gordo e magro, então entro em dúvida.

Além disso, a própria estrutura do raciocínio lógico também está pressuposta na dúvida. Se não existe princípio de identidade, não tenho como formar a dúvida.

Também está pressuposta na dúvida a continuidade da língua na qual ela se transmite. Não poderíamos arquitetar esse raciocínio todo sem o auxílio da língua, e essa língua, evidentemente, sei que não a estou inventando no momento em que estou formulando a dúvida, sei que estou usando regras de gramática que existem de antemão e que, se eu não as tivesse recebido, também não poderia produzi-las na hora. Em suma, por baixo do ato da dúvida, teoricamente uma dúvida radical que coloca tudo em dúvida, existe uma montanha de certezas, portanto essa dúvida não é radical coisíssima nenhuma, é apenas um fingimento de dúvida radical.

Se a dúvida metódica não é uma dúvida radical, mas já um produto ou uma dedução de uma série de certezas anteriores, conclui-se que também está errada a regra de Kant de que o problema crítico do conhecimento é o primeiro problema, na ordem dos fundamentos da filosofia. Nunca podemos começarcom a crítica do conhecimento; a crítica do conhecimento pode acontecer, sim, mas ela não pode ser o primeiro capítulo jamais, porque para poder fazê-la é preciso dar por subentendida não apenas a existência do conhecimento que será objeto de crítica (coisa que o próprio Kant reconhece), mas uma série de certezas nas quais se apóia o próprio exercício da crítica.

2. Passagem a um novo enfoque

Partindo disso e aprofundando gradualmente a questão, vamos nos perguntar, agora, já não quais são as pré-condições lógicas do exercício da dúvida ou da crítica, mas quais são as pré-condições reais, existenciais, ou, dito de outro modo, como é possível, na prática, estar em dúvida radical. Como é que vem a existir esse estado de dúvida e como é possível que um homem, ou dois, ou três, ou quatro tenham não apenas o estado de dúvida, mas o estado de dúvida radical? Como é possível duvidar de tudo? De onde vem a possibilidade real da dúvida geral cartesiana?

Vamos partir de uma observação banal: mesmo que não possamos duvidar de tudo num sentido cartesiano, podemos duvidar de muita coisa. Ainda que seja incompleto no seu conteúdo e ainda que não se realize plenamente, o estado de dúvida é um fato. Temos de reconhecer que ele existe, e também que a dúvida metódica existe: estão aí três séculos de exercício dela para provar isso. Então, a nossa pergunta é: Como pôde vir a existir? Como essa criatura chamada homem pôde colocar “todo” o mundo entre parênteses, se ela nunca esteve fora do mundo? Não temos realmente a experiência de ficar “fora” dos nossos sentidos, das nossas memórias e imaginações, muito menos dos nossos próprios pensamentos — simplesmente não temos essa experiência. Se não temos essa experiência, de onde obtivemos a possibilidade de concebê-la e de tentar colocar-nos neste estado, mesmo que não consigamos? Neste sentido, é claro que nenhum outro animal, além do homem, experimenta esse estado. Você pode ver que, às vezes, um animal pode ficar num estado de perplexidade entre duas alternativas, mas você nunca verá um animal paralisar totalmente as suas decisões até resolver uma dúvida cartesiana.

Muito mais interessante do que o velho problema de como podemos ter a certeza do mundo exterior é o problema de como podemos chegar a duvidar dele, se nunca tivemos a experiência de estar fora dele por um instante sequer. De onde vem essa capacidade humana de negar, ao mesmo tempo, a experiência, o hábito, o senso comum e a certeza moral? Pois o mais estranho no solipsismo experimental de René Descartes é precisamente que o filósofo consiga entrar nele a despeito de saber que, mesmo durante esse período de radical isolamento, necessitará de uma “moral provisória” para se arranjar de um modo ou de outro naquele mesmo mundo exterior que, enquanto isso, ele está negando.

Descartes, querendo colocar em dúvida todos os seus conhecimentos, mas sabendo que enquanto isso vai continuar vivendo, conversando com as pessoas, tomando decisões, pagando suas dívidas etc., pergunta-se: Como vou orientar-me no mundo enquanto estou em dúvida com relação a tudo? Então, ele concebe os princípios do que ele chama uma “moral provisória”, que é a moral que ele vai seguir sem questioná-la e sem afirmar que é verdadeira ou é falsa, durante o período em que estiver realizando esse experimento interior.

Ora, o simples fato de concebermos uma moral provisória nos informa que sabemos que estamos no mundo, mesmo durante o período em que estamos duvidando de que estamos nele. Mas, se sabemos disto, como é que conseguimos conceber a hipótese de estar fora dele? Esta, no fundo, é a pergunta: como? Porque o fato é que o conseguimos, ainda que imperfeitamente.

O conhecimento começa com o estranhamento. O primeiro passo da investigação filosófica é colocar-nos num estado no qual possamos perceber a estranheza de alguma coisa. Normalmente não percebemos essa estranheza porque não prestamos atenção, mas, quando prestamos atenção, a estranheza aparece. Quando estamos lendo René Descartes, passamos direto por esta parte e não nos lembramos de nos perguntar: Mas como ele conseguiu fazer isto? O fato é que ele conseguiu, pois está nos contando que conseguiu. E é verdade que eu também consigo. Mas como isso é possível? Quase tudo o que os filósofos descobriram ao longo dos milênios foi estranhando coisas que o hábito nos faz esquecer que são estranhas. Então, para estranhar, temos de nos colocar mentalmente “fora” daquilo e olhá-lo como se fôssemos um turista de outro planeta, ou pelo menos de outro país. Assim, após três séculos de dúvida metódica, nos acostumamos com ela, mas lembrem-se de que os primeiros que leram as Meditationes devem ter achado tudo muito esquisito. Nós já esquecemos que é esquisito; então, vamo-nos colocar de novo naquela posição de estranheza e nos perguntar: Como é possível a dúvida cartesiana? Ora, existem duas maneiras de nos livrarmos de uma esquisitice: a primeira é habituando-nos com ela acabando por esquecê-la; a segunda é tentando explicá-la. Só que, tentando explicá-la, o risco que corremos é o de que ela acabe parecendo mais esquisita ainda. Normalmente, perante as coisas esquisitas, primeiro nos assustamos e depois tratamos de nos habituar com elas e não fazer mais perguntas. Esta é a atitude prática mais viável, mas em filosofia ela não é legítima; ao contrário, temos de buscar esse estranhamento porque, se não, as perguntas filosóficas desaparecem. Então perguntemos: Como foi possível Descartes pensar isso? Como é possível cavar tamanho abismo entre o que se sabe e o que se pensa?

Notem bem que, durante todo o exercício da dúvida metódica, Descartes sabe que está realmente pensando; ele coloca entre parênteses não o pensar, mas o saber. Ele está pensando, mas aquilo que ele sabe é duvidoso, portanto, ele não assume o que sabe, ele assume apenas que está pensando. Ora, como é que podemos fazer isso? Notem bem que um bicho não pode fazer isso: tudo em que um bicho pensa, ele acredita; ele não pode pensar uma coisa no mesmo instante em que ele não acredita nela. Um computador também não pode fazer isso, toda a informação que o computador nos passa é porque ele “acredita” nela. Então, a dúvida cartesiana é um estado muito peculiar e podemos dizer que este estado é exclusivamente humano. Talvez pudéssemos até dizer que o homem é o animal que pode tentar fazer a dúvida cartesiana. Os animais não podem, os anjos não podem e Deus também não pode. Então, é por isso que a dúvida metódica é importante, ou seja, porque ela é um estado que é caracteristicamente humano, mas que não deixa de ser esquisito por isto.

Essa capacidade de negar mentalmente sem negar existencialmente é uma das propriedades mais estranhas do bicho-homem. Ela é mais enigmática, decerto, do que a nossa certeza do mundo exterior, a cuja explicação e fundamentação se dedicaram, no entanto, muito mais horas e livros.

O fato de acreditarmos que o mundo existe já suscitou a atitude de estranhamento da parte de muitos filósofos. Muitos constataram que acreditamos, de fato, que estamos no mundo, que esse mundo é real etc., e se perguntaram: Como é possível? O que eles não se perguntaram foi o contrário: Como é possível duvidar? Esta investigação é feita aqui, creio que pela primeira vez: qual é o fundamento real da possibilidade da dúvida?

3. A condição de possibilidade da dúvida cartesiana: o dinamismo antivital.

Já demonstrei que a dúvida cartesiana não pode se levantar senão sobre todo um edifício de certezas; que ela não é, portanto, um começo, como por longo tempo se pretendeu, mas uma simples etapa dialética no movimento de uma máquina de certezas. A dúvida metódica, afirmei, não é senão negação hipotética de algo que no mesmo instante se afirma categoricamente.

Não obstante, essa dúvida é um fato. Aconteceu a Descartes, e pode acontecer a qualquer um de nós vivenciá-la ao menos por alguns instantes. Pouco importa que ela traga em si sua própria negação. Se Descartes se enganou ao descrever seu estado como “certeza da dúvida”; se não pode haver certeza do estado de dúvida precisamente porque este não é senão oscilação entre duas certezas que se contradizem e é portanto negação de si mesma, tudo isso não impede que esse estado, ainda que tenhamos de lhe dar uma definição diversa daquela que recebeu de Descartes, efetivamente exista de algum modo como experiência.

É a possibilidade lógica e existencial dessa experiência que constitui um problema. Podemos duvidar de tudo — mas como, raios me partam, podemos duvidar de tudo?

Essa possibilidade supõe, no ser humano, uma capacidade de cortar ao menos por instantes os laços entre a faculdade pensante e a existência pessoal concreta, vivente, da qual essa faculdade não é senão manifestação e função.

Por um lado, sabemos que estamos vivos, que estamos no mundo, que estamos nos relacionando com pessoas, que comemos, que dormimos, que trabalhamos etc., e é exatamente porque fazemos tudo isso que podemos pensar. Se não estivéssemos vivos, não pensaríamos. Todos sabemos disso, e então, podemos dizer que o pensamento é o exercício de uma faculdade vital, que ele supõe, portanto, a vida. Como é que, sendo um exercício da faculdade vital, sendo uma espécie de manifestação da vida, ele pode, ao mesmo tempo, negar a vida ainda que hipoteticamente? Não é estranho?

Tão antinatural é essa operação, de tal modo ela se opõe a todo o potente dinamismo psicofísico que deseja viver e que ademais tem de estar vivo para realizá-la, que temos de admitir que ela não se realizaria sem que esse dinamismo pudesse ser “suspenso” — na esfera mental, é claro – pela ação de um dinamismo contrário de poder equivalente, embora certamente de operação descontínua e não contínua como a dele.

Tudo o que fazemos, pensamos, rememoramos etc. é, certamente, uma expressão do nosso impulso de viver, ou seja, temos um impulso de viver, e ele se manifesta em muitos atos, alguns externos, outros internos. É isso o que eu chamo dinamismo, quer dizer, existe uma força, existe um impulso, que nos impele a fazer essas coisas. Ora, o ato de colocar tudo em dúvida contraria de tal modo este impulso vital, que não conseguiríamos realizá-lo a não ser que nos apoiássemos num impulso igual e contrário, não permanente (porque senão ficaríamos definitivamente paralisados) mas temporário. Isso quer dizer que o impulso vital pode ser detido por instantes. Se ele pode ser detido, é por uma força capaz de detê-lo. Que força é essa?

Se alguém chamado René Descartes consegue colocar todo o saber e todas as funções vitais entre parênteses, quer dizer que o pensamento dele nesse momento tem uma motivação que não é a mesma que o faz pensar, sonhar, sentir, viver etc.. É uma “outra” motivação diferente e que se opõe a tudo isso, e essa motivação tem de ser muito forte. Com isso a nossa pergunta inicial: Como é possível o ato da dúvida?, se converte numa outra pergunta. Essa mutação das perguntas é um dos elementos fundamentais do método e da técnica filosóficas: a conversão da pergunta numa outra pergunta mais explícita, mais detalhada e mais fácil de ser examinada. A segunda forma que a nossa pergunta assume é a seguinte: Por que um sujeito chega a querer duvidar de tudo? Tínhamos uma pergunta mais genérica: Como é possível o ato da dúvida? — pergunta que pode ser colocada em nível antropológico, em nível histórico etc. — e em seguida a convertemos nesta outra pergunta que pertence mais à ordem psicológica. Para responder a esta pergunta não temos de examinar senão a mente de um só indivíduo. Não que ele vá responder em nome de todos, mas, se chegarmos a entender por que um indivíduo chegou a querer duvidar a esse ponto, teremos pelo menos uma pista sobre por que outros indivíduos podem ter feito coisa semelhante.

De onde tiramos, do nosso ser vivente, a força para realizar a torção da nossa consciência da atitude de crença natural para a de negação cartesiana ou a suspensão husserliana?

Notem bem que Husserl vai tornar a dúvida cartesiana um processo muito mais preciso, muito mais detalhado. Comparar a dúvida cartesiana com a suspensão, como a chama Husserl — a epokhé, com a qual ele coloca tudo entre parênteses — é mais ou menos como comparar um relógio de areia com um relógio suíço a quartzo: a máquina se tornou muito mais precisa, mas a função continua exatamente a mesma. Essa análise realizada aqui valeria tanto para Husserl quanto para Descartes. Husserl chegava a dizer que o que ele chama de atitude fenomenológica é não só diferente, mas é radicalmente oposta à atitude natural. A atitude natural é crer no que se pensa, crer no que se sente, crer no que se imagina. Crer ou descrer: ou afirmamos, ou negamos, mas em ambos os casos cremos: cremos na afirmação ou na negação. Ora, a atitude fenomenológica não afirma nem nega, ela simplesmente descreve o que está se passando diante da nossa consciência, ou seja, o próprio conteúdo intencional do ato cognitivo é observado por nós, sem que o afirmemos ou neguemos. Não se tratando sequer de “introspecção”, porque o que observamos no processo cognitivo pela técnica fenomenológica não são os atos reais de pensamento, não se trata de uma observação psicológica, o que observamos aí é simplesmente o fenômeno enquanto dado presente à consciência, sem afirmar que ele seja verdadeiro ou falso, real ou irreal. É claro que esta mesma atitude pode ser adotada para se estudar o próprio processo cognitivo, considerado enquanto fenômeno presente à consciência. Também neste caso não é uma observação pessoal, mas transcendental. Essa atitude é de fato muito esquisita e Husserl dizia que ela é tão antinatural que tem de ser treinada: o fenomenólogo precisa passar por um treinamento especial da consciência. Um dos discípulos de Husserl, Raymundo Abéllio, dizia que a fenomenologia era uma escola ascética, uma escola iniciática. Por quê? Porque o treinamento necessário para o discípulo colocar-se na atitude fenomenológica é um autodomínio do espírito. Neste exercício de autodomínio no qual nos desidentificamos das sensações naturais, da memória etc., e adquirimos a posição de observador fenomenológico, de certo modo, nos colocamos “acima” de nós mesmos. Começamos a pensar num outro estrato, num outro andar, num outro nível, que é o nível de validade universal, e aí estamos instalados em pleno eu transcendental. Abellio comparava isso a um processo iniciático, com toda a razão. Mas, seja difícil ou seja fácil, seja toscamente como fez René Descartes ou mais elaboradamente como Husserl, o problema é o mesmo: De onde nos vem a força para fazer isso? Esta força certamente não pode ser o simples impulso vital, pois este nos impeliria a fazer exatamente o contrário do que faz o fenomenólogo.

4. Uma falsa explicação: o desejo de conhecimento

Diante dessas aventuras do espírito, empreendidas por criaturas ousadas como René Descartes e Edmund Husserl, recorremos, para explicá-las, ao desejo de conhecimento. Ao colocarmos a pergunta: Como é possível que um sujeito queira colocar-se numa atitude tão difícil, tão antinatural e, no final das contas, tão dolorosa? Por que ele faz isso?, podemos apelar à resposta que está mais à mão: Ele faz isso por “desejo de conhecimento”. É esta a primeira resposta que nos ocorre. Diremos, então, que o desejo de conhecimento não é uma função do simples impulso vital genérico; é um desejo específico do ser humano. O que nos faz ter desejo de conhecimento não é, de fato, o puro desejo de viver; mesmo porque, para obter conhecimento podemos sacrificar muito do nosso ser psicofísico, da nossa vida. Quando vemos, por exemplo, um asceta budista privando-se de comida e de sono para obter conhecimento, dizemos que isto é um impulso de conhecimento, mas não um impulso vital: é um impulso diferente do impulso vital.

A primeira hipótese, então, seria esta: René Descartes ou Edmund Husserl conseguem colocar-se no estado de dúvida radical por desejo de conhecimento. E damo-nos por satisfeitos, como se tivéssemos encontrado um princípio explicativo terminal e auto-evidente. “Todos os homens, por natureza, desejam conhecer”: é a primeira frase da Metafísica de Aristóteles. E ele dá como prova disto o prazer que temos no exercício dos sentidos, mesmo quando eles não têm finalidade utilitária, mesmo quando eles não estão atendendo a interesses imediatos do nosso organismo. Assim, se esse desejo de conhecer está na natureza humana, nada mais natural do que realizá-lo, mesmo que isso custe sacrifícios ou perda para o nosso organismo vital.

Se Husserl e Descartes agem segundo essa natureza, não há pois nisso, aparentemente, nada de estranho. Então, damos a questão por resolvida, só que não resolvemos nada, pelo seguinte motivo: o simples desejo natural não pode, por si, atirar o homem a uma experiência antinatural.

Notem bem que, se o desejo de conhecer é natural no homem tanto quanto o desejo de viver, o desejo de comer etc., o fato é que, sendo eles desejos diferentes, podem entrar em choque uns com os outros, e teremos de escolher, por exemplo, entre continuar fazendo os exercícios ascéticos ou parar para comer. Podemos ter essa dúvida. Mas no caso de René Descartes existe algo mais que o desejo de conhecer. Isto se torna óbvio quando formulamos a questão da seguinte maneira: O simples desejo de conhecer pode nos levar a negar todos os nossos conhecimentos?

O próprio Aristóteles não foi tão longe. Ele, que dizia que o conhecer começa com o estranhamento, investigou o mundo e a alma, mas nunca estranhou, ao ponto de se atirar em ousados experimentos interiores para investigá-lo, que a alma pudesse conhecer o mundo.

Portanto, uma coisa é o estranhamento aristotélico, outro o estranhamento cartesiano. Aquele nos leva a fazer as perguntas: Como é possível?, Por que isto acontece?, O que é tal coisa?Quando estranhamos algo e isto suscita uma pergunta, qual é o ato seguinte? Buscar a resposta, evidentemente. Mas nada disso, por si, poderia nos levar à dúvida metódica, à dúvida geral e radical sobre todos os conhecimentos. Ao contrário, o impulso aristotélico do conhecimento nos leva naturalmente a restringir a pergunta àquele aspecto que estamos investigando no momento. Não vamos fazer todas as perguntas ao mesmo tempo, senão ficamos paralisados. Então, se estamos investigando, por exemplo, a fisiologia do coelho, não vamos, ao mesmo tempo, fazer uma pergunta sobre a estrutura do Estado. Podemos tratar de uma e de outra, mas não misturá-las. Portanto, existe em toda a busca do conhecimento um princípio de rendimento que faz com que encaminhemos a pergunta da melhor maneira possível. Nada disto nos impeliria à dúvida total. Entendemos então que mesmo o desejo do conhecimento, por mais profundo, mais dominante e mais radical que fosse, não explicaria a vontade de dúvida total.

Mais ainda, colocar “tudo” em dúvida para encontrar o princípio fundador de tudo subentende uma crença de que o princípio possa ser encontrado fora desse “tudo” – uma idéia que jamais ocorreu a Aristóteles e que, realmente, é antinatural. A curiosidade natural busca a explicação de uma coisa dentro dessa coisa ou em alguma outra coisa em torno. A idéia de afastar-se de tudo para conhecer a explicação de tudo jamais ocorreria a um homem por simples impulso natural.

Se o desejo de conhecer é natural, ele expressa a própria natureza do homem, e não teria cabimento que a natureza despertasse no homem um desejo impossível e antinatural.

Então, quando em nós o desejo de conhecimento se opõe ao desejo de viver, os dois desejos são naturais. É natural que o homem queira comer e é natural que ele deixe de comer para fazer exercícios ascéticos e adquirir conhecimento. Trata-se de um conflito que se dá dentro da natureza, mas ainda aí estamos muito longe do impulso que pode nos levar a negar todos os conhecimentos que temos.

5. É natural saber geralmente a verdade ou é natural geralmente errar?

Se a filosofia moderna começa precisamente com a investigação daquilo que Aristóteles supusera desnecessário investigar, então é patente que aquilo que pareceu natural a Aristóteles já não parece natural aos primeiros filósofos modernos. Eles começam por estranhar aquilo em que Aristóteles, o filósofo do estranhamento, não vira nada de estranho.

Aristóteles faz muitas investigações e se coloca em posição de estranhamento perante muitas coisas, mas não perante tudo ao mesmo tempo. Portanto, Aristóteles admitiu que algum conhecimento nós sempre temos, que algum conhecimento é válido e, indo mais fundo ainda, ele diz que é mais natural o homem pensar a verdade do que pensar a falsidade. Ele diz que geralmente sabemos a verdade, embora errando de vez em quando. Ora, se René Descartes chega a colocar tudo em dúvida, é porque ele está pensando exatamente o contrário: que geralmente erramos e de vez em quando acertamos. E como René Descartes inaugura todo o ciclo filosófico moderno, então, entendemos que para todos os filósofos modernos o errar começou a parecer mais natural do que o acertar. Isto é uma grande mudança.

Se propuséssemos a Aristóteles o método da dúvida metódica, ele nos chamaria de loucos, porque, para ele, todo conhecimento se baseia em algum outro conhecimento. Sempre soubemos alguma coisa, e é dela que vamos partir para saber mais: transitamos do conhecido ao desconhecido, para que o desconhecido se torne conhecido. E Aristóteles ainda diria que se suprimíssemos tudo o que conhecemos, a inteligência estaria paralisada. O método da dúvida metódica pareceria a Aristóteles radicalmente esquisito e inaceitável. No entanto, ele nos parece tão aceitável e tão óbvio, que alguns dos maiores filósofos e talvez o maior do século XX, que foi Husserl, diz que ele é o começo paradigmático e obrigatório de toda filosofia. Isso significa que, para a filosofia moderna, o conhecimento, longe de ser natural como para Aristóteles, é quase uma exceção, é quase uma anormalidade ou mesmo uma impossibilidade.

O que provocou toda essa mudança? É preciso que se compreenda o abismo de diferença que existe aqui. Nunca vi isto colocado assim em parte alguma, e creio também que ao longo dos tempos nenhum outro ser humano estranhou mais a dúvida metódica do que eu, porque estou com esse problema na cabeça há trinta anos. A primeira vez que li René Descartes já me surgiu a pergunta: Como isto é possível?, porque, à medida que eu ia lendo, eu via que pensava mais ou menos a mesma coisa que Descartes. Mas só que, ao mesmo tempo, eu tinha a sensação de estar andando sem os pés, e me perguntava: Como é que eu estou conseguindo fazer isto? Ora, como é possível, à mente que conhece, estranhar-se enquanto conhece?

Sempre podemos estranhar a nossa mente. Todos já tivemos a experiência de nos passarem pela mente umas idéias esquisitas. Você acorda, por exemplo, com o seu filhinho chorando às três horas da madrugada e você tem vontade de jogá-lo pela janela. É uma idéia esquisita, não é? Não há limites para as esquisitices que podem passar pela nossa cabeça. Ora, isto nós podemos fazer, podemos estranhar-nos de nós mesmos, estranhar a nossa própria mente e estranhar o nosso próprio “eu” sob várias circunstâncias. Porém, aqui no caso, o que é que René Descartes está querendo? Está querendo um conhecimento. Então, ele está se estranhando, não enquanto sujeito de atos esquisitos ou de pensamentos esquisitos, ele está se estranhando enquanto sujeito do próprio ato de conhecer, que é precisamente o ato que ele está realizando naquele mesmo momento. Há aqui um enigma e é por isso que pergunto: como é que o sujeito que conhece pode estranhar-se enquanto cognoscente? Não enquanto esquisito, não enquanto autor de atos estranhos realizados num momento passado ou de pensamentos estranhos pensados numa outra ocasião, mas enquanto alguém que está realizando o próprio ato que lhe parece esquisito e que só se percebe como esquisito por meio desse mesmo ato. Vamos apelar ao método filosófico da conversão da pergunta. Não podendo responder a essa pergunta diretamente, vamos fazer a conversão da pergunta, exatamente como fazemos em álgebra, quando, por exemplo, o professor nos dá uma equação enorme e vamos transformando-a em outras mais simples ou vamos tratando dela por partes. Chegamos aqui, então, ao estranhamento do estranhamento. Consequentemente, temos de nos perguntar agora: o que é propriamente “estranhar”?

6. Fenomenologia do estranhamento (1) Precauções de método

Num curso de filosofia que pretenda ser efetivamente um curso de filosofia e não somente um curso sobre filosofia, não é importante só o conteúdo do que o professor está transmitindo, mas o exercício do caminho que ele está trilhando, o seu modus operandi. No fundo, isto é até mais importante do que o assunto. E como itens básicos desse modus operandi que estou adotando aqui temos, primeiro, a idéia de perguntar: Que é?, Quid est? Esta é a pergunta filosófica fundamental. E, segundo, ao perguntar: Que é?, nunca nos contentarmos com uma definição nominal. A definição nominal declara apenas o que queremos dizer com determinada palavra, e não é isto o que estamos procurando. Temos de tornar presente mentalmente (3) a própria coisa da qual estamos falando e temos de ver aquilo que, de certo modo, ela nos impõe como sua natureza, aquilo que ela própria nos apresenta como sua identidade, seu quid, seu modo próprio de ser e de mostrar-se. Ora, as palavras estão à nossa disposição, elas são instrumentos para manifestarmos o que queremos. Nós as usamos como instrumentos de nossa auto-expressão, mas as coisas não são bem assim. As coisas nos resistem mais que as palavras, e é justamente nesta resistência que elas nos mostram que são alguma coisa em si mesmas e por si mesmas, independentemente do que projetemos sobre elas do nosso próprio estado interior. (4) Então, é justamente esta resistência das coisas que o filósofo procura, porque sabe que ela é preciosa, ela é o aspecto das coisas que transcende a nossa subjetividade. Mas “coisas”, aí, não significa apenas os entes materiais, e sim também os fatos e situações, tudo enfim o que é “real”, inclusive na nossa experiência interior considerada como realidade factual, como fato psíquico. Quando pergunto: o que é estranhar?, posso definir a palavra “estranhar” como quiser, mas isso não me dirá o que acontece realmente quando se estranha alguma coisa, o que é realmente estranhar. Para saber o que é estranhar, terei de traduzir num conteúdo verbal as experiências internas do ato de estranhamento, com as quais eu não me preocupei no momento mesmo em que estranhava. Por exemplo, alguém que conheço aparece de repente pintado de verde, naturalmente eu o estranho; mas, justamente por isso, não estranho que eu estranhe. Então, nessa hora, eu não vou perguntar-me: “O que é estranhar?”, “O que se passa na minha mente na hora em que eu estranho?”. Estranhar o estranhamento não coincide no tempo, em geral, com o ato de estranhar. Se estranho realmente alguma coisa, é porque ela me parece estranha e, por isto mesmo, não vejo nada de estranho em estranhá-la. Assim, perguntar “Que é o estranhamento?” exige algo mais do que o estranhamento natural, exige uma espécie de estranhamento de segundo grau, um estranhamento do estranhamento. Quando perguntamos: “Que é?”, Quid est?, devemos, com efeito, tornar presente isto que perguntamos, seja um objeto físico, seja um estado interior etc.. Mas esse tornar presente não é um reviver no sentido direto. Para eu investigar o que é tristeza não preciso ficar triste, mas preciso que a tristeza me esteja presente de algum modo; eu preciso ter a recordação eficaz e suficientemente completa da tristeza para que eu possa dizer o que ela é. Então, aí não estou triste, mas a minha tristeza está presente. Isso significa que já não vou estar muito alegre, mas também não estou triste. Poderia perguntar-me, por exemplo, o que é o medo. Ora, só podemos perguntar o que é o medo num momento em que não estamos com medo, evidentemente; porque se na hora do medo conseguíssemos nos distanciar intelectualmente do medo ao ponto de estranhá-lo e perguntar “Que é o medo?”, o medo se dissolveria como vivência direta para reaparecer como objeto de reflexão. Entre estarmos vivendo uma certa experiência e estarmos filosofando sobre ela, existe uma diferença e existe uma afinidade. A diferença é que não estamos revivendo existencialmente aquele estado e a afinidade é que esse estado tem de estar presente, tão presente quanto se estivéssemos vivenciando-o, mas de uma forma diferente daquela pela qual ele se apresenta na vivência direta. Na vivência direta o estado, de certo modo, nos possui e nos envolve, ao passo que na reflexão ele está “diante” de nós e só muito parcialmente nos deixamos envolver por ele e identificar com ele. A diferença, que aliás é simples, vem de que, além de esse estado estar presente, existe um outro estado que também está presente, que é o estado de pergunta, o qual não estava presente no momento em que vivíamos esta situação em sentido existencial. Então, se pergunto: “Que é o medo?”, o medo tem de estar tão presente quanto na hora em que eu o sinto, só que agora ele está, de certo modo, neutralizado, porque está presente também uma curiosidade que o neutraliza ou pelo menos o abranda. É esta coexistência entre a curiosidade e um determinado estado interior que me permite perguntar sobre ele. Mas, se nos contentamos com a definição de uma palavra ou com a primeira resposta que apareça, movidos por um impulso espontâneo de auto-expressão e comunicação, então não permitimos que este objeto esteja novamente presente: o que está presente é o nosso impulso de falar, de comunicar-nos, e este impulso encobre o objeto do qual queríamos falar, desviando o foco da nossa atenção para a comunicação-expressão. É um mecanismo dispersante. Para superá-lo, é preciso chamar o objeto de volta e de volta, quantas vezes for necessário, até termos a certeza de que ele, e não o nosso impulso de expressão-comunicação, se tornou o foco da nossa atenção. Essa operação toda supõe paciência, honestidade e muita curiosidade. Quando você não está muito empenhado em saber, não leva essa operação até o fim, e então diz algo que não expressa o objeto, mas apenas você mesmo.

Bem, convertemos nossa questão de “Como é possível o ato da dúvida?”, em “O que motivou o ato da dúvida?” ou, “Por que o sujeito quis ficar em dúvida?”. Em seguida a convertemos numa questão mais precisa ainda: “Como é possível estranharmos, não um estado qualquer nosso, mas aquele mesmo estado presente que é o ato de conhecer?” Como a mente cognoscente se estranha enquanto cognoscente? E por fim convertemos essa pergunta numa outra mais geral, cuja investigação deve preceder a das outras perguntas: “Que é estranhar?”

7. Fenomenologia do estranhamento (2) Estranhar e assumir

Estranhar algo é desidentificar-se dele, é olhá-lo desde uma distância desde a qual esse algo aparece injustificado, desprovido de fundamento, absurdo; ou seja, o estranhar é um não assumir algo.

Estranhar é o contrário de assumir. Assumimos algo — um encargo, um dever, uma idéia, um amor, uma pessoa — quando o damos por tão justificado, por tão fundamentado, por tão dotado de uma razão absoluta de ser, que por essa razão arriscamos nosso bem-estar e nossa vida. Como pode a mente que conhece, no instante em que conhece, recusar-se a assumir que conhece?

A questão agora ficou mais precisa ainda: conheço, mas não assumo que conheço — isto é a dúvida cartesiana. Então, deixo de ser o sujeito executivo do ato de conhecer e me coloco fora do campo de minha própria ação, dizendo: “Conheço, mas não sou bem eu que conheço.”

Não sei se este é um problema psicológico, não estou tentando catalogá-lo como um problema psicológico ou antropológico etc., estou tentando descrever o que se passa. Ora, como é que podemos não assumir exatamente aquilo que estamos fazendo naquele mesmo instante e pelos mesmos meios com que nos recusamos a assumi-lo? É pensando que conhecemos, é pensando que assumimos ou não assumimos. Então, pelo mesmo meio – o pensar – é que vamos fazer a desidentificação entre o sujeito que conhece e o sujeito que pensa.

Neste ponto, deparamo-nos com uma dificuldade das mais temíveis: se me desidentifico daquele que em mim conhece, se me separo do meu eu cognoscente, onde é que precisamente “estou” neste instante? Quem, em mim, fala e pensa, se não é o eu cognoscente? Dito de outro modo, se me coloco fora daquela área que para mim é iluminada, e se o faço precisamente com o propósito de enxergar a luz mesma que vem de mim e não os objetos que ela ilumina, mas ao mesmo tempo recuso assumir que essa luz é luz e que ela é minha, tenho então de olhar desde as trevas. Torno-me inconsciente para examinar a consciência, como um homem que arrancasse os olhos para os examinar. Mas, ao mesmo tempo, como o foco iluminante do que conheço é a própria atenção que projeto sobre os objetos, isto é, como o eu cognoscente se desloca comigo para onde quer que eu vá, tenho apenas a ilusão de entrar nas trevas para ver a luz, porque de fato levei a luz comigo e a projeto sobre aquela outra luz que sou eu mesmo. O eu reflexivo, duplamente cognoscente, ilumina o eu meramente cognoscente e, ao mesmo tempo, o objeto deste. Se sei, sei que sei; e se sei que sei, sei que sei que sei: as trevas resolvem-se num jogo de luzes e espelhos. (5) O resultado parece esplêndido, ao menos do ponto de vista estético: a tentativa de estranhamento resultou numa aproximação, a desidentificação numa identificação intensificada.

Esta é a questão: aqui está o objeto do conhecimento, aqui está o eu que conhece, mas eu me desidentifico e me coloco fora da relação entre eles. Ora, existem duas maneiras de se fazer isto. Uma delas pode ser formulada assim: aqui está o objeto do conhecimento, ali está o sujeito que conhece, e dentro ou acima de mim existe um terceiro que diz: “Eu sei que conheço, eu tomo consciência de que conheço.” Ora, se diante de mim está o objeto e o ato de conhecer está em mim, a consciência de que conheço não pode estar somente em mim; ela está em mim, mas de certo modo ela me transcende porque me mostra as relações que tenho com um objeto que não sou eu. Esta é a primeira maneira de refletir sobre o ato de conhecimento. Então, aqui, não é que eu que me desidentifique de mim; eu subo um grau acima de mim mesmo e olho o que estou fazendo, desde um plano mais elevado. Logo, eu sei, e sei que sei. É claro que a função saber é, em si, mais elementar do que o saber que sabe, porque esta abarca a primeira. Porém, não é disto que se trata no estranhamento cartesiano: este não olha o ato do conhecer de um ponto de vista mais elevado, mas ele se coloca “fora” do ato de conhecer; ele não assume o conhecimento. A primeira operação que descrevi, que é esta reflexão que nos leva à conclusão de que sabemos que sabemos, longe de ela se desidentificar do ato de conhecimento, ela o aprofunda. Ela tanto se identifica com este ato, que ela diz não apenas: sei, mas também: sei que sei; ou seja, assume o conhecimento duplamente. Não estamos aí apenas vivenciando o ato, mas, por assim dizer, estamos assinando embaixo dele, passando recibo dele, reconhecendo-o. Ora, o estranhamento cartesiano não é isto, é exatamente o contrário. Ele também se coloca “fora” do ato de conhecimento; só que esse fora não é um acima, é um “fora” em sentido literal. Ele não assume o ato de conhecimento, ele o desassume, ele o rejeita. Como é possível isto? Por enquanto não temos nenhuma solução. Até o momento só temos problemas. Conseguimos converter um problema noutro problema, noutro e noutro e estamos no meio da elaboração da equação.

Pode ser que o método cartesiano não funcione, porque se eu me coloco fora do conhecimento, então vou tirar conclusões que não serão válidas, porque vou poder continuar gerando a mesma dúvida eternamente. Mas, e se o método cartesiano funcionar? Então, certamente não será assim, porque deste colocar-se fora do conhecimento, deste desassumir o conhecimento, será possível tirar conclusões positivamente válidas.

Essa era a esperança de Descartes. Senão, ele não teria adotado esse método. E o fato é que ele tira algumas conclusões. Eu até concordo com a observação de que eles não podem ser válidas, de que o método cartesiano não funciona, acho que de fato é assim e que no final se demonstrará que é mais ou menos assim. Porém, por enquanto ainda não estamos julgando o método cartesiano. (Aliás, um outro detalhe da formação para o exercício do método filosófico é que de nada adianta chegar a uma conclusão que é certa, mas da qual não se possuem efetivamente todos os detalhes da sua demonstração. Todo o esforço filosófico é o esforço de sair do reino dos meros termos e conceitos e chegar ao conhecimento das coisas mesmas. Não basta, por exemplo, termos um conceito de árvore para conhecermos uma árvore. Assim, operando com conceitos, tiramos conclusões muito facilmente, mas isto até um computador faz. Fazendo isso deslizamos em cima das coisas e vamos direto para as conclusões, jump to conclusions, dizem os americanos. Mas é melhor não chegar a conclusão nenhuma do que pular direto para ela, pois, se este é o procedimento normal da vida prática — porque nesta você tem de tomar decisões, as quais não podem ser justificadas em todos os pontos, por uma questão de tempo –, já no esforço de conhecimento teorético, ao contrário, não adianta termos a conclusão, o que precisamos é da completa justificação da conclusão. Por isso mesmo é que, evidentemente, a investigação filosófica progride muito mais lentamente do que qualquer outro esforço cognitivo humano. Qualquer empreendimento pode ser muito mais rápido e eficiente do que a investigação filosófica, porque esta vai esbarrar a todo momento em novas perguntas, e novas, e novas, e novas, até termos a certeza de que o que estamos dizendo reflete, não apenas um jogo de conceitos em nossa mente, não apenas um arranjo inteligente de convenções científicas, mas a exigência interna da própria realidade. Por isso é preciso ter calma e paciência.) No presente momento, quando estamos examinando a dúvida cartesiana, estamos, de certo modo, colocando-nos no estado da dúvida cartesiana e ao mesmo tempo examinando-a. Ora, se chego a uma conclusão, o que foi que fiz? Saí fora da dúvida e o meu objeto de reflexão (a dúvida mesma) foi embora. Essa é a tendência natural do pensamento humano: mudar de assunto o mais rápido possível. E isto logicamente funciona na vida prática, por exemplo, se estamos guiando um carro, há um número de dados e de informações que vêm de fora e temos de saltar de um ao outro rapidamente, porque se ficarmos pensando no carro que cruzou a rua lá adiante, vem um outro e colide com o nosso. O procedimento de investigação, seja em ciências, seja em filosofia, é exatamente o contrário. E nas artes acontece a mesma coisa, a minúcia aí tem a mesma importância, porque na arte a meticulosidade em cada detalhe e na relação de cada detalhe com o conjunto é também o segredo do sucesso. (6) Esse é o segredo em filosofia, em ciências ou em artes, é a mesma coisa. Na vida prática — considerando a vida prática já não num sentido imediato e físico, mas naquela parte de vida prática que implica um comando e um planejamento, ou seja, no mundo estratégico ou empresarial, por exemplo –, também é a mesma coisa. Napoleão dizia que era preciso ter o melhor plano de batalha e, ao mesmo tempo, pensar em cada parafuso de cada canhão, senão alguma coisa falharia. Aqui também é a mesma coisa, vale a pena gastar tempo, porque quando abandonarmos esse problema e passarmos para outro, o primeiro terá sido liquidado definitivamente.

8. Reflexão completa e dúvida cartesiana

Qual é, então, a dificuldade do estranhar que se conhece, na hora em que se conhece? A dificuldade é precisamente que não estamos aqui fazendo uma reflexão comum. A reflexão comum seria composta de objeto, sujeito, ato, consciência do ato e consciência da validade do ato. O meu falecido mestre, o Prof. Stanislaw Ladusãns, chamava a isso a reflexão completa, e este é o fundamento, por assim dizer, da credibilidade do conhecimento, ou seja, a reflexão completa refaz tudo, e eu acrescento que, enquanto fazemos isto não estamos nos desidentificando do conhecimento, mas, ao contrário, o estamos assumindo cada vez mais. Porém, o estranhamento cartesiano não é isto; ele desassume o conhecimento. Parece impossível, e no entanto, fazemos isso, Descartes fez isso e nós também podemos fazer isso. Parece, então, que a coisa ficou mais esquisita ainda.

Na reflexão comum, ou na reflexão completa, o que acontece? Se tomamos o ato de conhecimento como aquele ato pelo qual a atenção ilumina um determinado objeto, então, olho para este objeto e, de certo modo, a atenção o destaca dos outros e o ilumina. Na reflexão, o que faço? Além de manter este objeto aqui iluminado, eu ainda ilumino o cenário, mas eu não apaguei a luz que nos ilumina a todos: a mim, ao objeto e ao cenário. Mas, se eu estranho o ato, se me coloco fora dele, se não o assumo, eu não estou iluminando o ato, estou negando-o. Eu o nego e o olho ao mesmo tempo. Então, de onde eu o olho? Eu me coloquei fora da zona iluminada e o estou olhando desde as trevas. Mas acontece que, como o fator iluminante era eu mesmo, como era a minha própria atenção que iluminava o objeto, como é que posso retirar-me para as trevas e continuar ao mesmo tempo vendo o objeto e o ato? Sempre que eu for para as trevas e eu prestar atenção ao que eu fiz, estarei reiluminando tudo novamente. Mas se eu ilumino de novo, então digo: eu sei que sei, o que significa que volto à reflexão comum e não fa;o dúvida cartesiana nenhuma. Parece que não existe escapatória disso, ou seja, eu não posso prestar atenção numa coisa e dizer que não a estou vendo, pelo menos não ao mesmo tempo. E, no entanto, é isto o que faz a dúvida metódica; ela, de fato, acontece, e ela, de fato, é impossível. Então, se ela era esquisita, agora ela ficou diabolicamente esquisita.

Então, voltamos à reflexão completa do Pe. Ladusãns. Ora, mas com isso provamos que a dúvida cartesiana é impossível e não obstante ela aconteceu. Parece que temos um problema terrificante na mão, ele já era complicado e no começo da nossa investigação a dúvida cartesiana parecia esquisita, mas agora ela parece impossível.

“Se sei, sei que sei; e se sei que sei, sei que sei que sei”, era a fórmula imortal do Pe. Ladusãns, a fórmula do conhecimento reflexivo. Só que, a cada vez que eu fizer novamente essa reflexão, terei reafirmado todo o trajeto. Segundo a técnica que me foi ensinada pelo Padre Ladusãns, que foi um discípulo de Husserl, a reflexão reafirma o ato de conhecimento e o aprofunda, mas se o reafirma, então, não pode haver desidentificação dele por um instante sequer, ao contrário: agarramo-nos a ele.

É como se você estivesse apaixonado e pensando em casar; aí você experimenta desidentificar-se mentalmente da sua noiva para ver se sem ela não estaria melhor. Mas no instante em que pensa isto, já sente tristeza. Então acaba casando. No amor, este último capítulo é evitável. Você pode, no último instante, desistir, mas aqui não é bem isso o que acontece; aqui, tentamos pular fora, mas, quanto mais pulamos fora, mais estamos dentro. Mas, se é assim, como é que acontece a tal da dúvida cartesiana, que é a desidentificação? Isso quer dizer que a dúvida cartesiana tem uma estrutura impossível, apesar de ela acontecer.

Mas isto, de fato, só complica o nosso problema: tentamos desidentificar-nos do nosso eu cognoscente, mas, de fato, não pudemos fazer isso. “Ser homem é conhecer”: tentamos deixar de sê-lo por um instante, mas foi em vão. Mais compulsiva que a natureza má, que nos impele de vez em quando a repetir os mesmos erros, parece ser a natureza boa, que nos devolve insistentemente o poder do qual abdicamos. Ou seja, tentamos pular fora da verdade e não conseguimos. Queríamos ser esquisitos, mas não conseguimos tornar-nos senão o bom e velho homem natural de Aristóteles, cuja natureza era conhecer.

Entre o homem natural e o homem filosófico que reflete não há uma diferença de natureza, há uma diferença apenas de intensidade. O homem natural é aquele que conhece, o homem filosófico é aquele que, através da reflexão, reconhece que conhece.

Mas, se é assim, por que foi que quisemos entrar nessa experiência falhada? E de onde, pelo amor de Deus, de onde tiramos a hipótese de ir para as trevas para enxergar a luz, se nada, nem na nossa experiência natural, nem nas doutrinas dos antigos filósofos, deixava entrever essa possibilidade que por fim constatamos mesmo não existir? Por que quisemos tentar isso?

Para arriscar-se nessa experiência, insisto, é preciso uma força — a força de opor-se à natureza, de rejeitar os seus dons, ainda que para ter de curvar-se a ela no fim e recebê-los todos de volta. Por que e com que força os filósofos modernos, a começar por Descartes, julgaram poder, mediante uma operação tão manifestamente condenada a se suprimir a si mesma, encontrar um fundamento mais sólido para o conhecimento humano?

A dúvida suprime-se a si mesma porque se transforma em reflexão completa. Mas se é assim, por que é que quisemos a dúvida? Não poderíamos simplesmente ter feito a reflexão completa? Por que Descartes não fez simplesmente isso, como o velho Aristóteles fazia? Existe aí a interferência de um outro elemento, totalmente estranho, parece, ao impulso natural de conhecer. É claro que às vezes a natureza se contraria a si mesma, porque ela tem impulsos contraditórios, mas ela se contraria a si mesma dentro da naturalidade dos dois impulsos: temos o impulso da raiva, mas temos o da piedade também. Porém, neste caso estamos falando de um impulso que não apenas não é natural, mas que não pode ser atendido por modos naturais.

O desejo de conhecer, já vimos, não explica isso, porque o natural não explica o antinatural. Temos de buscar a explicação, parece, nesse anti. Que é que, no homem, se opõe à natureza, ao desejo de conhecer?

Aqui está o ponto crucial de toda esta trajetória: este estranhamento total não pode ser realizado apenas por desejo de conhecer, porque o desejo de conhecer impele à reflexão natural e não à negação total. No entanto, a negação total existe, e precisa apoiar-se numa força suficiente para deter a natureza. Ora, se se trata de uma detenção, ou de uma desidentificação do ato de conhecer, e se isso não pode ser explicado pela própria dinâmica do ato de conhecer, então, é porque ele é um impulso oposto ao ato de conhecer. Assim como na vida pode haver um desejo de viver e um desejo de morrer, também existe um desejo de conhecer e um desejo de não conhecer. Esta é a primeira conclusão positiva a que chegamos. Deve haver um outro impulso, que não tem nada que ver com o desejo de conhecer, no qual se apóia a possibilidade da dúvida metódica.

9. O mergulho no fundo do poço

Se acompanharmos o raciocínio inteiro de Descartes, veremos que ele chega a uma determinada certeza, que é a certeza do eu pensante: “se eu estou duvidando, duvidar é pensar, e se eu estou pensando, eu não posso na mesma hora duvidar que penso”. Isso para ele é a primeira certeza. No § I, demonstrei que isto também não é uma certeza, mas Descartes achou que era. A primeira certeza positiva a que ele chega é a do eu pensante. Haveria uma diferença entre esse raciocínio de Descartes e o de Husserl? Não. Husserl só o aprofunda, ele torna isso mais preciso, e mais trágico no fim das contas. O filósofo polonês Kolakowski demonstra eficazmente que o método husserliano, por maravilhoso que seja, não responde à pergunta que coloca. (7) Vamos observar a mesma coisa agora já em Descartes, porque, uma vez colocada a dúvida metódica, e feito todo o exame, ele chega a um primeiro resultado positivo, que é a existência do eu — uma certeza absolutamente inabalável para Descartes –, porém, como poderíamos deduzir desta única certeza os demais conhecimentos que, não obstante, sabemos que são certos, como os conhecimentos científicos, matemáticos etc.? Resposta: não podemos. O eu solipsista, por definição, não tem pontes para fora de si mesmo.

Descartes entrou na dúvida metódica dizendo que seu objetivo era reconstruir o mundo das ciências, o mundo do saber, em bases mais sólidas. Ora, a primeira base que ele encontra é a certeza do eu. Só que essa certeza não é suficiente para deduzir daí o mundo, a ciência física, a história, etc. Chegamos à certeza do eu e vemos que só há esta certeza, mais nada. Não há mais ciência. Só há a certeza do eu. Então, esse resultado não contenta Descartes. Como é que ele sai disso? Ele apela para Deus dizendo: “Ora, eu tenho a idéia de vários conhecimentos; conheço geometria, conheço história, conheço religião, conheço a existência do mundo, tenho informações que me chegam pelos sentidos, conheço mais isso, mais aquilo etc.. Quem colocou todas essas informações em mim não fui eu mesmo, foi alguém de fora. Foi Deus. Ora, Deus não iria enganar-me dessa maneira, seria uma covardia e Deus não iria fazer isso comigo. Portanto, como Deus é bom, concluímos que todos esses conhecimentos devem ser válidos.”

Ora, isto significa que ele adotou um método para dar um fundamento mais sólido aos conhecimentos e que, no momento decisivo, ele acabou achando um fundamento que não tem nada a ver com o método, um fundamento completamente diferente daquele que foi prometido no início. Isso significa que alguma coisa do método ele obteve, mas não obteve o que queria. Obteve infinitamente menos. E para sair da armadilha que ele próprio montou ele teve de apelar não apenas a um conhecimento comum, mas à fé religiosa. Ora, para quem começou duvidando de tudo e afirmando o primado absoluto da razão e da dúvida, isso é um anticlímax.

Descartes, armado de confiança na razão humana, chega ao fundo do poço e pede socorro a Deus. Então, algo falhou. Esse algo nos mostra que efetivamente o método da dúvida cartesiana não tem saída para fora da dúvida, e que a reconstrução cartesiana do conhecimento, que é a segunda parte do método, o famoso racionalismo cartesiano fundador de ciências, não tem nada a ver com a primeira, com a dúvida metódica. A segunda parte tem um fundamento que se chama Deus, o qual não tinha entrado na história até então.

Ora, pelo resultado a que ele levou, que é um resultado negativo, entendemos que esse método fica ainda mais esquisito. Ele é antinatural, não tem nada a ver com a reflexão sobre o conhecimento, não pode ser explicado pelo desejo de conhecimento e, pior ainda, não funciona. Então, por que o sujeito quis entrar nisso? Mais ainda, se fosse só ele que entrou, poderíamos saltar fora da questão, alegando: “É um maluco.” Mas não foi só ele. Foi todo o ciclo da filosofia moderna, culminando em Husserl. Ora, se o método tem todos esses defeitos – se ele é antinatural, não é uma reflexão, dói e não funciona –, e se, no entanto, não apenas quase todos os filósofos o adotaram mas um deles chegou a dizer que ele é o começo obrigatório de toda a filosofia, temos, então, agora não apenas um problema filosófico mas um problema histórico dos mais graves; um problema que compromete toda a civilização moderna.

Entre Descartes e Husserl houve muitas tentativas filosóficas de sair da armadilha montada pela dúvida metódica sem apelar a Deus. Devia haver um meio racional e científico de se sair disso, acreditava-se. Todas essas tentativas falharam e, finalmente, também a de Husserl. Eu tenho uma grande admiração por Husserl, que era um grande filósofo e um homem honestíssimo – mas o fato é que depois de cinqüenta anos de esforço de Edmund Husserl, Kolakowski em oitenta páginas acaba com tudo e diz: “Não funciona”. Não funciona pela mesma razão pela qual, em Descartes, já não funcionava. Quer dizer: em ambos os casos o sujeito monta a armadilha, entra dentro dela, joga a chave fora e depois pede socorro: “Deus, tire-me daqui”. Que a humanidade inteira pudesse ter entrado nisso, que alguns dos melhores cérebros da humanidade – e pessoas inteiramente honestas, porque Husserl é o supra-sumo da integridade intelectual – entrassem nisso nos parece agora muito mais esquisito ainda.

Então, temos de retomar a investigação do “Como é possível?” Só que, neste momento, temos plena consciência do beco sem saída que é o método cartesiano. Como foi possível entrarmos nesse buraco? E já vimos que não pode ter sido um impulso natural. Então, analisemos um pouco como é que funciona o impulso natural para ver os elementos contraditórios que possam existir nele e que possam servir de porta de entrada para algo que é anti-natural.

Vamos partir de um exemplo mais simples. Um lobo alimenta-se de carne. É natural, então, que procure um bicho para comer — uma ovelha, um coelho ou coisa assim. Alimentar-se desses bichos, compor com as proteínas deles seu sangue e seus músculos, crescer e mover-se às custas deles está na natureza do lobo. Não é, portanto, natural que ele deixe de comer esses bichos. Mas, se for privado desse tipo de alimentos, ele perde energia, passa a economizar movimentos e por fim definha e morre. Imaginem que pegamos um lobo, o prendemos numa jaula e só lhe damos bananas para comer. Mesmo que ele aceite esse humilhação de viver de bananas, ele vai definhar. Por natureza, por si mesmo ele jamais deixará de comer outros bichos para preferir bananas. Lobo vegetariano não existe, mas se por algum fator alheio à sua natureza ele ficar privado desses alimentos, de onde virá o decreto de que em tais circunstâncias ele deve definhar e morrer? Virá da sua natureza mesma, que não suporta a vida senão em condições que sejam propícias ao exercício dos dons naturais do lobo. Então, a natureza do lobo contém não apenas o mandamento referente às coisas que ele vai fazer, mas já contém esse programa alternativo que decretará o seu definhamento e a sua morte no caso de essa mesma natureza ser contrariada. Isso faz parte da própria natureza, quer dizer, a natureza tem não só o decreto positivo, mas o negativo também. Nesse sentido, a patologia está prevista na fisiologia, quer dizer: o órgão funciona de tal ou qual maneira, mas, se ele for agredido, ele funcionará de outra maneira. A natureza prescreve não apenas o que um animal vai fazer em vida, mas em quais condições ele estará condenado a morrer. Não digo que em tais condições o lobo “quererá” morrer, a não ser que o verbo querer, aqui, tenha um sentido diverso daquele que tinha quando o lobo “queria” comer uma ovelha ou, cheio de carne de ovelha na barriga, “queria” brincar com os outros membros da alcatéia para expelir a energia sobrante. Nós privamos o lobo da sua comida específica e aí ele começa a definhar e dizemos que ele “quer morrer”. Porém, o verbo querer aqui tem um sentido diferente. Não é que ele “queira” morrer no mesmo sentido em que ele “queria” comer um coelho. É um querer diferente, é um querer negativo, que Miguel de Unamuno chamava, para contrastar com voluntad, de noluntad. O certo é que, passado um certo limite de privação, o lobo “não quererá” mais viver, ou “se deixará” morrer. Esse querer negativo recebe, entre os humanos, o nome de má vontade. Má vontade é não querer fazer algo que seria bom fazer. Se as circunstâncias nos impedem repetidamente de realizar nossa vontade positiva, acabamos por desenvolver uma vontade ao contrário, uma má vontade. Vingamo-nos em nós mesmos de um mal que nos foi infligido de fora.

Num filme de Woody Allen (Um Assaltante Bem Trapalhão) havia um menino todo franzino e azarado, que usava óculos. Quando ele ia para a escola, os outros pegavam os óculos dele e quebravam. Até que um dia ele está indo para a escola, vem aquele bando de garotos para quebrar os óculos dele e – o que é que ele faz? Ele mesmo tira os óculos e quebra. Ou seja, ele já entrou nesse ciclo negativo. Isto nos acontece: é um masoquismo preventivo. É como, por exemplo, aquela menina que teve um namorado, o namorado a largou, e então ela diz: “Agora eu não namoro mais ninguém.” O que é que é isto? É a má vontade, a inversão do querer, que está prevista, como programa alternativo, na própria estrutura do querer.

De modo análogo, o organismo do lobo, privado daquilo que lhe dava vontade de viver, entra numa espécie de má vontade e conspira contra si mesmo para morrer. No fim já será inútil oferecer-lhe um coelho, uma ovelha. Ele já não quer mais comer, ele está marcado com o signo da morte e o curso do seu destino já não pode mais ser mudado. Ora, esta inversão do impulso natural nas situações em que ele já não pode se manifestar é tão “natural” quanto o impulso mesmo.

Suponhamos que um lobo jovem e bem alimentado pudesse imaginar, com anos de antecedência, essa temível situação. Um pouco da sua morte já entraria antecipadamente no seu horizonte de experiência vital. E, se ele imaginasse que num futuro próximo, por uma razão qualquer, a privação de alimento seria fatal e inelutável, ele começaria a definhar nesse mesmo instante, de medo, preocupação e tristeza. Algo desse sofrimento futuro já se tornaria presente em imaginação. Ora, quantas vezes nós mesmos – todos temos essa experiência – nos privamos de algo por medo de fracassar ou por medo de perder coisas que nunca tivemos? Ou seja, entramos nessa atitude não somente por experiências dolorosas que tivemos, mas por experiências possíveis que não tivemos, mas que prevemos pela imaginação. Isso o lobo não faz. Mas, se ele fizesse, a idéia de ter de comer só bananas começaria a matá-lo nesse mesmo instante.

Felizmente, os lobos só se preocupam com a alimentação diária e não cogitam de problemas a longo prazo. O homem, ao contrário, é inclinado a esse tipo de cogitações, e por isto mesmo se distingue por sua capacidade de sofrer, em imaginação, males que ainda não se apresentaram e talvez não se apresentem nunca. É coisa de experiência comum o fato de termos, às vezes, a antevisão de um mal possível que nos abate mais do que esse próprio mal realizado.

Ora, se é natural no homem desejar conhecer, é também natural que, privado da possibilidade de conhecer, ele sofra. A mais elementar forma de conhecimento é a estimulação sensorial. Experimentos científicos recentes demonstraram que a privação de estímulos sensoriais externos leva um homem ao desespero ao fim de umas poucas horas. Podemos suportar a privação de alimento por mais ou menos quarenta dias, a privação de sono por quatro dias, mas não podemos ficar sem estimulação sensorial por um dia sequer.

10. Solução do enigma

Isto quer dizer que, no caso do método de Descartes, estamos falando de um experimento de privação feito imaginariamente. Que é a dúvida metódica? É um experimento de privação vivido imaginariamente. Privação de quê? Não podemos dizer que é privação de conhecimento, porque o ato de conhecimento está lá, mas privação do reconhecimento desse conhecimento, privação da identidade entre o eu pensante e o eu cognoscente. É como se eu estivesse me olhando conhecer, mas este que olha não reconhece aquilo que esse mesmo eu conhece na mesma hora. Ora, que não existe situação de sofrimento intelectual mais intenso do que essa. Porque eu me olho a mim mesmo, mas eu não sou eu mesmo. Podemos chamar isso de esquizofrenia? Não, porque o esquizofrênico, na hora em que está pensando, se identifica com aquilo que ele está pensando. Depois ele imagina que se transformou em outro, é claro, e diz: “Não fui eu.” Mas na hora do ato de conhecimento, ele não estranha esse ato de conhecimento ao ponto de dizer que não é ele. Ele pode fazer isso logo depois, mas na hora, não. Ora, e se eu estivesse olhando a minha própria consciência e ao mesmo tempo não tivesse consciência dos conteúdos que essa mesma consciência está conscientizando naquele mesmo momento? Essa situação não é humanamente vivível. Ela é apenas imaginável… e temível, mesmo sendo apenas imaginável. Essa experiência, na verdade, é o que no plano imaginário mais se aproxima daquilo que em teologia se chama “a morte da alma”. Isso não é um experimento de ignorância, de ignorância comum, não é um experimento de privação de certos conhecimentos, mas um experimento de privação de identidade com o eu que conhece. Esta alma existe, esta consciência existe, mas ela já não é mais sua. Não encontramos isto em parte alguma da experiência humana. Portanto, não pode ser por ter vivido essa experiência humana que Descartes tenta imaginá-la — porque ela não é vivível, só é imaginável. E ela tem um nome em teologia, o que significa que é um experimento que não se refere a este mundo, mas que se refere ao inferno. O psicótico ou o esquizofrênico experimenta isso, de certo modo, ao dizer: “Eu não sou eu, eu não estou aqui, eu sou um outro”? Sim, ele pode dizer isso, mas não pode realizá-lo conscientemente. Ele diz isto, mas não está efetivamente vivenciando-o, isto é um detalhe fundamental, porque a identidade física dele torna impossível essa vivência como vivência real. Então, dizemos que, na hora em que ele está dizendo isso, ele não se lembra dele mesmo; ele não é ele mesmo, mas ele é aquele que está falando. No caso de Descartes, não. É no mesmo ato que a consciência se afirma e se nega: “Eu não sou este que está dizendo isto, e também não sou um terceiro.” Isto não é um experimento psicológico. Psicologicamente isto não existe, nem na esquizofrenia. É o experimento imaginário de uma situação humanamente impossível.

Ora, o método da dúvida metódica é um método para se precaver contra algo, que Descartes diz ser o erro, a possibilidade do erro, mas vemos que ele se está precavendo contra algo muito mais grave do que o erro; e está se precavendo pelo famoso método da autovacina: ele quer inocular-se um pouco desse estado para homeopaticamente neutralizá-lo. Mas de onde ele tirou o temor da possibilidade desse estado? Da experiência humana cognitiva comum não foi, pois nela esse estado não existe. Ele só é mencionado em teologia, em religião, é somente aí que Descartes pode ter ouvido falar disto, e em nenhum outro lugar. Portanto, o método cartesiano é uma tentativa desesperada de o sujeito se precaver contra a “morte da alma” mediante uma morte imaginária que imaginariamente neutralize essa possibilidade.

Neste momento, a questão parece ter ficado mais compreensível. Descartes antevia esse estado infernal e tenta defender-se dele por meios humanos, através do uso da reflexão. Não consegue, porque ou ele cai na reflexão completa ou volta para a dúvida paralisante. Então, o que é que ele faz? Quem é que nos tira do inferno? Deus. Ele apela a Deus. Então, era um problema teológico e teve uma solução teológica. Não é um problema filosófico e não tem solução filosófica.

Se tentarmos equacionar isso em termos psicológicos, chegamos a contradições incríveis. Psicologicamente, é uma contradição, é uma absurdidade, algo que não acontece no mundo real. É algo que só pode ser imaginado numa situação extrema e não-humana a qual chamamos de situação infernal. E por isto mesmo é que se chama a morte da alma.

Ora, precisemos mais um pouco o que seria essa morte da alma. O cristianismo não é muito explícito quanto a isto, e nem nos fornece muitas imagens a respeito. Mas nas doutrinas hindus e em algumas ocidentais muito antigas encontramos a idéia da metempsicose. Que é metempsicose? O sujeito morre e reencarna num outro tipo de ser, reencarna como lagartixa, como barata, como hipopótamo. Mas evidentemente nem todos os hipopótamos, lagartixas e mosquitos são reencarnações de pessoas. Existem mosquitos normais, que nasceram como mosquitos, e há outros que não são apenas mosquitos, mas são ex-pessoas. Ora, isto evidentemente é uma imagem, é uma metáfora para designar um estado inferior. Inferior, ínfero ou infernal é a mesma coisa, quer dizer, há um rebaixamento do estatuto ontológico do ser, ele é menos existente do que ele era antes. É por isso que isto não pode ser explicado psicologicamente porque, psicologicamente não temos o dom de inexistir ou de existir menos. Qualquer coisa que se passe em nossa psique pressupõe nossa existência tal e como ela está aqui agora, e até para ficarmos malucos, ou esquizofrênicos, precisamos existir e estar aqui. Mas aqui se trata não de um estado psicológico, e sim de um estado ontológico no qual nossa existência diminui, no qual ela é menos intensa, no qual existimos menos, no qual nos tornamos duvidosos, evanescentes. Então, o sujeito que se reencarnou como mosquito não é propriamente real enquanto mosquito, porque algo de homem ele ainda tem, que sobrou da existência anterior. Ora, o que é que ele tem de homem? Ele tem todas as diferenças entre mosquito e homem. Foi isto que sobrou nele de homem. Sua hominidade residual consiste em tudo o que separa o mosquito do homem. Tudo o que um homem pode fazer e que um mosquito não pode fazer ele conserva-se nele como informação de carência, e é por isso que a condição de mosquito é uma condenação para ele. Ele não tem somente as potências do mosquito, tem todas as impotências que o separam do poder humano.

Essa descrição é uma figura de linguagem, uma imagem, evidentemente, uma imagem até contraditória, mas é difícil conceber um sofrimento maior do que esse.

Em Dante, na porta do inferno, há um demônio que tem linguagem mas não sabe falar em língua humana. Podemos imaginar isso de outras maneiras, por exemplo, podermos entender tudo o que estão dizendo, mas não podermos responder, entendemos a língua que os outros falam, mas tudo o que falarmos eles não entenderão. É uma imagem do inferno, e esta imagem é a de uma separação inconcebível.

Na religião grega não havia Céu, todo mundo ia para o inferno. Só os heróis viravam semi-deuses e subiam ao céu; eram pessoas especiais. Mas geralmente as pessoas iam para o inferno. Nesse inferno havia uma forma de existência diminuída, uma existência fantasmática, de sombra. (8)

Podemos imaginar a morte da alma sob milhões de formas; todas essas imagens são falhas. O que elas têm em comum é que elas descrevem uma coisa que é humanamente irrealizável, impossível nesta vida e terrivelmente má.

Então, entendemos que o problema sobre o qual René Descartes se debruçava, no fim das contas, poderia equacionar-se assim: “Como eu posso, por meios racionais e humanos, sem a ajuda de Deus ou da religião, precaver-me contra a morte da alma?” É este o verdadeiro problema de Descartes. E é por isso que o método falha, porque isso não é um problema filosófico, isso é um problema real, é um problema concreto, o que é o mesmo que dizer: um problema teológico – pois a religião não se constitui de conceitos e doutrinas, mas de realidades. Não há solução da dúvida metódica porque ela coloca um problema religioso e tenta resolvê-lo por meios puramente filosóficos; coloca um problema existencial, real, e tenta resolvê-lo por meios puramente conceptuais.

Assim, a solução da nossa pergunta mostra que a dúvida metódica é possível porque é possível conceber a morte da alma, mas ao mesmo tempo a dúvida metódica não pode funcionar como método filosófico porque não existe nenhum esquema pensante que possa prevenir a morte da alma, que possa defender-nos da morte da alma. Tem de haver, para isso, um algo a mais, porque a morte da alma é um fator extra-humano, (9) e, então, o ser humano evidentemente não vai poder abarcá-la com os seus instrumentos, e quem quer que entre nisso, ou vai cair na mão do diabo ou vai pedir socorro a Deus. Os que dizem que não fazem isto, como Husserl, no fundo estão se enganando a si mesmos. E este foi o grande drama de Edmund Husserl, porque ele tentou até o fim. Ele acreditava que a ciência, o saber, tinha um elemento interno sacro. Talvez até tenha, só que, então, não é o saber humano, é o saber divino que tem de ser colocado em nós como sabedoria infusa. E o método fenomenológico talvez possa produzir um acesso a esse conhecimento, mas enquanto método ascético, não apenas enquanto modelo conceptual. Ele pode nos defender, talvez, contra a morte da alma, porque, sendo um método ascético, ele nos fortalece espiritualmente. Mas esta defesa só pode se dar pela sua forma, não pelo seu conteúdo; o conteúdo filosófico não interessa. Se métodos ascéticos funcionam, isso acontece por motivos teológicos que não nos interessa investigar agora. Mas eles só podem funcionar se considerados enquanto métodos ascéticos, não enquanto puros métodos filosóficos. E se podem funcionar enquanto métodos ascéticos, então, a questão de funcionar ou não vai depender de potências supra-humanas as quais não controlamos. Porque nenhum método ascético do mundo tem funcionamento garantido, não podemos dizer que existe aqui ou ali uma fórmula infalível pela qual, por exemplo, você chama os anjos e eles são obrigados a vir. Isso não existe. Pode chamá-los, fazer tudo direitinho, e chega na hora o anjo diz: “Não, não vou”. Por quê? Porque existe o livre arbítrio de Deus, ora!

Então, se Descartes cria a dúvida metódica, não é só para fundamentar o conhecimento científico, mas ele o faz na esperança de defender a alma humana, por meios filosóficos, contra a morte da alma e, portanto, contra o demônio. E ele fracassa exatamente porque a luta aí é desproporcional. Agora, aqui é que temos de nos perguntar: “Mas como que, durante três séculos, a filosofia insiste neste mesmo caminho, que é tão obviamente inviável?” Ela insiste, primeiro, porque ninguém percebeu que é um problema teológico, segundo, porque se alguém percebeu que é um problema teológico, ainda assim tinha a tentação de que, por meios racionais e humanos, pudesse dominar a situação, pudesse provar de certo modo que, sem a ajuda de Deus, poderia ser mais poderoso do que o demônio. Mas se entramos nesse esquema de disputar poder com o demônio e no mesmo instante o meio que usamos consiste em nos entregarmos ao demônio — ou seja, eu me exponho à morte da alma para provar que o demônio não me mata –, aí já entramos numa armadilha sem saída, porque a única saída é aquela que Descartes encontrou: Deus. Não deixa de ser interessante saber que Edmund Husserl, embora jamais falasse sobre isso, era um homem crente, era um judeu convertido ao protestantismo, rezava todo dia, lia a Bíblia, e é por isso que ele agüentava essa brincadeira fenomenológica. Se não, não teria agüentado. Descartes também era crente, era um carola, e é por isso mesmo que agüentou brincar de dúvida metódica sem ficar maluco. Por quê? Porque ele talvez soubesse que no fundo sempre restava um Deus ao qual ele poderia pedir socorro no momento decisivo, e deste Deus ele nunca duvidou um só instante.

Ou seja, o ciclo moderno, tão aparentemente irreligioso, todo ele se fundamenta num problema teológico que só encontra solução teológica, e todo ele se constrói por um método lógico que, excluída a referência a Deus, se torna ilógico no mesmo instante.

Esta análise, pelo que sei, nunca foi feita antes. E depois de tudo explicado, é o caso de perguntarmos: “Mas como não perceberam antes?” Se tivessem percebido já teriam parado com essa brincadeira antes, e entenderiam que a dúvida metódica não é o caminho da filosofia racional. O caminho é o contrário. O caminho é o da reflexão completa, que não nega o conhecimento – nem hipoteticamente –, mas o reafirma. É aquele que aprofunda o conhecimento, assumindo que tem conhecimento: Eu sei, e eu sei que sei; e se eu sei que sei, eu sei que sei que sei; e assim sucessivamente. A cada nova conjunção que que pusermos aqui, estaremos assumindo mais ainda o conhecimento. Este é o método que denomino: “Método da crença metódica”; ou seja, trata-se de acreditar naquilo que sabemos, partindo de coisas simples que sabemos, como por exemplo: eu sei que eu estou aqui, eu sei que eu vim aqui por um motivo, eu sei que eu estou falando português, eu sei que foi alguém que me ensinou português etc. E assim chegamos a descobertas fantásticas. Por exemplo (e isto foi Eugen Rosenstock quem ressaltou), eu sei que eu tenho um eu. Mas como é que eu sei que eu tenho um eu? Antes de eu me chamar a mim mesmo de “eu”, alguém me chamou por algum nome. Então, de certo modo esse eu só despertou em mim na hora em que me chamaram. Se ninguém fala comigo, esse eu vai ficar lá guardado, e eu nunca vou saber que o tenho. Portanto, seria um eu em potência apenas. Então, longe de o eu poder ser o fundamento do conhecimento, ele, pelo simples fato de poder pronunciar-se, exige um outro. Geralmente é nossa mãe a primeira pessoa que fala conosco, isto também nos indica que o nome pessoal pelo qual nos chamam é um dos fundamentos da nossa condição humana, e que o simples fato de termos um nome, de sermos chamados por ele, nos abre possibilidades que estão infinitamente acima das possibilidades naturais. Porque somos um eu e porque temos um nome, podemos ter história, podemos ter linguagem, podemos ampliar nosso círculo de concepção infinitamente além da duração da nossa vida biológica e infinitamente além do espaço físico que ocupamos. Por isso o nome é uma coisa sagrada, por isso há o batismo, e por isso dar um nome é uma coisa séria. E é por isso também que o nome pode ser uma profecia, e vemos tantas e tantas vezes pessoas terem um destino que é o seu nome. Mas só percebemos isso na hora em que o sujeito morre, vemos a sua vida inteira e dizemos: “A vida dele foi exatamente o seu nome”. Nomen est omen, “nome é profecia”. Um dia fazemos essa experiência. Como é que isso acontece? Isso acontece porque lhe foi dado um nome, e esse nome, de certo modo, é uma definição do que esperam dele, esse nome é uma cobrança. E é por causa desse nome que temos um eu; então, ter um eu é uma honra insigne, é o que dizia Buda: “Um nascimento humano é uma grande honra.” Você poderia ter nascido como mosquito, como barata, como lagartixa, como pedra, mas nasceu como humano; então, tem direito a um nome e tem direito a um destino, tem direito a um futuro. E tem até direito a questionar tudo isso.

A conclusão final disto tudo é que o problema central do cartesianismo é um problema teológico que se ignora a si mesmo. Não pode ter solução pelo método cartesiano porque, por definição, um problema teológico que se refere a um destino post mortem deste indivíduo concreto em particular não pode ter solução filosófica geral, e quem quer que se coloque este problema do fundamento absoluto do conhecimento, ou vai ter de procurar esse fundamento na intensificação do conhecimento ou, então, se for procurá-lo na negação e na dúvida metódica, vai chegar a um ponto em que vai ter de desistir e pedir socorro a Deus.

Com isto encerramos o nosso estudo do cartesianismo. Na história da filosofia há muitos filósofos que escaparam desse problema, como, por exemplo, Hegel, que instintivamente percebeu que a dúvida metódica era um buraco sem fundo e fugiu dela. Mas isto também quer dizer que ele não entendeu o problema, ele só viu a encrenca de longe e não quis saber dela. Ora, mas isso também não é legítimo, porque quando Hegel começa a pensar já havia dois séculos de cartesianismo nas suas costas, então não é legítimo ele simplesmente desprezar o problema. Não se pode superar um filósofo ignorando o que ele disse, é preciso enfrentar-nos com ele de algum modo. E Hegel simplesmente diz que vai mudar de assunto, e muda. O que é que acontece com ele? O principal seguidor dele, que é Marx, muda de assunto de novo! Hegel diz: “Aqui vamos descrever toda a dialética com a qual o espírito se transforma em realidade histórica etc.” Isso é verdadeiro ou falso? Marx diz: “Não interessa, o que interessa aplicar esse esquema à luta de classes e fazer a revolução socialista.” E a partir daí só se estudou Hegel nessa perspectiva. Assim, tudo o que Hegel disse foi anulado pelo simples fato de ele ter anulado a filosofia que recebeu como legado das gerações anteriores. Não há começo novo em filosofia, não há começo novo em nada, ninguém começa nada do zero. Será que a mesma crítica não poderia ser feita a Descartes? Certamente. Ninguém consegue começar a vida do zero. Começo do zero, apago tudo, ou seja, já não sou responsável pelo meu passado, os atos cometidos não vão desencadear nenhuma conssqüência, não tenho mais credores, ninguém espera mais nada de mim — ora, isso não existe! A verdadeira coragem não é recomeçar a vida do zero, isto é uma fuga, é uma covardia; começar tudo do zero significa que não estamos agüentando a situação e fugimos, mas, na verdade, esses problemas todos continuam pesando sobre o nosso destino. Então, começa uma falsa biografia. A verdadeira coragem está em assumir tudo, e periodicamente reconquistar nosso passado, dizendo que ele foi nosso mesmo: “Fi-lo porque qui-lo” — para usar noutro contexto o solecismo humoristicamente atribuído ao ex-presidente Jânio Quadros — é a base da moral e do autoconhecimento.

1. A rejeição generalizada da “filosofia da consciência” não deve nos iludir. Uma rejeição não é necessariamente uma superação, e entre a tradição que vai de Descartes a Husserl e os desenvolvimentos posteriores de uma filosofia supostamente livre da “prisão da consciência”, o que se observa é uma assustadora queda de nível. A “filosofia da consciência” tem de ser superada, sim, mas ainda não o foi, e este livro pretende indicar precisamente o único caminho possível de uma superação efetiva, não limitada a protestos e declarações de intenções.

2. Há um aspecto que não examinei ali, mas que tem sua importância. A pura e simples suspensão do juízo não pode ser identificada com a dúvida: ela é antes uma superação psicológica da dúvida mediante um distanciamento da pergunta.

3. Neste sentido: […] Pelo el hombre vive de verdades; admitir cualquier verdad, por relativa que sea, es reconocer que Intellectus aedequatio rei; la mera afirmación ‘esto es esto’, ya presupone el principio de la unidad de conocimineto y ser […].BURCKHARDT, Titus. Ciencia moderna y sabiduría tradicional. Madrid : Taurus, 1979, p. 102. (N.R.)

4. É claro que as palavras também nos resistem, mas sua resistência é mais sutil e só a sensibilidade literária treinada a percebe. Não seria errado dizer que a capacidade literária consiste, em última análise, em consciência das dificuldades que a linguagem opõe ao nosso intuito de usá-la para a auto-expressão, a descrição do mundo exterior e a ação sobre os demais seres humanos. Para o escritor, sua língua de expressão é um ente real, dotado de identidade e quase que de vontade própria, com o qual ele tem de entrar em acordo para que consinta em servi-lo. A língua, para o escritor, é uma realidade objetiva, distinta e às vezes hostil em relação aos estados interiores que ele quer expressar com ela, ao passo que no não-escritor, em geral (e ressalvadas as exceções pessoais e profissionais), língua e estados interiores se confundem numa mescla nebulosa.

5. Não apelemos preguiçosamente, neste ponto, ao “eu transcendental” de que falariam Kant e Husserl. Primeiro, porque ele é apenas o ponto de observação mais privilegiado e mais poderosamente iluminante para o qual me retirei, sem sabê-lo, no instante em que imaginava recuar para as trevas. Segundo, porque a mesma operação que se fez com o eu cognoscente natural se pode repetir com o eu transcendental — e depois com quantos eus transcendentais se suponha existirem por cima dele —, sempre com o mesmo resultado. (N.A.)

6. Nas artes, há o exemplo do maestro romeno Celibidache, que foi o maior maestro do mundo. Escutar algo regido por ele dá-nos a impressão de que faltavam notas em todas as outras execuções. Celibidache, nos ensaios, estudava nota por nota e fazia com que seus músicos as tocassem inúmeras vezes, para se certificar de que estas notas estavam exatamente no lugar certo com a tonalidade certa. Foi alguém que, com toda essa meticulosidade, nunca quis ser famoso no show business, e que nunca permitiu que vendessem suas gravações, as quais eram feitas somente para fins de orientação dos alunos. (N.A.)

7. Leszek Kolakowski, Husserl et la Recherche de la Certitude, trad, Philibert Secretan, Lausanne, l’Âge d’Homme, 1991.

8. Comentando a Ilíada, quando o eídolon de Pátroclo, aparece em sonhos a Aquiles, e se esvai como vapor quando este último tenta abraçá-lo, Junito de Souza BRANDÃO, explica que: “[…] no Hades, a psiqué, o eidolon, é uma sombra, uma imagem pálida e inconsistente, abúlica, destituída de entendimento, sem prêmio nem castigo […]”. (Mitologia grega. 1996, v. 1, p. 146). (N.R.)

9. Sobre o mesmo assunto, em outro lugar, o autor comenta: “[…] A doutrina cristã diz que não podemos dizer que o inferno é somente um estado, é preciso aceitar que o inferno é uma região, um lugar. Mas em que sentido seria um lugar? É um lugar deste mundo? Não pode ser, pois quando se fala deste mundo, se está falando na Terra, um lugar do universo. Então, é um legar onde você não está de qualquer maneira, mas, sim em determinado estado. Se é um lugar, não pode ser no sentido espacial-terrestre. É um lugar em outro sentido, e se é um estado não é um estado no sentido terrestre, é um estado do qual não se pode sair.

“Então, você foi remetido para o estado das possibilidades impossíveis e só pode existir como nostalgia de uma possibilidade perdida. Este é o maior sofrimento das almas do inferno, porque elas não mais verão a Deus. Acabou. Você se lembra do tempo em que podia ver, então, se lembra do tempo em que, sofrendo, tinha a esperança. Agora, você não tem mais a esperança, nem a recordação da esperança, mas tem uma ausência onde houve esperança, onde houve algo que você não lembra mais o que é, que se chama esperança. É uma dor infinita, algo que acontece fora da temporalidade, ou seja, você está no eternamente impossível.

“Por isso se diz que ‘o inferno é pior que o nada’, pois se fosse o nada, não aconteceria nada, mas acontece alguma coisa. No inferno, você quer ir para o nada, porque isso seria melhor. No inferno você quer morrer, no entanto, como é que uma possibilidade negativa pode morrer? Não pode. Essa possibilidade negativa é infra-existencial, de certa maneira […]”. (CARVALHO, Olavo de. Aulas referentes ao cap. V do livro Ancients beliefs and modern superstitions de Martin Lings. IAL, abr. 1999). (N.R.)

Identidade e univocidade

Apostila do Seminário de Filosofia

Rascunho para uma aula do Seminário de Filosofia

15 de junho de 1998

Este rascunho faz parte da obra em preparo, O Olho do Sol, onde compõe, na massa das 700 páginas redigidas até agora, a primeira seção do capítulo “Da metafísica dogmática à metafísica crítica – e vice-versa”. Será usado brevemente como base para a exposição oral no Seminário de Filosofia e por isto é divulgado aqui para notificação dos alunos. – O. de C.

1. Definições

1. Metafísica é a ciência das necessidades supremas que abarcam e subordinam todas as outras.

2. Necessidade (de nec cedo = não ceder) é ter de ser, não poder não ser. Necessidade é impossibilidade do contrário.

3. Metafísica crítica é a parte dessa ciência que aborda os problemas e as dificuldades que se apresentam ao investigador na busca das necessidades supremas.

4. Metafísica dogmática é a discriminação e afirmação das necessidades supremas, bem como o desdobramento de suas consequências imediatas para os diversos setores do conhecimento humano.

5. Incumbe à metafísica o estudo da possibilidade como tal e da impossibilidade como tal, bem como das diversas gradações e modos da possibilidade, que encaradas quantitativamente se chamarão probabilidades.

2. Axiomas

1. Proposição auto-evidente é aquela cuja contraditória não pode ser formulada numa proposição logicamente unívoca.

2. As proposições metafísicas puras, isto é, aquelas que expressam necessidades supremas, devem ser todas auto-evidentes.

3. Toda prova funda-se em princípios auto-evidentes.

4. Um princípio é auto-evidente ou não é. Não se pode simplesmente “tomar como” auto-evidente um princípio que não o seja. Dito de outro modo: não pode haver princípio hipoteticamente auto-evidente (embora possa, naturalmente, haver princípios hipoteticamente verdadeiros).

5. As condições psicológicas que permitem captar a evidência de um princípio podem variar de homem para homem, portanto o sentimento de certeza nada tem a ver com a auto-evidência.

3. Primeiro enunciado do princípio metafísico supremo, ou Princípio da Integridade.

1. Todo sujeito de uma proposição, na medida em que possa ser também sujeito de uma ação ou objeto de uma ação realizada por outro sujeito também capaz de ser objeto de ação, é um.

Os sujeitos ditos meramente lógico-formais, ou ideais, não são objetos de ação, nem mesmo da “ação” de ser pensados; pois o que se pensa é o seu conceito apenas, ou o termo que o designa, e não o objeto como tal.

Sujeito impossível é aquele cuja definição implica sua inexistência, não apenas de maneira lógica, mas auto-evidente; isto é, um sujeito é impossível quando a afirmação de sua existência não pode ser logicamente unívoca.

2. Logo, todo sujeito é íntegro, e tudo quanto se oponha real ou hipoteticamente à sua integridade exige, real ou hipoteticamente, a sua supressão.

3. A supressão tem duas formas: 1ª negação, 2ª, redução.

4. A negação pode ser terminante ou condicional. Negação terminante é aquela que priva o sujeito, real ou hipoteticamente, da possibilidade de ser sujeito de ação ou paixão. Negação condicional é aquela que, real ou hipoteticamente, priva o ser de ser sujeito de algumas ações ou paixões (determinadas ou indeterminadas).

5. A redução tem duas formas: 1ª redução a seus elementos, ou redução analítica; 2ª, redução a outro sujeito, ou redução sintética.

6. Sujeito absolutamente necessário é aquele cuja definição mesma exclua, de maneira auto-evidente, sua redução analítica ou sintética. Dito de outro modo: é aquele cuja redução analítica ou sintética não possa ser enunciada numa proposição logicamente unívoca.

4. Das proposições auto-evidentes

1. O princípio de identidade A = A é auto-evidente, não porque tal nos pareça ou porque tenhamos um sentimento de certeza de que é auto-evidente, mas porque sua contraditória, A ¹ A, tem duplo sentido: se A ¹ A, o sujeito da proposição não é igual ao seu predicado, mas, sendo a proposição reversível — o predicado tornando-se sujeito, e o sujeito predicado —, temos então dois sujeitos diferentes, que são ambos sujeitos da mesma proposição: A1 ¹ A2. Logo, a sentença A ¹ A não é unívoca e não pode ser unívoca, donde se patenteia que A = A é auto-evidente.

2. A objeção tola de que essa demonstração por sua vez dá por pressuposto o princípio de identidade cai ante a verificação de que a objeção também o dá por pressuposto. O propósito aliás não é aqui “demonstrar” o princípio de identidade mas sim demonstrar a impossibilidade de sua negação unívoca. Se na antiga lógica se dizia que uma proposição auto-evidente nem requer nem admite provas, era isto o que no fundo se queria dizer, sem chegar a dizê-lo, talvez por não havê-lo percebido claramente: Não há nada a objetar ao princípio de identidade, a não ser proposições de duplo sentido, isto é, sem sentido.

3. Portanto, se não há demonstração lógica de um princípio auto-evidente, há, sim, da impossibilidade da sua contraditória. Isto aplica-se a todos os princípios lógicos e metafísicos.

5. Que o Princípio da Integridade é auto-evidente

1. Ação é mudança de estado no tempo e/ou no espaço.

2. Adoto provisoriamente a definição do tempo como forma das sucessões e do espaço como forma da simultaneidade, a que voltarei mais adiante.

3. Estado é etapa de mudança.

4. Só há três tipos de mudança: a mudança de estado ou as duas reduções.

5. A mudança de estado subentende a permanência do sujeito.

6. A redução analítica subentende que as partes pertencem a um mesmo sujeito.

7. A redução sintética real subentende que aquele em que o sujeito foi absorvido não fosse ele.

8. A redução sintética hipotética ou subentende a possibilidade da redução sintética real ou é impossível.

9. Logo, todo sujeito que é objeto de ação (isto é, sujeito de paixão) é um e o mesmo, não muitos ou outro.

10. A ação consiste em mudar um outro ou mudar-se a si mesmo, ou ainda em mudar ao outro mudando-se também a si mesmo.

11. As três hipóteses subentendem a unidade e mesmidade do sujeito, conforme já demonstrado nos itens de 1 a 9. Se o sujeito que muda o outro não muda de estado, fica o mesmo. Se muda de estado, é o mesmo em outro estado. Logo, o sujeito de qualquer ação é um e o mesmo.

12. Estas proposições são não apenas logicamente certas mas auto-evidentes: suas contraditórias não são unívocas. Vejamos: A1 muda para o estado A2. Se o sujeito no estado A2 não é o mesmo A do estado anterior, então não foi A1 o sujeito de mudança; se, inversamente, o estado A2 não se refere ao mesmo sujeito A, então A2 não é predicado da proposição referente à mudança de A1. É impossível decidir se a negação da continuidade de A de A1 para A2 diz que não houve a mudança ou que o sujeito foi outro. A negação é portanto ambígua, ou equívoca. Não tem sentido. Logo, a unidade do sujeito da mudança (sujeito da ação ou da paixão) é auto-evidente.

6. Que não há auto-evidência hipotética

1. Para que uma evidência fosse hipotética, seria necessário que sua contraditória pudesse ser admitida como hipotética também.

2. Mas a contraditória de uma evidência é ambígua, logo sua formulação não conteria somente a negação da evidência e sim também sua afirmação.

3. Logo, a evidência não pode ser hipotética. Ou uma proposição é evidente, ou não é. O critério da impossibilidade da contraditória unívoca resolverá todas as dúvidas que se apresentarem.

7. Que o auto-evidente é necessariamente verdadeiro

1. Não podendo ser hipoteticamente verdadeiro, o auto-evidente só pode ser taxativamente verdadeiro.

2. Não tem sentido formular uma sentença como “x é hipoteticamente taxativamente verdadeiro”, que recairia nas objeções do item 2 do § 6.

3. Logo, não há alternativa senão aceitar a verdade da evidência.

4. A mente, no entanto, pode-se recusar a fazê-lo. Por que o homem pode recusar a evidência? Porque ele pode se recusar a inteligir. Porque o exercício da inteligência, no homem, é livre e não necessário, já que, se fosse necessário, o homem inteligiria tudo necessariamente, coisa que se vê, por experiência, que não acontece, mas que a definição mesma do homem, adiante, nos esclarecerá em seu sentido metafísico mais profundo.

5. A recusa da evidência pode ter significado moral e psicológico, mas intelectualmente nada significa e cai fora da esfera de interesse da metafísica.

8. Outro exemplo de proposição auto-evidente

1. “Eu estou aqui”: Esta proposição é auto-evidente sempre que proferida por um sujeito a respeito de si mesmo, não é tautológica e é unívoca.

2. Sua contraditória, “Eu não estou aqui” significa “Não sou eu quem está aqui”, ou “Este lugar não é aqui”? Sendo impossível decidir, a proposição é ambígua, e portanto “Eu estou aqui” é auto-evidente.

9. Que a prova de Sto. Anselmo é auto-evidente e necessariamente verdadeira

1. Um ser absolutamente necessário existe necessariamente, diz a prova de Sto. Anselmo.

2. A objeção de Kant é que o ser assim definido é definido por nós, portanto sua exitência é hipotética, fundando-se na suposição — feita por nós — de que o ser nela definido é absolutamente necessário.

2. A contraditória é “Um ser absolutamente necessário não existe necessariamente” ou “Um ser absolutamente necessario necessariamente inexiste?” Sendo impossível decidir, é proposição equívoca e não tem sentido.

3. Logo, a prova de Sto. Anselmo é auto-evidente.

4. Não havendo auto-evidência hipotética (7:1-5), a prova de Sto. Anselmo é necessariamente verdadeira.

10. Que não existem auto-evidências lógicas puramente formais, isto é, que não sejam também ontológicas

1. Verdade puramente formal é aquela que se verifica necessariamente no campo das relações lógicas, não porém necessariamente no campo da experiência. É, portanto, uma proposição hipotética.

2. Não existindo auto-evidências hipotéticas, nenhuma proposição auto-evidente é puramente formal.

11. O domínio da Lógica

1. Toda proposição lógica funda-se em última análise em princípios auto-evidentes. Por que então o domínio do lógico não coincide inteiramente com o do verdadeiro? É porque o conjunto das consequências logicamente necessárias, podendo partir de qualquer premissa e não de premissas auto-evidentes, não é auto-evidente, apenas logicamente consistente.

2. Identifica-se, portanto, com a extensão do que necessariamente possível, não necessariamente verdadeiro. Ou seja: é impossível que uma consequência lógica deduzida de princípios auto-evidentes seja impossível, mas nem todo o possível é necessário.

3. A lógica distingue-se pois da metafísica na medida em que esta afirma positivamente o necessário, ao passo que aquela apenas afirma apenas a possibilidade necessária.

4. A possibilidade necessária funda-se no necessário enquanto tal e não é um domínio independente, de vez que o “necessário hipotético” só existe a título de hipótese impossível. Ora, a lógica sem fundamento metafísico só poderia fundar-se no necessário hipotético e, portanto, ela própria só existe como hipótese impossível. A fragmentação das lógicas modernas deve-se precisamente à impossibilidade de reduzir as hipóteses impossíveis à unidade do necessário.
[Continua]

Apêndice: uma discussão no Fórum Sapientia

Reproduzo a seguir uma mensagem enviada ao fórum desta homepage pelo participante que adotou o pseudônimo de Villiers de L’Isle-Adam e a resposta que lhe dei. Essa mensagem foi que motivou a publicação do texto acima nesta homepage e a decisão de expor o assunto na próxima aula do Seminário de Filosofia. – O. de C.

Mensagem de Villiers

Prezados amigos,

Tenciono discutir, no presente tópico, algumas questões relativas ao célebre ‘princípio da não-contradição’ formulado por Aristóteles; para tanto, pretendo expor à consideração dos senhores um artigo sobre o supracitado tema, de lavra do notável lógico, matemático e filósofo polonês Jan Lukasiewicz (1878-1956), um dos expoentes, ao lado de Kazimierz Twardowski (1866-1938) e Stanislaw Lesniewski (1886-1939), da renomada escola de lógica que se formou nas universidades de Lvov e Varsóvia. O estudo de Lukasiewicz, “O Zasadzie Sprecznosci u Arystotelesa: Studium Krytyczne”, foi publicado originalmente 1910, podendo, no entanto, ser encontrado no número XXIV da Review of Metaphysics, traduzido por Michael V. Wedin sob o título “On the Principle of Contradiction in Aristotle: A Critical Study”.

Aristóteles, no Livro IV da Metafísica, apresenta o princípio da não-contradição de três maneiras distintas, que serão denominadas por Lukasiewicz como formulações ‘ontológica’, ‘lógica’ e ‘psicológica’. O esforço analítico do lógico polonês, todavia, irá se concentrar sobretudo nas formulações ontológica e lógica. Para o Estagirita, elas são equivalentes, tendo-se em mente que uma proposição, para ser verdadeira, deve estar conforme à realidade objetiva. As formulações ontológica e lógica seriam, portanto, verdadeiras pela circunstância de o mundo ser, metafisicamente, tal como é. Devemos ainda ressaltar que o princípio da não-contradição é, na perspectiva de Aristóteles, uma lei final, indemonstrável. Exigir uma demonstração, uma fundamentação última do ‘princípio’, seria incidir num retrocesso que não poderia deixar de ser infinito, incidir numa exigência que, pela própria natureza da questão em pauta, não poderia ser satisfeita. E, se existe algo que pode ser conhecido sem provas, que haveria de mais ajustado a essa espécie de conhecimento do que a lei da não-contradição, um princípio do qual é impossível duvidar ao pensarmos?

Com o propósito, todavia, de evidenciar a necessidade do princípio da não-contradição, o Estagirita propõe uma série de argumentos que, refutando a possibilidade da contradição na ordem do Discurso, procuram justificar o princípio. Lukasiewicz denomina tais argumentos como “demonstrações elênticas e apagógicas”, muito embora Aristóteles, deve-se sublinhar, jamais tenha pensado neste conjunto de deduções em termos de demonstrações ‘positivas’ do princípio. Parece evidente, a meu juízo, que o objetivo da estratégia de Aristóteles é o de comprovar que, admitindo-se a contradição, destrói-se o Discurso, rompe-se a possibilidade de comunicação racional, uma vez que os símbolos deixam de atuar como símbolos, não mais podendo refletir a Realidade no Discurso. Além disso, Aristóteles procura evidenciar, especialmente nas demonstrações apagógicas, as conseqüências absurdas a que somos levados quando negamos o princípio da não-contradição.

Não sendo razoável, e nem tampouco desejável, reproduzir aqui todos os passos da minuciosa análise de Lukasiewicz, gostaria de examinar, no entanto, as considerações mais relevantes que o lógico polonês extraiu de seu percurso argumentativo.

Em primeiro lugar, Lukasiewicz constata que o princípio da não-contradição não pode ser demonstrado com base em sua evidência; com efeito, a ‘evidência’ em si mesma não constitui critério seguro de verdade. Também resultaria inconseqüente, por outro lado, a tentativa de se derivar o Princípio a partir de nossa estrutura psíquica, uma vez que leis psicológicas apenas são suscetíveis de comprovação através do método experimental, e este não nos autoriza sequer a formular a Lei da não-contradição como princípio válido em primeira aproximação. Uma terceira possibilidade seria, então, procurar deduzir o Princípio da definição de ‘negação’ ou de ‘falsidade’. Se “A não é B” exprime, por exemplo, simplesmente a falsidade de “A é B”, para natural concluir que essa definição acarreta o Princípio. Contudo, nos diz Lukasiewicz, isto não ocorre na realidade: mesmo que aceitemos como correta a definição precedente de falsidade, nada impede que as proposições “A é B” e “A não é B” sejam ambas verdadeiras; apenas se impõe, como conseqüência, que a proposição “A é B” é simultaneamente falsa e verdadeira. A Lei da não-contradição envolve a noção de conjunção, e não decorre unicamente da definição de falsidade (ou negação). O lógico polonês nos chama a atenção para outra definição de ‘verdade’ e ‘falsidade’ que, de uma certa maneira, parece ser mais fecunda que a tradicional: a proposição “A é B” é verdadeira se corresponde a algo objetivo; falsa, em caso contrário. Similarmente, “A não é B” é uma proposição verdadeira se representa vínculo objetivo; falsa, caso tal fato não se dê. Levando-se em consideração tais critérios, nada impede ‘a priori’ que as proposições “A é B” e “A não é B” sejam ambas verdadeiras, desde que representem situações objetivas.

Lukasiewicz também observa que qualquer defesa do princípio da não-contradição deve, necessariamente, levar em conta o fato de que existem ‘objetos contraditórios’, como, por exemplo, o Círculo Quadrado de Meinong. Para tais objetos, claro está que o Princípio não é válido. Obviamente o lógico polonês não pressupõe que Aristóteles pudesse ter trabalhado com base em tais considerações, que fazem parte de um acervo de estudos que começou a se desenvolver apenas a partir de meados do século XIX, no esteio do florescimento da lógica simbólica. Entretanto, isso não nos impede de salientar a relevância intrínseca da observação de Lukasiewicz: a existência de ‘objetos contraditórios’ foi confirmada pelos desdobramentos recentes da lógica, particularmente pela Teoria dos sistemas formais inconsistentes. Podemos hoje atestar a existência de teorias lógico-matemáticas onde aparecem objetos contraditórios e que, por conseguinte, derrogam o princípio da não-contradição. Tendo em vista tais perspectivas, o Princípio não se mostra tão absoluto e intocável quanto poderia parecer à primeira vista. Aliás, Lukasiewicz afirma que, mesmo para Aristóteles, o princípio da não-contradição não poderia ser uma lei suprema, ao menos na acepção de que constitui pressuposição necessária de todos os demais axiomas lógicos. Citando célebre passagem de Aristóteles nos Analíticos Posteriores (An. Post. A, 11, 77a 10-22), o lógico polonês assevera que o seguinte silogismo seria válido, de acordo com os postulados do Estagirita:

B é A (e também não é não-A)
C, que é não-C, é B e não-B
_________________________

C é A (e não é também não-A)
O silogismo anterior é, portanto, válido, embora a lei da não-contradição seja violada. Meus parcos conhecimentos de silogística não me permitem verificar se, de facto, o silogismo proposto por Lukasiewicz é válido ou não no quadro da lógica aristotélica; no entanto, se o lógico polonês estiver correto, será imperativo aceitarmos a existência de leis válidas de raciocínio que independem do princípio da não-contradição.

A questão central a que agora chegamos pode ser apresentada da seguinte forma: existem ‘objetos’ em relação aos quais estamos certos da vigência do princípio da não-contradição? Em sua análise, Lukasiewicz irá destinguir três tipos de objetos: 1) os objetos reais; 2) as “abstrações construtivas”, livres criações do intelecto, como, por exemplo, os objetos da matemática clássica; 3) as “abstrações reconstrutivas”, que são conceitos elaborados para representar coisas reais.

No tocante às abstrações construtivas, paradoxos como o que Bertrand Russell (1872-1970) descobriu em 1901, ao considerar a questão do Conjunto de todos os conjuntos que não são membros de si mesmo, indicam que, na maioria dos casos, jamais teremos certeza de que não irão violar o princípio da não-contradição. No que concerne às abstrações reconstrutivas, que bem espelham o realidade objetiva, e aos objetos reais, eles parecem estar protegidos da contradição. Com efeito, parece haver certeza de que não existem contradições diretamente perceptíveis na Realidade, pois as negações correlacionadas a juízos de percepção não são elas mesmas perceptíveis, pelo menos em nossa experiência cotidiana. No atual estágio de nosso conhecimento, temos a tendência a admitir como correta a constatação de qualquer contradição ‘real’ só pode ser ‘mediata’, resultado de inferências. Por outro lado, no entanto, não podemos esquecer o fato de que, desde os primórdios da filosofia, é recorrente a tese de que o ‘movimento’ e a ‘mudança’ necessariamente envolvem contradições (a este respeito, podem ser mencionadas as aporias de Zenão de Eléia). Muito embora essas dificuldades lógicas tenham sido sempre eludidas por meio de esquemas teóricos, posto que decorrem de inferências, não parece haver nenhum prova definitiva de que não existam contradições no ‘mundo’ objetivo. Portanto, não existe, também, qualquer prova positiva e inequívoca de que o princípio da não-contradição possui plena vigência em relação aos objetos reais e abstrações reconstrutivas. Contudo, na medida em que podemos verificar que o Princípio é ‘útil’, devemos encará-lo apenas como suposição ou hipótese que norteia e confere forma à indagação científica, regulamentando certas teorizações do Real.

Para Lukasiewicz, pois, o princípio da não-contradição carece de qualquer dignidade lógica a priori; possui, não obstante, um valor ético e ‘prático’ sumamente importante. Como enfatiza o lógico polonês, se não aceitássemos a validade do Princípio para as atividades ‘práticas’, estaríamos sujeitos a toda sorte de problemas. Assim sendo, para a vida ordinária (atividades comunicativas, sociais, etc.), como Aristóteles já havia assinalado, o princípio da não-contradição constitui pressuposto fundamental. Todavia, é necessário sublinhar que imprescindibilidade prático-ética do Princípio é matéria totalmente distinta de sua validez lógico-teórica. A conclusão de Lukasiewicz a este respeito não deixa de ser assaz perturbadora: a necessidade de se reconhecer como ‘válida’ a lei da não-contradição é tão somente um sintoma da imperfeição ética e intelectual do Homem. O lógico polonês sustenta que Aristóteles percebeu a importância prático-ética do princípio da não-contradição, mesmo que tal constatação não tenha sido claramente formulada em sua obra. Numa época em que o declínio político da Grécia já era patente, o Estagirita tornou-se o fundador e principal promotor de um trabalho filosófico-científico sistemático e de grande rigor. É muito provável que o filósofo grego, especula Lukasiewicz, encarasse todo esse esforço intelectual como um instrumento poderoso para a futura grandeza de sua nação. A negação do Princípio, por conseguinte, deixaria livre o caminho para toda a sorte de falsidades e incertezas, abalando as então frágeis estruturas da investigação científica. Por esse motivo, observa o lógico polonês, Aristóteles voltou-se contra os oponentes do Princípio de modo fervoroso, com uma veemência de linguagem pouco habitual em sua obra. Numa analogia singular, Lukasiewicz nos diz que o filósofo grego combatia pelo princípio da não-contradição como se duelasse por bens pessoais.

Concluindo seu artigo, Lukasiewicz argumenta que Aristóteles, talvez justamente por ter percebido a fraqueza e a inconsistência de seus postulados, mas tendo plena consciência da importância ‘prática’ que ela envolvia, acabou por estabelecer o princípio da não-contradição como fronteira última que não poderia ser ultrapassada por um discurso racional.

Encerrando está já demasiado longa mensagem, devo dizer que, na qualidade de mero principiante no estudo de Aristóteles, não possuo os predicados necessários para asseverar a pertinência das posições de Jan Lukasiewicz a respeito da lógica aristotélica; se não posso afiançar, no entanto, a veracidade de suas críticas, gostaria de louvar, em primeiro lugar, a invulgar sutileza conceitual da engenharia analítica desenvolvida pela lógico polonês, bem como a criatividade e ousadia de suas proposições. Gostaria de ter a oportunidade de discutir estas idéias com estudiosos abalizados de Aristóteles, e gostaria, sobretudo, de saber como o professor Olavo de Carvalho, sendo um profundo conhecedor da filosofia aristotélica, avaliaria o pensamento de Lukasiewicz.
Cordialmente,

Villiers de L’Isle-Adam

Resposta de Olavo de Carvalho

Prezado amigo,

Você e os demais participantes estão elevando este fórum ao nível do mais importante debate cultural brasileiro dos últimos anos, talvez o único importante, se por esta palavra se entende aquilo que toca em problemas essenciais e não aquilo que é tocado pelas graças da mídia iletrada.

Quanto às suas observações, não tenho em mãos no momento o famoso estudo de Lukasiewicz, nem posso dar a resposta extensiva que elas merecem. O que posso dizer por enquanto é que:

O princípio de identidade é de ordem metafísica e sua contestação, para valer, tem de ser metafisicamente válida. A de Lukasiewicz não é nem pretende ser. Ela pretende apenas demonstrar que na lógica construtivista podemos lidar com objetos contraditórios (coisa que Aristóteles não apenas não contesta, mas afirma resolutamente), e obviamente todos os objetos dessa lógica existem apenas como definições hipotéticas e não têm o mínimo alcance metafísico. A possibilidade de construir raciocínios contraditórios é a base mesma da dialética de Aristóteles, mas Aristóteles jamais cairia na esparrela de confundir a ratio arguendi com a ratio essendi. Quando Lukasiewicz afirma que “existem” objetos contraditórios, a palavra “existência” é aí usada para designar a mera possibilidade de uma coisa ser logicamente construída. É um erro tão primário que não mereceria atenção, se não fosse pela elegante linguagem lógica que o encobre.

Toda a argumentação de Lukasiewicz destinada a impugnar o princípio de identidade subentende a identidade das proposições e conceitos que a expressam. Este é o típico caso de uma regra geral que tenho adotado como critério para o exame crítico de teorias filosóficas: quando o fato mesmo de uma teoria ser enunciada desmente o conteúdo dessa teoria, a teoria pode ser descartada como simples caso de confusão mental. Quando Lukasiewicz afirma que as proposições “A é B” e “A não é B” podem coexistir logicamente, ele não apenas não distingue entre coexistência “in re” e “in verbis” (distinção que está fora do alcance do puro construtivismo), como também subententende como constantes e idênticas a si mesmas as definições de A e de B, pois, se lhes aplicasse o mesmo princípio da coexistência dos contraditórios que acaba de afirmar, não teria duas e sim quatro definições, e assim por diante indefinidamente, o que mostra que sua pretensa contestação do princípio de identidade dá por pressuposta a validade desse mesmo princípio, apenas mostrando que sua negação é pensável, porém pensável, precisamente, como autocontradição que se automultiplica indefinidamente.

Toda essa confusão nasce do mau hábito de cortar as ligações da lógica com a ontologia, obtendo uma lógica de pura invenção construtivista da qual se tiram, em seguida conclusões que pretendem ser ontologicamente válidas, introduzindo subrepticiamente no discurso termos como “existência”. Tudo isso é de uma burrice sem par, aliada a uma formidável malícia.

Dizer, por exemplo, que a noção de identidade envolve a noção de conjunção, é coisa válida em pura lógica construtivista, mas não em metafísica. Na identidade de um ser consigo mesmo não há conjunção nenhuma. A conjunção entra em jogo apenas na construção da proposição lógica que traduz essa identidade para o microcosmo verbal. Atribuir, retroativamente, à identidade do ser as qualidades formais da proposição que o designa é o mesmo que pentear, em vez dos próprios cabelos, a sua imagem no espelho.

É verdade que Lukasiewicz admite a distinção entre validade lógica e ontológica, mas, na medida em que ele admite também uma lógica não-ontológica que ao mesmo tempo possa servir de critério de veracidade nas ciências, essa admissão fica sem efeito, de modo que ele pode continuar a tirar impunemente conclusões ontológicas de puros formalismos construtivos. Enfim, é uma confusão dos diabos.

Os demais esclarecimentos que posso dar a respeito estão no texto sobre “Identidade e univocidade” – trecho do meu livro em preparo “O Olho do Sol” – que eu pretendia divulgar mais tarde, mas que esta discussão me sugere ser oportuno descarregar na minha homepage agora mesmo.
Um abração do

Olavo de Carvalho

Neuroses do Leste Europeu

por Andrei Pleshu

Ministro das Relações Exteriores da Romênia
Diretor do New Europe College de Bucareste

15 de junho de 1998

Tradução de Pedro Sette Câmara e Olavo de Carvalho

 

Andrei Pleshu

Andrei Pleshu é, no ambiente rígido e artificial da diplomacia mundial, algo como a presença solar de uma criança num asilo de velhos. A inteligência prodigiosa, a cultura, vivacidade, a sinceridade, o inesgotável senso de humor, o tom direto e franco com que diz o que ninguém diz, já fizeram desse representante de um país pequeno e marginal o centro natural de muitos encontros internacionais de ministros de Estado. Famoso e respeitado como intelectual desde antes de assumir o Ministério das Relações Exteriores, Pleshu é autor de livros onde a profundidade da meditação filosófica transparece através de um estilo acentuadamente poético de escrever. Nas conversações pessoais, esse homem volumoso com barba e voz de profeta passa com a maior naturalidade de uma discussão sobre a metafísica de Lucian Blaga às piadas brasileiras de papagaio, o único item que posso me gabar de ter acrescentado à sua erudição. A conferência “Algumas Neuroses do Leste” foi pronunciada em 15 de junho de 1998 no Stifteverband für die deutsche Wissenschaft em Wiesbaden e publicada no Romanian Journal of International Affairs, vol. IV, Special Issue 1, 1998. — O. de C.

Um dos passatempos prediletos dos intelectuais é a neurose. Por neurose entendo a capacidade de descobrir em qualquer situação um componente irritante, uma pitada de veneno. Todo intelectual verdadeiro tem a vocação para a insatisfação, o talento de sentir-se mal. Não faz sentido, agora, ficar perguntando se sempre foi assim. O que é certo é que é assim na era moderna. Nos antigos países comunistas, a neurose intelectual tem uma sintomatologia específica, da qual posso falar com alguma competência, não na condição de analista distanciado, mas de paciente crônico. O curioso é que a grande virada de 1989 intensificou as neuroses, em vez de curá-las. Antes, as frentes eram bem definidas: de um lado, o poder totalitário; de outro, o intelectual resistente. De um lado, os campos de concentração socialistas enquanto variante mundana do Inferno; de outro, o “mundo livre” enquanto variante mundana do Paraíso. Não havia nuances, e onde não há nuances a neurose está sob controle. Porém, desde 1989 vimo-nos sufocados sob uma multidão de nuances. As liberdades adquiridas anestesiam o sentimento de fatalidade, estimulando, ao contrário, a euforia do possível. O possível significa a oportunidade de escolher. E quando um intelectual tem de escolher alguma coisa, aí a neurose está por perto.

Primeiro, descobrimos que, se o universo totalitário tinha sido nosso grande infortúnio, nosso drama histórico, tínhamos pelo menos conseguido nos adaptar: ele era para nós uma face do destino e um fato da vida. Do nosso destino, da nossa vida diária. Em outras palavras, identificávamo-nos com aquilo que vivíamos, como você se identifica com a sua dor de dentes, com a sua insônia, com o seu instinto de sobrevivência. Isto é o que explica a existência de saudosistas, isto é, daqueles que falam da experiência da ditadura no mesmo tom em que nossos avós falam da guerra, da prisão ou da miséria: as más recordações misturavam-se suavemente com uma espécie de consciência heróica e com a satisfação de tê-las superado. Mais ainda, elas eram a substância e o pano-de-fundo da nossa juventude. Movíamo-nos à vontade num ambiente adstringente, que tonificava nosso sentimento vital. Então a resistência, mais ou menos eficiente, mais ou menos ilusória, era em si mesma uma volúpia. Em suma, você podia viver e enganar a si mesmo com a idéia de que tinha uma vida difícil mas interessante. No entanto, agora, depois da “grande mudança”, você é obrigado a descobrir o lado sombrio da liberdade (geralmente chamado “problemas de transição”). É o tédio que vem de não ser mais incomodado pela censura, de ter perdido o “inimigo” tradicional; o tédio que vem da banalidade das viagens, da multiplicação de tentações, de mistura com a falta de recursos — que vem, enfim, de todas aqueles inconvenientes que normalmente acompanham os sonhos que viram realidade. A normalização é soporífera. Decepcionante. O que Timothy Garton Ash chamava de “os benefícios da adversidade”, a utilidade da perseguição, cai no esquecimento. Em lugar dela, agora você tem de descobrir as inconveniências da escolha e da responsabilidade. Os intelectuais confrontam-se com um novo dilema que produz novas neuroses. Quê devem fazer? Aproveitar a liberdade para finalmente fazer o que cada um quer ou adiar a realização das vocações para poder apoiar o esforço geral de reconstrução? Obviamente, qualquer das decisões é logo sentida como lamentável. O intelectual que fica à margem desse processo é tomado de culpa moral, e aquele que decide participar descobre a promiscuidade da política e a precariedade do seu talento pragmático. Ambos passam a ter insônia. O demônio cívico entra em conflito com o demônio espiritual. Qualquer tentativa de reconciliá-los seria suspeita de ingenuidade ou vaidade. Em outras palavras: ao invocar a necessidade de uma moralização da política ou o dever dos intelectuais para com a sociedade, a gente acaba caindo, no primeiro caso, numa inadequação utópica; e, no segundo, numa ambição hipócrita sedenta dos álibis mais nobres para um apetite carreirista dos mais banais.

No que diz respeito ao novo mundo que se abre diante do ex-campo de concentração socialista, não há dúvidas de que está cheio de virtudes e possibilidades tentadoras, mas sua constituição é fundamentalmente diferente do que tínhamos em mente. É um mundo melhor, mas é diferente do que imaginávamos. E não é ou não parece ser “melhor” em todos os aspectos. De qualquer modo, a relação entre o nosso mundo, ainda tonto com cinco décadas de totalitarismo, e o mundo confortavelmente instalado da Europa Ocidental, um mundo para o qual a democracia, o papel da lei e a prosperidade estão presentes diariamente, ainda não se consolidou da melhor maneira. Para cada um desses dois mundos, o “outro” é um apinhado de banalidades, uma mistura de falsas representações — incluindo vários Wunschvorstellungen (1) —, preconceitos e ignorância. A situação nos recorda o começo de um texto de Unamuno que diz que, quando Pedro e Juán conversam, na realidade há pelo menos seis pessoas conversando: o Pedro real e o Juán real, a imagem que Pedro faz de si mesmo e a imagem que Juán faz de si mesmo, e a imagem que Pedro faz de Juán e a imagem que Juán faz de Pedro. É isto o que acontece quando a Europa Oriental e a Europa Ocidental se encaram. Somos propensos a achar que o Ocidente é a solução absoluta de todas as nossas frustrações, o róseo inventário do que precisamos: liberdade, segurança, justiça e bem-estar social. Eventualmente admitimos que a perfeição não existe, que mesmo no Ocidente há alguns problemas, mas, em geral, qualquer tentativa de diminuir ou questionar o sucesso capitalista nos irrita, por nos fazer lembrar a retórica agressiva e deformante da ideologia partidária que distorceu nosso raciocínio durante décadas inteiras. Neste contexto, é inevitável que o menor desapontamento nos atire para os extremos. Quando a Terra dos Sonhos perde um pouco sua cor, quando rugas aparecem no rosto do anjo, o sonhador fica furioso. O Ocidente torna-se uma coisa satânica — o primo rico e impiedoso, o desumano a uto-satisfeito, o culpado por excelência. Aquele que nos entregou aos comunistas em 1945, e que agora nos examina tão detalhadamente com sua lente de aumento, que nos submete a testes desonrosos e nos trata com condescendência.

Por sua vez, o Ocidente começou tendo pena de nós (no tempo em que éramos fornecedores de sofrimento e dissidências), depois passou, no fim de 1989, por um breve episódio de entusiasmo fraterno (éramos heróis, estávamos rompendo as correntes, fazendo revoluções de sangue ou de veludo) e terminou por mostrar um ar polidamente constrangido com a nossa melancolia, a nossa impotência e o nosso atraso. O Oriente é o primo pobre e fracassado, além de cheio de pretensões. Ele não chega a ser um alter ego que falhou, mas é antes um aborto inútil. Aquele que precisa de ajuda sempre acaba ganhando ares antipáticos. O cidadão dos países “desenvolvidos” descobre, com alguma apreensão, que para “normalizar” a situação na Europa Oriental ele tem de abdicar de uma parte da sua própria normalidade. Por que ele deveria fazer isto?

Indubitavelmente, tanto a utopia quanto o ressentimento, tanto a pena quanto a raiva são reações inadequadas, que provavelmente só contribuirão para falsear a verdade dos dois mundos e impedir sua reunificação harmoniosa. O que a História, depois de 1989, trouxe de novo a esta relação? Para tornar as coisas mais simples, eu diria que passamos da inexistência de passaportes para a inexistência de vistos. Antes, o “mundo livre” estava pronto para receber você, mas o seu mundo, o “campo de concentração socialista” não deixava você sair, ou, se deixava, o fazia de maneira difícil, sob condições aviltantes. Agora, o seu mundo deixa você sair quando quiser. Ganhamos um dos direitos humanos fundamentais: o direito de ir e vir. Mas temos problemas com o mundo livre que, de repente, hesita em nos receber. O imigrante da Europa Oriental é uma calamidade. Não quero que pensem que estou reclamando de alguma coisa ou que não entendo os argumentos das embaixadas e consulados ocidentais. Quero somente mostrar que, às vezes, a “grande mudança” pela qual passamos consiste, ao menos na superfície, na troca de um bloqueio antigo por um novo. Um pouco melhor – porque é somente nosso atestado de identidade que está sendo censurado e não a identidade mesma. Nossa liberdade não está sendo suprimida: está sendo “dosada”.

Existe, no entanto, uma variante positiva a estimular as relações entre Oriente e Ocidente: não a reticência consular, mas a corrida para a integração européia, o restabelecimento dos padrões comuns. Tendo sido deixados, graças à suspensão comunista, fora das tendências gerais, agora nos é oferecida a chance de recuperar o horizonte de entrada na grande família da qual fomos excluídos arbitrariamente, tanto no plano político quanto no econômico, mas da qual nunca fomos excluídos geograficamente, historicamente e culturalmente. O problema da nossa integração européia coloca duas grandes questões: “Em quanto tempo?” e “Segundo qual critério?”. O ritmo depende, em grande parte, de nós. Mas e o critério? A primeira questão está diretamente ligada à nossa capacidade vital. Nós provaremos, ou não, que podemos ser atuantes, que ainda temos energia para nos recompor. O único inconveniente é a constante ameaça de um ciclo vicioso: não podemos nos integrar a menos que sejamos ajudados e não podemos ser ajudados a menos que pareçamos integrados. O problema não deixa de ser, de certa forma, de natureza técnica. Mas a segunda questão — a do critério — é pura metafísica. Porque o critério de integração depende da imagem que temos do espaço no qual desejamos nos integrar. A questão que se coloca, portanto, é nem mais nem menos que: “Que é a Europa?”. Espero não atiçar sua curiosidade ao ponto de fazer vocês esperarem por uma resposta. Não sou capaz de dizer o que vem a ser a Europa e, na verdade, não quero tentar descobrir isso agora. Mas posso dizer qual é a cara dela para aqueles que querem entrar. Mais precisamente, o quê em sua face nos parece um “modelo”, um “objetivo”, e uma exigência definitiva.

Vista de fora, a Europa é, antes de tudo, um lugar onde se fala amplamente o inglês: o acesso a este lugar impõe ao candidato um screening, é desejável que o processo de integração tenha um follow-up e que este processo seja all-inclusive. O candidato é assistido por certas catch-up facilities, e por um programa de tipo know-how. Apesar disso, nesta gigantesca anglofonia, flutua também um prestigioso termo francês: acquis communautaire. Ele se refere àquilo que os países desenvolvidos têm em comum, o resultado de séculos de evolução econômica, social e política: a riqueza da comunidade, a quintessência do progresso humano, a fundação da civilização pós-moderna – algo que vai das leis e instituições até o tamanho ideal dos ovos e tomates. Este é o horizonte que deve ser visado por todos os países candidatos. Conseqüentemente, o candidato é confrontado com um grande número de exigências, incluindo algumas q ue têm uma importância privilegiada: ecologia, direitos humanos, respeito pelas minorias, suspensão da discriminação étnica e sexual. Uma vez desenhada, esta mirífica paisagem termina por criar os sonhos, as frustrações e perplexidades do contemplador “não-integrado”. Primeiro, ele tem um problema de velocidade: como “apreender” tantos esplendores num tempo tão curto, com um painel de instrumentos tão pequeno e com uma estrutura psíquica convalescente. O fato é que você é confrontado com dúzias de prioridades a cada segundo. Tudo é prioridade. Em outras palavras, você tem somente prioridades. Nestas circustâncias, você só consegue ficar paralisado e gaguejar. Você tem de resolver ao mesmo tempo os buracos nas ruas, o vácuo legislativo, a poluição da água, a inflação, a pobreza, os direitos dos ho mossexuais, a proibição da propaganda de cigarros, a renovação das prisões, o que fazer com o lixo público, com o confessionalismo estreito, com a discriminação das mulheres, com a crise médica, a precariedade dos serviços, a reforma da polícia, a limpeza dos trens, a socialização dos prisioneiros, a educação dos ciganos, o renomeação das ruas, o financiamento para o teatro, a proteção aos animais, a preparação de novos passaportes, a modernização dos banheiros, a privatização, a reestruturação, o reaquecimento da economia, a reforma moral, a renovação de pessoal, a redefinição do sistema de educação, a troca de embaixadores, a consolidação da sociedade civil, o estímulo às ONGs, a renovação de hospitais, os menores abandonados, os pacientes de AIDS, as novas redes de máfia e muitas outras coisas. Tudo é obrigatório, tudo é urgente. Nesta pressa que não tolera hierarquias, cronogramas pacientes ou atrasos, surge inevitavelmente um problema de mentalidade. Confundido pelas cercas que tem de pular, o homem comum desenvolve uma espécie de indigestão ideológica. Ele não entende mais o que se espera dele, e se sente ameaçado, incompreendido, brutalizado. A Europa adquire, em sua mente, as aterrorizantes dimensões de um Obersturmbandführer, e a integração européia se lhe apresenta como uma corrida exaustiva. Dizem-lhe que a discriminação é má e ele se sente discriminado. Dizem-lhe que a tolerância é boa e ele se sente julgado com intolerância. Ele começa a associar, neuroticamente, princípios e valores heterogêneos. A exigência geral aponta para o nivelamento dos critérios. Tudo é igualmente importante. Ser europeu equivale a adotar uma plumagem multicolorida na qual as idéias, o dinheiro, os hábitos íntimos, as convicções religiosas e a qualidade da cerveja estão no mesmo plano. Surgem inocentes e cômicos malentendidos.

Quando o Parlamento romeno começou a discutir a abolição das leis que criminalizavam o homossexualismo, muitos camponeses, padres e comerciantes pensaram que o que estava sendo proposto era a legalização, isto é, a obrigatoriedade do homossexualismo… De qualquer modo, é difícil explicar ao desnorteado cidadão da transição que a entrada na Europa está diretamente ligada às suas preferências sexuais, ou à sua posição em relação às opções eróticas dos outros. E mesmo o cidadão mais educado não está livre de certas confusões. Ele achava que estava livre de tabus, mas descobre que tem de assumir novos tabus. Vejamos um exemplo: antes de 1989, era proibido ao intelectual romeno ler Mircea Eliade, porque a censura comunista proibia qualquer leitura de natureza religiosa. Agora, há uma tendência a que Mircea Eliade caia de novo sob suspeita, ficando difícil de citar ou mesmo até de ler, porque desta vez são trazidas à tona as orientações de extrema-direita que ele teve em sua juventude. Por outro lado, países que condenam severamente a inércia comunista de alguns governos do leste europeu toleram, ou quase mesmo aprovam, a reabilitação ou pelo menos a “desculpabilização” de alguns compromissos tipicamente comunistas de alguns de seus cidadãos. Confrontados com as dificuldades do ajustamento, sendo que citamos somente aquelas mais à mão, o homem do leste europeu está sempre sob a ameaça de uma depressão crônica. O que é, afinal, a Europa? Como Hippias em um dos diálogos da juventude de Platão, ele procura, incerto, por uma definição que decorra daquilo que a Europa mesma oferece a ele. “O que é o belo?”, pergunta-se o herói platônico. O belo é uma bela garota, responde primeiramente Hippias, misturando o atributo individual com o conceito. É assim que o aspirante à Europa pode se enganar: ele pode tomar um exemplo como uma definição, dizendo, por exemplo, “A Europa é um país europeu, como a França, ou a Alemanha, ou a Itália”. Provocado por Sócrates, Hippias continua suas explorações: o belo é o esplendor da matéria, do ouro. Um passo além, o belo é a harmonização, a funcionalidade, o cumprimento de um destino, o bem ou aquilo que provoca prazer desinteressado . Provocado pela União Européia, nosso homem do leste pode, ele também, arriscar uma série crescente de definições: a Europa é o dinheiro único, o mercado comum, a estabilidade de um modo de viver, o equilíbrio de direitos e deveres, a comunhão nos mesmos valores. Ao fim do diálogo de tipo platônico, os interlocutores concordam que é muito difícil definir o belo. As coisas terminam de maneira incerta. Todos nos encontramos hoje numa incerteza parecida: é muito difícil definir a Europa. E, para alguns, o problema é ainda pior, porque eles têm de, na ausência de uma definição, encontrar um jeito de integrar-se.

Apesar de todas estas complicações, podemos esperar — e temos razões para fazê-lo — que, num dado momento, num futuro não tão próximo, mas não tão distante, seremos reintegrados aos poucos grandes “clubes” dos quais queremos fazer parte. Mas, psicologicamente falando, confrontamo-nos, mesmo diante deste horizonte de esperança, com certas dificuldades. Os países da Europa oriental têm uma má relação com o tempo. Temos problemas com o passado, particularmente com o passado recente, que são cinqüenta anos de ditadura comunista. Temos problemas com o presente: na tentativa de trocar um sistema por outro, defrontamo-nos com todas as inconveniências dos períodos de transição, como a instabilidade, o baixo padrão de vida, a confusão de valores, a mudança radical de mentalidades por sobre um fundo desencorajador de inércia administrativa e social. Sim, e o que é menos comum, temos uma má experiência do futuro. Durante anos, a retórica do estado totalitário tentou compensar a ausência de soluções imediatas com sua supera bundância de um futuro “dourado”, garantido ideologicamente mas, de fato, indefinido. Diziam-nos que o hoje era difícil, mas que o amanhã seria maravilhoso, que a glória da atual geração consistia em seu desejo de sacrificar-se pelas gerações futuras. Esforço, paciência e esperança incondicional eram exigidas de nós. Agora, toda vez que mencionamos a União Européia e a Aliança Euro-Atlântica, nossos desejos são mais uma vez jogados para o futuro. Se tentarmos, conseguiremos – dizem-nos – atingir nossos objetivos dentro dos limites de um calendário incerto, que vai do ano 2000 a 2015 ou 2020. Esforço, paciência e esperança incondicional são, mais uma vez, exigências para garantir a felicidade de nossos netos. Obviamente, desta vez falam conosco de boa-fé, e as promessas feitas são mais realistas. Mas é inevitável que todo discurso a respeito de um futuro melhor nos traga “lembranças” muito desagradáveis…

As neuroses que descrevi até aqui são complementadas, no meu caso, com mais uma ainda. Num país que tem de encarar novas provocações, num momento de explorações e de crise de identidade, vejo-me numa situação que jamais imaginara para mim mesmo: a de Ministro das Relações Exteriores. Eu asseguro a vocês que é mais do que estimulante tentar fazer uma boa política no estrangeiro tendo um fundo de política doméstica tão precário. Você está como um comerciante que tem de fazer lucro tentando vender mercadorias virtuais.

Mas além dessa experiência há outra que talvez pareça ainda mais interessante: é o que um intelectual recém-chegado do lado de fora ao centro da vida diplomática mundial aprende a respeito dela. Amador (ainda), mas verde (ainda). Verde exatamente porque, sendo um amador, não teve ainda tempo para ser contaminado pela rotina da profissão. As palavras-chave que eu traria para caracterizar, do meu ponto-de-vista, a diplomacia contemporânea são aceleração, codificação e banalização.

Aceleração. O dia de trabalho de um diplomata é organizado, especialmente quando ele está em missão, segundo um horário impressionante. Num único dia de visita oficial, um ministro estrangeiro se encontra com um presidente (ou um monarca), um primeiro-ministro, dois ou três membros do governo (incluindo o Ministro de Relações Exteriores do país visitado), representantes da imprensa e da comunidade dos seus conterrâneos que vivem no país visitado, um grupo parlamentar, empresários, personalidades da vida pública etc.. A isto, some-se um café-da-manhã a trabalho, um almoço protocolar, um jantar e, às vezes, uma conferência… Tal programa não é feito dentro dos limites da escala humana. Os ritmos do homem normal, sua performance mental, suas capacidades físicas, não podem se adaptar por um longo tempo e em condições ótimas a um esforço desse tipo. A única solução é o estereótipo: você se mantém repetindo tenazmente a mesma mensagem, o mesmo sorriso, os mesmos gestos. Você é a vítima de um delírio mecânico. Você cruza – cada vez com mais velocidade e recursos cada vez mais débeis – um corredor previsível e anônimo. Cada conferência internacional traz outras, cada encontro começando com um rito circular, no qual os assuntos, os termos e as decisões já vêm prontos. Numa palavra, tudo isto junto poderia ser chamado de “diplomacia fast-food“. Talleyrand não teria sobrevivido a uma mecânica assim senão escolhendo entre a veleidade e a melancolia.

Codificação. As codificações – como já sugeri – são o salutar corolário da aceleração. A economia de tempo e de energia é possível somente graças à troca da comunicação real por códigos e formalismos. O consenso, na verdade, precede o debate. A declaração final é o primeiro documento que você recebe no início da reunião. Você sabe o que vai dizer e é tudo preparado por experts que, além disso, têm a delicadeza de tomar notas do que você diz, ainda que sejam eles mesmos os autores do texto. (Apesar disso, eu próprio reclamo a paternidade do texto presente.) Você sabe – com raras exceções – como tudo vai terminar. Se algo ainda continua imprevisível de algum modo, são os comentários dos jornalistas no dia seguinte. Falando de codificação, não resisto a invocar a quantidade de organizações internacionais e organismos expressados num labirinto de iniciais sibílicas. De Gaulle era fascinado pelo mistério das iniciais da ONU (Qu’est-ce-que ce machin-lá?). Hoje, ele teria de falar em OSCE, BSEC, CEI, CEFTA, EAPC, MERCOSUR, PREPCOM, SFOR, TRACECA, UNPREDEP etc. A cada ano, o número de organizações e comissões internacionais aumenta. Todos os tipos de reuniões tomam a agenda dos círculos diplomáticos, o que não acarreta necessariamente um aumento de diálogo. Você freqüentemente vê as mesmas pessoas, sem jamais ter a chance de verdadeiramente conhecê-las. Os momentos de “contato” real são reduzidos aos mínimos interst ícios oferecidos pelo protocolo: o coquetel, o almoço oficial (se não for “de trabalho”), a “foto de família”. Mas ainda nestes momentos tudo é reduzido a uma impressão inefável, à concisa cordialidade de uma resposta, às solidariedades de um círculo restrito. De resto, o código é esmagador. Você é “importante” e uma nulidade ao mesmo tempo. Mais do que você mesmo, você é tudo o que for permitido pelo seu crachá, pelo cartãozinho que marca seu lugar na mesa de negociações. Mesmo a língua que você fala torna-se um simples sinal, uma sugestão de um código preferencial, com conseqüências políticas. Isto é particularmente válido para um país como a Romênia, que não pode optar, sem um cálculo preciso, a respeito da maneira de se expressar. Se você falar romeno, ninguém irá compreendê-lo e ninguém irá traduzi-lo. Se você falar inglês, os franceses dirão que estão surpresos de verem o representante de um país francófono cometer essa indelicadeza. Se você falar francês, os anglófonos irão considerá-lo fora de moda. E se você falar alemão, ninguém acreditará que você vem da Romênia. O dilema é aparentemente pequeno, mas, dentro do contexto, pode desempenhar um papel inesperado.

Banalização. Não era comum, antigamente, que os encontros internacionais fossem tão comuns na vida diplomática. Uma conferência internacional tinha tudo para se tornar “histórica”, exatamente porque só ocorria a grandes intervalos, na véspera de acontecimentos importantes. Hoje, os encontros ministeriais tornaram-se uma atividade quase diária. O diplomata não é mais um símbolo plenipotenciário, uma posição de solenidade. Ele é um alto oficial, absorvido por uma escravidão linear. A decisão pertence antes às instituições que ele representa (presidentes, primeiros-ministros, parlamentos, partidos), e sua implementação à equipe de técnicos que o acompanha. O coeficiente de rotina e o componente convencional da vida diplomática é que são preponderantes. E aquele que, por imprudência, temperamento ou “diletantismo”, sai do típico, aquele que contradiz a norma, ainda que seja por um pedaço de frase, imediatamente cria uma comoção pública cujos resultados são imprevisíveis. O interlocutor subitamente abre os olhos, nota você, e, se você tiver sorte, ele reconhece, em particular, que você trouxe um tom um pouco mais arejado para o debate. Se você tiver azar, será arquivado sob as r ubricas “exotismo”, ou “esquisitice do leste”. O risco é grande. A banalização da vida diplomática também tem raízes no fato de que os encontros internacionais são geralmente confiscados por problemas secundários. Toca-se somente em problemas de natureza mais ou menos técnica ou então as pessoas se limitam a produzir um cronograma. Assuntos essenciais ficam intocados. Nenhum dos encontros da União Européia a que estive presente discutiu a “identidade” européia, nem o que significa o “alargamento” do espaço de uma civilização, nem as possíveis modalidades de integração das diferenças. Existe uma conversa sobre cotas, porcentagens, correlações econômicas e monetárias, que é sem dúvida muito útil, mas são raras as referências à essência dos acontecimentos, à sua substância e, eu ousaria dizer, à visão a partir da qual as ações serão decididas. Retrucar-me-iam que a diplomacia não é, de forma alguma, um colóquio filosófico. É verdade. Mas também não é uma simples burocracia. Corremos o risco de pensar de maneira esquemática, de perder a imaginação, a idéia, o entusiasmo. Corremos o risco de criar uma segurança embotada, uma prosperidade grudenta e uma unidade amorfa.

Quê fazer? Se eu não fosse ministro no momento em que falo com vocês (eu não era quando fui convidado para fazer esta conferência), poderia arriscar um rascunho de resposta. Mas, como ministro, eu estou no lugar do paciente, e não do terapeuta. Sou parte da paisagem que acabei de descrever. E não é possível que eu não identifique nesta paisagem, por enquanto, a brecha salvadora. Prefiro propor a vocês uma paisagem paralela, aquele em que vivi antes de chegar à minha perspectiva atual. Nos antigos países comunistas, freqüentemente vivíamos de soluções paralelas: uma cultura paralela à oficial, um conjunto de normas subterrâneas paralelas, uma economia paralela. Tendo esta experiência em mente, eu agora penso na possibilidade de uma diplomacia paralela. Não temos de inventá-la. Ela existe. Estive nela em 1992 no Wissenschaftskolleg em Berlin, e mais tarde em alguns institutos de estudos avançados, em Wassenaar, em Budapeste ou em Viena. Tentei formar um instituto assim em Bucareste e aprecio imaginar que fui bem sucedido. Nestes institutos, que não adotam “documentos finais”, que não criam comissões de controle ou forças de intervenção, que não criam nem desfazem fronteiras no mundo, uma elite relaxada mas responsável, racional, sem qualquer abuso sistemático ou ideologia formalizada, trava um intenso diálogo a respeito do mundo e dos destinos do homem. Vindos de todos os lugares e de todas as áreas, os membros destes institutos possuem, além das capacidades de seu espírito e de sua especialização, duas virtudes que estão em falta entre os diplomatas: eles têm liberdade interior e tempo. Quando se encontram, um verdadeiro encontro acontece; quando falam uns com os outros, realmente se comunicam; quando brigam, nenhuma embaixada fecha. Nestes institutos, o debate ainda é uma instituição eficiente, e a pesquisa é coloquial, corajosa, e orientada não para conjunturas, mas para fundamentos. Eles têm o estilo de uma diplomacia de boa qualidade, sem os seus servilismos. Jean-Paul Sartre disse uma vez que uma boa revista se faz dançando. Eu diria que o que eu vivi no Wissenschaftskolleg zu Berlin era a euforia sóbria da dança. A diplomacia pode tomar esta euforia sóbria como um modelo. E a integração européia e planetária poderá se tornar uma boa oportunidade para que o mundo reaprenda a dançar.