Coisas sérias

Olavo de Carvalho

Bravo!, julho de 1998

O Brasil no Salão do Livro de Paris

Se algumas décadas atrás o governo brasileiro resolvesse homenagear a cultura francesa e convidasse, para representá-la, Françoise Sagan em vez de André Malraux, Fernandel em vez de François Mauriac, Edith Piaff em vez de Raymond Aron , os franceses julgariam a coisa uma piada, e o general Charles de Gaulle, se nunca tivesse dito que o Brasil não é um país sério – como de fato parece que jamais o disse -, veria aí uma boa ocasião para dizê-lo.

No entanto nós, brasileiros, levamos perfeitamente a sério o Salão do Livro em Paris quando ele homenageia a nossa cultura literária nas pessoas dos srs. Chico Buarque, Frei Betto, Paulo Coelho, Fernando Gabeira, Zuenir Ventura, Luís Fernando Veríssimo e outros de calibre igual ou menor.

Ninguém negará que essas criaturas representam, de algum modo, a cultura brasileira. Mas de qual modo, precisamente?

Para ser representativo da cultura de um país e de um momento, o escritor tem de atender a três condições óbvias. Primeira: tem de ser ótimo, tem de expressar o melhor e o mais alto de que sua nação é capaz, tem de ter dado algo de valor ao mundo em nome do seu país. Segunda: tem de ser atual, isto é, atuante. Tem de estar up-to-date, seja pelas obras, seja pelos atos. Terceira: tem de ser influente, ser poderoso, ser muito lido e muito falado.

Dos trinta e sete escritores brasileiros da lista de homenageados do Salão de Paris, três e somente três, atendem a essas condições: Carlos Heitor Cony, João Ubaldo Ribeiro e Antonio Olinto. Todos os outros falham a uma, a duas ou às três.

Alguns deles são ótimos, mas inatuais. A falta de atualidade é, dos males, o menor. Tira a representatividade de um escritor sem diminuir em nada os seus méritos. Jorge Amado e Rachel de Queirós, por mais que tenham escrito coisas boas depois, nunca deixarão de ser o modernismo nordestino. Estão cravados nesse lugar do tempo. É um lugar honroso, o mais honroso de nossa literatura – mas não é o lugar onde estamos hoje. Lygia Fagundes Telles é maravilhosa, porém o melhor do que fez já tem duas décadas. Millor Fernandes jamais decaiu, mas ninguém dirá que, nos últimos vinte anos, fez coisa mais digna e de destaque do que Um Elefante no Caos ou Liberdade, Liberdade. Geraldo Mello Mourão é um gênio assombroso – mas há tempos ninguém ouve falar de suas obras. Quem dirá que Antonio Torres não é grande? É sim, mas não cresceu na última década: sua fama e sua melhor produção estão indissoluvelmente associadas aos anos tenebrosos da ditadura. O mesmo deve ser dito de Plínio Marcos. Há mais dois ou três nessa categoria, mas, não tendo a lista diante dos olhos, falo apenas do que conservo na memória. Por justo que seja homenageá-los, sua escolha jamais seria prioritária num evento destinado a apresentar a um povo estrangeiro a cultura brasileira de hoje.

Há um segundo grupo: o daqueles que são ótimos e atuais, mas não influem em nada, porque ninguém os leu. São uma possibilidade, uma esperança. Tenho esperança de que Adriano Espínola venha a ser o Brasil de amanhã, quando Língua-MarTáxi, como merecem, forem lidos em todas as escolas. No Brasil de hoje, é uma glória literária em estado de hipótese. Dizer que ele nos representa é fazer um discurso de posse antes de inscrever a candidatura. O terceiro grupo é o dos escritores que são apenas atuais sem ser influentes ou ótimos: fizeram recentemente coisas que não tiveram a menor repercussão e que, por coincidência, também não valiam nada. Sua presença na lista é um enigma insondável. Não citarei nomes. Non raggionam di lor, ma guarda e passa.

A ala mais interessante é a dos que são influentes e atuais, apenas. Especializaram-se, aliás, em sê-lo, e não fariam o mínimo esforço para se tornar também ótimos, seja porque ignoram que raio de coisa é isso, seja porque imaginam que consista em ser exatamente aquilo que são. Por inacreditável que pareça, esses constituem o grosso da lista. Traduzem, portanto, a essência do critério que inspirou a seleção. São precisamente aqueles que citei no começo deste artigo e mais uma dezena de outros de idêntico teor intelectual. É pela análise dos motivos de sua escolha que descobriremos o que o Salão do Livro de Paris pensa do Brasil.

Não se pode dizer, repito, que esses nomes não representam a cultura nacional. Representam-na, porém não no sentido eminente em que a representaram Machado de Assis e Villa-Lobos, Gilberto Freyre e Portinari, ou no sentido em que representam, hoje, – e atendendo às três condições – Ariano Suassuna, Bruno Tolentino, Ferreira Gullar, Wilson Martins, Roberto Mangabeira Unger, Miguel Reale, Meira Penna, Amaral Viera, Edino Krieger e alguns outros que, como esses, não entram na lista. Aqueles escolhidos não representam o “gênio” brasileiro, mas, sim, apenas a “atualidade” brasileira, aquilo de que todos falam no dia-a-dia. Numa palavra, representam a nossa cultura no sentido antropológico do termo: gostos e hábitos do povo. Precisamente aquele sentido no qual estaria mais que justificada a escolha de Fernandel, Edith Piaff e Françoise Sagan como representantes da França.

Ora, o que define o ponto de vista antropológico é a abstenção de juízos de valor. Para o antropólogo, o canibalismo ou o controle da natalidade pelo estrangulamento dos recém-nascidos são meros fatos, “dados culturais”: como amostras de “cultura”, valem tanto quanto a Catedral de Chartres, as obras completas de Pascal ou o auto-sacrifício de Joana d’Arc. Do mesmo modo, Frei Betto ou Paulo Coelho não são valores brasileiros. São fatos e têm uma altíssima relevância antropológica. Não podemos negar que aconteceram, embora haja quem o lamente.

O ponto de vista antropológico pressupõe, no observador, uma neutralidade, um distanciamento, que dificilmente ele poderia ou desejaria sentir ante sua própria cultura. Malinovski nas Ilhas Trobriand ou Ruth Benedict entre os índios do Novo México podiam olhar as coisas de longe porque tinham vindo de longe e sabiam que iam voltar para longe – para o lugar onde estavam as coisas amadas e odiadas, as coisas verdadeiramente importantes e valiosas, as coisas que exigem decisões e compromissos. Comparada com as exigências concretas da vida, a “cultura” que o antropólogo estuda é um modelo funcional ou estrutural, uma cultura de brinquedo, desmontável e inofensiva.

Quem se coloca desse ponto de vista, geralmente, não pretende adotar para si nenhum dos valores da cultura estudada, mas, confortavelmente instalado nos valores da própria cultura, quer apenas observar com isenção de entomologista uns tipos exóticos que usam osso atravessado no nariz e comem criancinhas. Ninguém olha uma cultura com tamanha frieza quando pretende aprender com ela, isto é, incorporá-la, moldar por ela valores, hábitos, critérios e decisões pessoais, muito menos nacionais. Essa é a diferença que existe num francês quando ele estuda tribos nigerianas e quando lê Goethe ou Hegel, Shakespeare ou Leopardi. Ele aprende em ambos os casos, mas a diferença é a mesma que há entre um objeto de estudo e o professor que o ensina. O objeto é passivo e inerme ante o estudante. O professor ou mestre, ao contrário, ensina, dirige, molda. O interesse por uma cultura não é o mesmo conforme se trate, para o observador, de uma cultura-objeto ou de uma cultura-mestra. Se o Salão do Livro de Paris houvesse escolhido, para representar o Brasil, um Suassuna, um Tolentino, um Mangabeira, um Miguel Reale, haveria motivo para supor que a França, a orgulhosa França, consentira em aprender com brasileiros que têm algo a lhe ensinar. Como escolheu predominantemente aquelas pessoas que mencionei, torna-se claro que ela deseja aprender sobre nós, mas não de nós. Não nos quer como professores, mas como objetos de estudo. Como objetos de estudo, os escolhidos foram, sem dúvida, bem escolhidos: o sr. Chico Buarque é pelo menos tão significativo, antropologicamente, quanto um exemplar de Notícias Populares, as práticas orçamentárias do Congresso Nacional, o time do Corinthians ou a banheira do Gugu.

Não sou eu quem há de dizer que a França não é um país sério. Um país que para realizar idéias de philosophes faz rolar um milhão de cabeças é mais que sério. É mortalmente sério. Ora, como se vê por esse mesmo exemplo, as atitudes das pessoas sérias tem conseqüências mais letais que as de pessoas frívolas. Logo, se a França julga que a cultura brasileira deve ser encarada sobretudo como um objeto, um dado antropológico em que as considerações de valor não têm importância, muito provavelmente sua visão do Brasil será levada a sério, adotada e copiada pelos brasileiros mesmos, para os quais a cultura francesa é mestra e não objeto. Para seguirmos o que nossa mestra nos ensina sobre nós mesmos, haveremos de nos abster de qualquer julgamento de valor sobre as nossas produções culturais, e, com isenção antropológica, não distinguiremos mais entre Chico Buarque e Bruno Tolentino, entre Frei Betto e Mangabeira Unger, entre Zuenir Ventura e Miguel Reale. E aí é que as coisas começarão a ficar bem mais sérias.

Olavo de Carvalho entrevista Alain Peyrefitte

Abaixo a malícia: só quem confia vence

Entrevista com ALAIN PEYREFITTE

por OLAVO DE CARVALHO – Versão completa

NB – Esta entrevista saiu na revista Repúblicade julho de 1998, mas um tanto cortada para caber no espaço disponível. Por isto resolvi reproduzir aqui, por extenso, os ensinamentos que recebi, em Paris, de um dos homens mais inteligentes do mundo.

“Não existe mais que uma e uma só fórmula
para fazer de um homem um homem autêntico:
a fórmula que prescreve a ausência de toda fórmula.
Nossos ancestrais tinham uma bela palavra,
que resumia tudo: a confiança.”

Franz ROSENZWEIG

 

[Introdução]

A proverbial afeição dos franceses às revoluções e golpes de estado não impediu que, desse povo tão mal acomodado na ordem democrática nascessem, talvez em compensação, algumas das inteligências mais aptas a captar a essência da democracia e a diagnosticar os perigos que a ameaçam. O que não é de estranhar é que tais homens fossem tão pouco profetas em sua própria terra.

Dentre esses pregadores no deserto, o mais conhecido é Alexis de Tocqueville, o primeiro a observar, no seio da própria democracia americana nascente, a contradição até hoje irresolvida – e cada vez mais aguçada – entre igualdade e liberdade. Logo abaixo dele vem Frédéric Bastiat, pioneiro no diagnóstico da natureza voraz e tirânica do Estado moderno. Menos falado, porém altamente respeitado de quem o conhece, é Bertrand de Jouvenel, inteligência implacavelmente realista que destruiu o mito das liberdades crescentes, pondo em seu lugar a demonstração do crescimento ilimitado do poder, da distância cada vez maior entre governantes e governados.

Esses três pensadores têm em comum o pessimismo histórico, a apreensão de democratas sinceros que vêem a liberdade extinguir-se e, olhando em torno, não descobrem meios de defendê-la contra a marcha avassaladora do poder.

Mas este que vou lhes apresentar agora, se compartilha com eles o temor ante os perigos, destaca-se, surpreendentemente, pelo otimismo com que enxerga o futuro. Alain Peyrefitte não é, no entanto, nenhum sonhador. Basta ver os seus olhos para reparar que, por baixo do sorriso simpático, se esconde um observador temível, a quem só um tolo procuraria enganar.

O otimismo de Peyrefitte, além de bem contrabalançado por uma dose de ceticismo, é de um tipo diferente do habitual. Não se baseia somente na esperança, mas na simples constatação de um fato: a liberdade de decisão humana, que nenhum determinismo logrou jamais revogar, seja para instaurar em lugar dela a necessidade do mal, seja a fatalidade do bem crescente. Peyrefitte é otimista pela simples razão de que o pessimismo é uma ilusão deprimente baseada na presunção de já conhecermos o futuro. O futuro a Deus pertence, e Deus seria um verdadeiro idiota se criasse seres capazes de decisão sem deixar na mão deles ao menos uma parcela da responsabilidade por esse futuro. Peyrefitte é otimista porque entende que, ora mais, ora menos, é sempre possível agir. E quem vai provar que não?

Mas estou precipitando as conclusões. Devo dizer, primeiro, quem é Alain Peyrefitte. Membro da Academia Francesa, diplomata de carreira, estadista, historiador, cientista político, jornalista, foi colaborador, amigo e homem de confiança do general Charles de Gaulle por três décadas, deputado em todas as legislaturas da V República e várias vezes ministro: da Educação, da Justiça, do Interior, do Planejamento, da Cultura, da Pesquisa Científica. Preside hoje o conselho editorial do Figaro, ainda o mais poderoso diário francês. Seu pensamento social e político já foi objeto de muitas teses, artigos e congressos, inclusive no Institut de France, dos quais nenhuma notícia chegou a estas plagas.

O primeiro sinal de termos percebido a existência desse espírito extraordinário foi dado no ano passado pela Casa Jorge Editorial, que publicou O Império Imóvel ou O Choque dos Mundos, em tradução de Cylene Bittencourt. Mas, por fascinante que seja, esse relato da expedição de lorde McCartney à China em 1792, se tudo nos revela sobre o mal crônico de um Império paralisado pela suspeita de todos contra todos, não nos diz muito sobre sua própria ligação com as concepções mais gerais de seu autor sobre a natureza e o funcionamento da sociedade humana, das quais é a exemplificação fundada no estudo meticuloso de um caso particular. Por isso ou pela proverbial letargia que a acometeu desde há quatro décadas, a imprensa cultural nem sequer registrou a edição dessa obra-prima da ciência histórica, onde o rigor do método, em vez de ostentar-se na língua de chumbo do pedantismo universitário, se oculta elegantemente sob um estilo narrativo animado, pulsante e cinematográfico.

Coincidência ou não, o próprio autor não começou por expor suas concepções, mas por exemplificá-las num caso concreto, o do seu próprio país. Le Mal Français, publicado em 1976, tornou clássico o retrato da uma nação roída pela suspicácia, sempre em busca de um governo forte que a proteja de si mesma e de um líder golpista ou revolucionário que a proteja do governo forte. Les Chevaux du Lac Lagoda, em 1981, demonstrava as raízes ideológicas e culturais da criminalidade juvenil, que aqueles mesmos que as plantaram buscavam ocultar sob um discurso convencional contra o sistema econômico (já vimos esse filme, não vimos?). Nesses e em outros trabalhos, ora partindo do exemplo francês, ora do chinês (que conheceu de perto como chefe, em 1971, da primeira missão oficial do Ocidente ali admitida durante os anos da Revolução Cultural), Peyrefitte foi traçando o perfil histórico, sociológico, político e administrativo da “sociedade de desconfiança”, o Leviatã paralisado pela malícia e por dúvidas paranóicas a respeito de si mesmo.

Foi só em 1995 que a teoria subjacente a essas análises apareceu com todas as letras, primeiro numa explosiva série de conferências no Collège de France, Du “Miracle” en Économie, e logo em seguida na obra magna, La Societé de Confiance, publicada pelas Éditions Odile Jacob e imediatamente celebrada como acontecimento de primeira grandeza por Pierre Chaunu, Alain Touraine, Jacques Le Goff, Raymond Boudon e muitos outros. (Alertado pelo embaixador Meira Penna, li essa obra e convenci a Faculdade da Cidade a publicá-la em tradução – também de Cylene Bittencourt -, que estará nas livrarias numa das próximas semanas.)

A teoria começava por prosseguir as investigações célebres de Max Weber sobre capitalismo e protestantismo e por contestar seus resultados. O surto de progresso capitalista nos países protestantes, contemporaneamente freado nos católicos, não foi devido predominantemente a fatores religiosos, mas a fatores culturais mais amplos que determinaram a diferente atitude de católicos e protestantes ante a economia moderna. A diferença era radical: do lado católico, a desconfiança generalizada que clamava por mais controle, mais policiamento, mais burocracia, mais punições. Do outro, uma confiança pujante que estimulava a criatividade, a variedade, a iniciativa. Confiança, em primeiro lugar, dos homens uns nos outros: por que supor que o nosso próximo quer o nosso mal e não apenas, como todos nós, o seu próprio bem? Por que não acertarmos as coisas entre nós e ele, em vez de chamar um terceiro para nos policiar a todos? Eis a base de toda negociação, de todo contrato, de toda eficácia. De outro lado, confiança no poder que cada homem tem de decidir, de agir, de lutar por um destino melhor conforme seu próprio entendimento, livre de uma autoridade acachapante que imponha a todos a camisa-de-força de uma noção padronizada do “melhor”.

Essa diferença surge, primeiro, nas idéias, na fantasia, na cultura. Depois consolida-se em leis e costumes. Por fim, dá frutos na economia: riqueza, progresso, desenvolvimento.

O protestantismo contribuiu, sim, para esse resultado, mas menos por suas concepções teológicas e morais explícitas enfatizadas por Weber – predestinacionismo, ética da poupança – do que pelo simples fato de estimular a liberdade e a variedade, livre do peso excessivo de uma velha burocracia controladora. E se enquanto isso o catolicismo atrasava o desenvolvimento econômico em outras partes do mundo, também não foi por causa do conteúdo de sua fé, em si mesmo neutro economicamente, mas simplesmente porque a hierarquia, assustada, em vez de superar criativamente as oposições, se enrijeceu numa atitude paranoicamente defensiva que só pensava em mais controle, mais centralismo, mais burocracia. Em certos países o desenvolvimento econômico foi favorecido pela ausência de controles. Em outros, não foi apenas desfavorecido: foi detido, foi proibido, foi estrangulado no berço por autoridades que o confundiram, tragicamente, com os demônios que o cercavam. Na Espanha, em Portugal, na Itália e parcialmente na França, o desenvolvimento não foi nunca um inimigo da Igreja: foi o bode expiatório das culpas católicas e anticatólicas. Ao condená-lo, o catolicismo fez um tremendo mal a si mesmo, do qual procura agora redimir-se. Mas exagerando na expiação, cai no extremo oposto, a adesão aos progressismos de esquerda, que, como sempre acontece com os opostos, o leva de volta ao erro originário: o culto do centralismo inibidor, agora em versão socialista.

A tese é tão patente, tão óbvia, que o ouvinte não resiste a se perguntar: “Por que não pensei nisso antes?”

A própria tese responde: não pensamos nisso porque estávamos infectados de materialismo histórico, que nos punha na pista falsa. Buscávamos as causas econômicas primeiro e nos recusávamos obstinadamente a investigar outras hipóteses, mesmo quando a perseverança no dogma nos obrigava a apelar a explicações mutuamente contraditórias: a Inglaterra desenvolveu-se porque tinha carvão; o Japão, porque não tinha carvão. Como enfeitiçados, projetávamos em causas externas a responsabilidade de nossas ações, e não víamos em parte alguma a causa mais óbvia de tudo o que nos acontece: as decisões humanas, fundadas em crenças e valores.

O presente que a obra de Peyrefitte faz à humanidade é múltiplo e de uma riqueza incalculável: ensina-lhe as condições do desenvolvimento econômico, reúne os materiais históricos que as demonstram, desvela-lhe o único obstáculo real, que reside em sua própria alma, mostra-lhe os meios de superá-lo, alivia os antagonismos religiosos que a paralisam e, de quebra, liberta-a da mais opressiva e esclerosante de todas as obsessões: o materialismo histórico, o determinismo econômico.

Não há, nos meios intelectuais europeus, quem não tenha, mesmo a contragosto, alguma gratidão a esse desbravador da floresta das idéias. Só alguns americanos ainda se fazem um pouco de desdenhosos, inconformados talvez de que um latino tenha compreendido o capitalismo melhor que eles.

Se o Brasil for esperto, não há de empinar o narizinho, fazendo-se de superior, em vez de sentar e ouvir com humildade uma lição que é para o bem de todos e a felicidade geral das nações.

 

[Texto completo da entrevista]

 

CONFIANÇA: É UMA BELA PALAVRA,
TALVEZ A MAIS BELA, JUSTAMENTE PORQUE
NÃO É SOMENTE UMA PALAVRA

– Um de seus primeiros ensaios já trazia o título O Sentimento de Confiança. Foi publicado em 1947. Você teve experiências pessoais, de infância ou de juventude, que despertassem sua atenção para a importância decisiva da confiança nas relações humanas?

A idéia de que a confiança é a condição primeira de todo desenvolvimento humano não é uma hipótese escolar. Portanto ela não saiu do meu cérebro como Atenas nasceu inteiramente armada do cérebro de Zeus. E não se trata de uma experiência privilegiada, reservada a alguns. A importância da confiança nas relações humanas é tal que, de um modo ou de outro, todo mundo se defronta com ela desde a primeira infância. Desde que que vem ao mundo, o homenzinho se vê confiado a seus pais, a educadores, a médicos. A confiança que lhe dão ou lhe recusam, aquela que ele ganha em si mesmo, aquela que ele concede aos outros, em suma, o clima de desconfiança ou de confiança no qual ele evolui constitui o elemento vital do seu desenvolvimento. O aprendizado da autonomia e da responsabilidade é a descoberta paralela da autoconfiança e da confiabilidade do outro. Essa descoberta, é claro, não é necessariamente explícita. Alguém é consciente do ar que respira? A confiança, como o ar, é de tal maneira vital que só notamos sua importância quando ela começa a faltar. A desconfiança tinha envenenado o fim da IIIa. República. A França traía a confiança de seus compatriotas, mas também a de seus aliados. Foi talvez a falência do meu país, surdo ao apelo tchecoslovaco, e a falsa confiança inspirada nos acordos de Munique que me revelaram a importância capital da confiança.

Sem dúvida, meus pais, professores que amavam apaixonadamente seu ofício e seus alunos, haviam despertado em mim a confiança nas virtudes do trabalho, da lealdade, da constância. Mas creio de fato que foram os dramas da nossa nação que me serviram de despertador. E, depois, houve de Gaulle: aquele que forçou o destino por uma confiança sobre-humana na França e na liberdade, aquele que, no pior momento do desastre, acreditou na inversão da derrota em vitória.

Pergunto-me de Franz Rosenzweig, que você cita, não buscou sua concepção da confiança justamente no inferno das trincheiras, por uma espécie se sobressalto salutar, ao ver que o humano, sob a chuva de bombas, se via reduzido a uma matrícula obediente a ordens sem apelo e fórmulas inautênticas. Ora, a confiança não é uma fórmula vazia: é um gesto unido à palavra, um ponto de apoio e de partida, ao mesmo tempo estável e dinâmico. Confiança: é uma bela palavra, talvez a mais bela, justamente porque não é somente uma palavra.

TODA POLÍTICA DIGNA DO NOME
EXIGE CONFIANÇA
NAQUELES QUE A DIRIGEM

– Carl Schmitt definia a política como a confrontação amigo-inimigo, acima de todos os valores que lhe servissem de pretexto. Sob esta perspectiva, uma “política de confiança” não poderia ser senão uma contradição de termos. Como você define a política?

Carl Schmitt exaltou a confrontação amigo-inimigo a um ponto que me parece inaceitável. Veja-o citar Saint-Just: “Entre o povo e seus inimigos, nada há em comum, exceto a glória.” Para Carl Schmitt, o mal é irremediável: a confrontação armada é ao mesmo tempo uma razão e um meio de viver. Ele chegou a escrever, em 1947, quando, na prisão, aguardava um eventual julgamento em Nuremberg: “Infeliz de quem não tem inimigo.”

Schmitt fez da guerra uma fatalidade, não no sentido maltusiano onde “uma boa guerra nos viria a calhar”, mas num sentido providencial, quase teológico. Foi na Teologia Política que ele escreveu: “Não se poderia eliminar do mundo a inimizade entre os homens proibindo-se as guerras moda antiga entre Estados, propagando uma revolução mundial e tentando transformar a política mundial em polícia do mundo.” Sem dúvida ele tinha em vista o fracasso da Sociedade das Nações e de seu pacifismo irresponsável. Mas parece-me inteiramente perverso pensar a política internacional em termos necessariamente conflituais.

Defino a política como a mobilização das energias individuais em torno de um objetivo comum. Toda política digna deste nome supõe uma confiança naqueles que a dirigem. Uma política internacional não merece o nome de política se não visa a uma forma de cooperação em vista de um objetivo comum e proveitoso para todos – o que não exclui de maneira alguma uma sã concorrência no manejo dos meios de atingi-lo. De outra maneira, a política não é senão uma guerra larvada, e a guerra, segundo o dito de Clausewitz, a continuação da política por outros meios – continuação inevitável e mesmo, em si, necessária do ponto de vista de Schmitt.

O VERDADEIRO LIAME POLÍTICO
É O DA CONFIANÇA-ESPERANÇA,
A CONSTRUÇÃO DE UMA OBRA COMUM

– Ainda sob esse ponto de vista, Hobbes dizia que o Estado nascera do medo, ou, o que dá na mesma, da desconfiança. Hobbes enganou-se ou o advento desse fenômeno novo chamado “desenvolvimento” traz uma mudança na natureza mesma do Estado?

Carl Schmitt jamais escondeu sua admiração por Hobbes. Em A Noção do Político, ele o chama “um grande espírito político” e proclama sua adesão à concepção hobbesiana de um estado de natureza que conduz à guerra de todos contra todos: bellum omnium contra omnes. O raciocínio de Hobbes repousa sobre dois princípios, cujo desenvolvimento Schmitt admirava: 1o., cada um tem um direito ilimitado em tudo o que ele deseja; 2o., os homens têm uma inclinação natural a prejudicar-se uns aos outros.

Daí resultam “suspeitas e desconfianças contínuas” (De Cive, I:XII), donde a guerra perpétua. Só o medo de morrer (timor mortis), o temor pelo próprio corpo (bodily fear) impelem os homens ao desarmamento e à conclusão de um pacto. Hobbes pretende que desse pacto possa nascer uma confiança mútua. Mas ele reconhece a precariedade dela. A confiança, para ele, não passa de uma desconfiança desarmada. É confiança por deficiência, porque não há mais nada a temer.

O verdadeiro liame político é o da confiança-esperança, a construção de uma obra comum, o desenvolvimento de um empreendimento concertado, no qual os atores têm um sentimento de ganhar, e não somente de salvar a pele. O pressuposto da doutrina de Hobbes é sem dúvida a idéia de penúria relativa, que obriga os homens a pactuar se não quiserem se matar uns aos outros. Mas o verdadeiro móvel da associação humana deve ser, como você o sugere, a esperança de um desenvolvimento, de um aumento dos recursos e dos serviços, graças à cooperação contratual de iniciativas livres, inovadoras e responsáveis. É mais para o lado de Locke que para o de Hobbes que se encontrarão os fundamentos de uma política de confiança.

É SEMPRE DOS INDIVÍDUOS QUE
SE FAZ ABSTRAÇÃO, PARA AFOGÁ-LOS
NUMA ESTATÍSTICA GERAL

– Aquele que teve a coragem de enfatizar a ação do indivíduo na produção da História não pode senão enfocar as “causas” e as “leis” da História como uma espécie de ídolo ao qual os homens atribuem magicamente a autoria de suas próprias ações. Você está de acordo com Eric Voegelin quando ele diz que o hegelianismo e o marxismo são formas de “magia negra”, uma auto-alienação dos poderes do homem às potências abstratas?

De todos os cultos destrutivos, o mais perverso é o culto da abstração. E é sempre dos indivíduos que se faz abstração, para afogá-los numa estatística geral, numa configuração de conjunto, numa análise estrutural. Não nego os serviços prestados pela história serial, pela história quantitativa, pela avaliação estatística. Todas essas técnicas permitem afinar a descrição dos fenômenos sociais e econômicos. Mas não fornecem a explicação deles. Nem o advento do Espírito Absoluto, nem o movimento do conceito, nem a luta de classes, nem a lei da baixa tendencial da taxa de lucro explicam o que quer que seja.

Marx pretendia ter recolocado em pé a dialética hegeliana, desembaraçada da sua ganga mística. E, no entanto, a superstição teórica não é menor em Marx que em Hegel. Lembre-se, por exemplo, de que a expropriação da burguesia, que explorou o trabalhador independente, é concebida como uma “negação da negação” e se produz, segundo Marx, “com a mesma necessidade que preside às metamorfoses da natureza”. Não estou seguro de que Hegel teria investido nesse necessitarismo tanto quanto Marx. Não esqueçamos que Hegel era um grande leitor de Adam Smith. Suas Lições sobre a Filosofia da História desvelam, no meio das astúcias intermináveis da razão, a audaciosa iniciativa do indivíduo humano.

– Em A Sociedade de Confiança, você disse que a encíclica Mater et Magistra trouxe o reconhecimento da iniciativa individual na promoção do desenvolvimento. Por que então o pontificado de João XXIII e o Concílio Vaticano II acabaram por favorecer de tal modo as correntes esquerdistas e socialistas da Igreja?

Na Mater et Magistra, afirma-se, principalmente, que tudo no mundo econômico resulta da iniciativa pessoal dos particulares, quer ajam individualmente ou associados de diversas maneiras para a busca de interesses comuns. Sua exaltação do “gênio criador dos indivíduos” contrastava evidentemente com o modelo estruturalista que então estava no apogeu.

Mas, como o magistério mencionava o princípio da destinação universal dos bens, e como ele condenava a injusta repartição dos meios de produção, a reivindicação da “iniciativa pessoal e autônoma em matéria econômica” acabou sendo obliterada em proveito de uma teologia da libertação que consistia, de fato, em libertar-se de toda teologia. A Igreja julgou inútil reiterar sua condenação do materialismo histórico. Mas não se tratava de um silêncio de aprovação. Evidentemente, os apóstolos do marxismo cristão compreenderam de outra forma: “Quem cala, consente.” E a púrpura cardinalícia foi enrolada à força sob a bandeira vermelha.

O MATERIALISMO DAS NEUROCIÊNCIAS
INDICA QUE OS CIENTISTAS
TÊM MEDO DA INICIATIVA INDIVIDUAL.

– O materialismo histórico, desmoralizado enquanto teoria, permanece muito forte enquanto pressuposto inconsciente entre os intelectuais. Na sua opinião, isso ainda vai durar?

É espantoso ver o materialismo sobreviver aos desmentidos sangrentos que lhe são infligidos pela história e pela ruína material das sociedades que ele construiu, quer dizer, destruiu. Mas o prestígio do materialismo ainda está intacto entre os intelectuais. Seu poder simplificador continua a fascinar os espíritos: ele é sedutor porque é redutor. Certamente, ninguém mais ousa falar abertamente de forças produtivas e de relações de produção, das contradições dialéticas do capital e da luta de classes. Mas, na construção do mercado mundial, não se fala senão de estruturas, de instituições, de uniformização. Similarmente, o desenvolvimento das neurociências numa direção estritamente materialista indica o medo que os cientistas têm da capacidade de iniciativa do indivíduo. Queira-se ou não, são os homens que fazem a história, e não ela que os faz. Mas uma moda intelectual, corrente nas ciências humanas, considera esta asserção uma heresia. Se nos abandonássemos a essa moda, essas ciências não teriam de humanas senão o nome. Deveríamos chamá-las ciências da matéria humana.

Parece que Bergson explicou muito bem essa tendência da inteligência humana à rigidez geométrica, essa predileção pelos organogramas impessoais, essa recaída da energia espiritual na inércia material.

O MANIQUEÍSMO
AINDA TEM
BELOS DIAS PELA FRENTE

– A força persuasiva do materialismo histórico sendo devida em grande parte à impregnação do imaginário coletivo pelas artes e espetáculos (o “Titanic” acaba de explicar pela luta de classes o naufrágio da civilização), não lhe parece que uma nova visão das coisas permanecerá ineficaz enquanto não influenciar a mentalidade dos artistas?

Você acredita mesmo que O Encouraçado Potemkin ou os Coros do Exército Vermelho tenham contribuído para impregnar nos espíritos as teses do materialismo histórico? A última cena do Potemkin exalta a contingência da livre adesão fraternal à Revolução. Quanto aos Coros do Exército Vermelho, eles cantam os feitos de Tchpaiev ao transpor o Ural, ou os de Kutusov diante dos exércitos de Napoleão. Eles se exibem no mundo inteiro: são uma das raras instituições que sobreviveram ao regime comunista. São belas vozes de baixos em uniforme: mas não são argumentos em favor da dialética do marxismo-leninismo. Creio antes que a força persuasiva do materialismo histórico está em todos os espíritos, em estado de latência, Ela exprime a segurança de um esquema inelutável, o culto da ciência que se pretende “pura”, o mito da infalibilidade, o medo da inovação, e, no fim das contas, a tendência à desconfiança. Não nego que cineastas e romancistas se deleitam nos enredos da luta de classes. Mas será por culpa deles que o público ainda os aprecia? O maniqueísmo ainda tem belos dias pela frente.

SOMOS TODOS
MATERIALISTAS HISTÓRICOS
INCONSCIENTES

– O liberalismo, vencedor no campo econômico, não corre o risco de naufragar se a cultura permanecer sob a hegemonia socialista? O liberalismo não estará caindo vítima de um materialismo histórico inconsciente?

Sua sugestão é sutil e subscrevo-a de bom grado. Somos todos, em diversos graus, materialistas históricos inconscientes. Aderimos espontaneamente, mesmo quando somos persuadidos do contrário, à tese do primado da infra-estrutura econômica e material sobre a superestrutura cultural e espiritual. Esta tendência inata ao fatalismo oferece uma segurança intelectual e um álibi contra a exigência de responsabilidade e o desafio da adaptação contínua.

Novamente, a hegemonia cultural socialista não é, em si mesma, uma fatalidade. É preciso crer que o público das democracias encontra alguma satisfação nela e alivia, por esse meio, um forte sentimento de culpabilidade em relação às responsabilidades que não foram assumidas. Privada de seu inimigo hereditário (o comunismo), a economia de mercado deve gerir sozinha a criação e a partilha de riquezas. Ela deve enfrentar o desafio de um desenvolvimento humano e eqüitativo, fundado em iniciativas livres e competitivas.

O LIBERALISMO ECONÔMICO
NÃO PODE SOBREVIVER
SEM UM LIBERALISMO CULTURAL

– Na mesma linha de pensamento: não será um erro trágico supor que a liberalização da economia seja a condição necessária e suficiente de todas as outras liberdades? Não é concebível que um Estado possa ser liberal em economia e ditatorial e tudo o mais? Por exemplo, nos Estados Unidos o liberalismo é hegemônico em economia, o estatismo recua, mas é crescente a intervenção do Estado na vida privada dos cidadãos.

O estruturalismo de inspiração marxista formulou, na esteira de Ernest Labrousse, uma nova “lei dos três estados”: o Econômico comanda o Social, e o Social comanda o Mental. Se fosse assim, bastaria liberalizar a economia para liberalizar a sociedade e a cultura. Você cita, com razão, o exemplo dos Estados Unidos.

Pode-se dizer que os Estados Unidos são “libertários” (libertarian) no plano econômico, mas “comunitários” (communitarian) no plano social. Tudo se passa como se o extremo desregramento do emprego, dos preços, dos salários fosse compensado pelo acréscimo de controle social.

A profecia de Tocqueville confirma-se portanto com uma precisão espantosa. Como atores da vida econômica, os americanos “giram sem repouso em torno de si mesmos para obter pequenos e vulgares prazeres… Cada um deles, retirado num canto, é como que estranho ao destino de todos os outros: seus filhos e seus amigos particulares formam, para ele, toda a espécie humana. Quanto às privações por que passam seus concidadãos, ele está ao lado deles, mas não os vê”. Em contrapartida, como cidadãos dos Estados Unidos, eles estão submetidos a um “poder imenso e tutelar, que se encarrega sozinho de assegurar o seu poder e velar sobre a sua sorte, não buscando senão fixá-los irrevogavelmente na infância” (Da Democracia na América, T. II, parte 4, cap. 6).

Na China, temos outro caso do lema “Economia primeiro”, para evitar que a expressão cultural e psicológica das frustrações materiais acumuladas em quarenta anos de comunismo comprometa a passagem progressiva e prudente a uma liberalização cultural. As “Cem Flores” tornaram os chineses prudentes. Mas, ao contrário do que se passa nos Estados Unidos, o controle social drástico vai afrouxando progressivamente, ao passo que nos Estados Unidos assistimos a uma regressão quase infantil.

Em todos os casos, o liberalismo econômico não pode se expandir e sobreviver sem um liberalismo cultural e psicológico, isto é, sem uma cultura e um clima de confiança: confiança na competição de iniciativas responsáveis, confiança na mobilidade intelectual, geográfica, profissional, aposta na adaptação, na inovação, nas trocas.

A IDEOLOGIA GAY
EXPRIME UMA DESCONFIANÇA
ANTE O OUTRO SEXO

– As novas correntes de opinião que cresceram depois da última Guerra Mundial (feminismo, negritude, ideologia gay, etc.) não são de natureza a favorecer antes a desconfiança do que a confiança?

Essas novas correntes de opinião nasceram do choque de duas guerras mundiais. A emancipação das mulheres, por exemplo, começou no dia seguinte da Primeira Guerra: enfermeiras e operárias do armamento não queriam voltar para casa como se nada tivesse acontecido. Do mesmo modo, as colônias africanas solicitadas pelo esforço de guerra tomaram consciência de que seus “deveres” implicavam o reconhecimento de “direitos”. A descolonização é o produto das duas guerras.

Mas, ao lado dessas justas reivindicações, ou no seu seio mesmo, exprimem-se tendências ao encolhimento, à vontade de cada um ser ele mesmo sem o outro, de ficar “entre os seus”, sem mistura, sem capacidade de integração, sem esforço de adaptação. É uma reação comparável à regressão endogâmica que afeta certas sociedades “primitivas”.

Pode se perguntar se a ideologia gay que se diz tolerante, aberta, etc., não exprime, em muitos casos, uma desconfiança ante o outro sexo, um medo da diferença sexual. A verdadeira confiança, em contrapartida, não é nem confinamento em si nem fusão e perda de si.

TANTO FAZ MATAR INOCENTES
EM NOME DO PROLETARIADO
OU DA RAÇA SUPERIOR

– Uma coisa que me espantou muito desde que cheguei à França na semana passada, é que todo o mundo parece associar muito facilmente o Front Nacional do Sr. Le Pen à história dos crimes nazistas, enquanto se obstina em não fazer nenhuma associação análoga entre a extrema esquerda e os crimes incomparavelmente maiores do regime comunista na URSS, na China, etc. Por que é tão fácil ser esquerdista sem jamais ser responsabilizado pelos males do stalinismo enquanto todo o homem de direita está sempre sob o risco de ser associado ao neofascismo? Por que é tão fácil atrair a desconfiança contra os homens de direita?

A fascinação dos intelectuais pela ideologia marxista introduziu dois pesos e duas medidas na avaliação dos crimes contra a humanidade. Fazem como se os milhões de homicídios perpetrados pela União Soviética não fossem da mesma natureza que os cometidos pela Alemanha nazista.

Torturar e matar um inocente em nome do proletariado ou da raça superior, não deveria ter nenhuma diferença. Parodiando uma fórmula célebre, poder-se-ia dizer que mais vale errar com Stalin que com Hitler. No entanto, a biologia ariana e a biologia soviética são imposturas do mesmo nível. E mesmo supondo-se que o marxismo-leninismo fosse “cientificamente superior”, nenhum saber, nenhum programa justifica a eliminação física ou moral de um só indivíduo. É tempo, como o diz Hannah Arendt, de compreender que os extremistas de direita e de esquerda estão solidários no crime.

Voltando aos sobressaltos da política francesa, deve-se sublinhar a evidente má-fé de uma esquerda que se faz de virgem assustada pelas “vozes do Front Nacional”, quando ninguém se comove com as vozes do PC, sem falar da extrema esquerda ainda mais dura. Reconheçamos, todavia, que as declarações turvas, talvez perversas do presidente do FN sobre as desigualdades das raças, sobre o “detalhe” dos crematórios, a posição flutuante que ele mantém entre o legítimo controle da imigração e um desencadeamento de funções xenófobas, tudo isto favorece a associação do FN à história dos crimes nazistas.

– De modo mais geral: se a direita aceita renunciar a toda aliança com a extrema direita enquanto a esquerda conserva seu direito de fazer alianças com quem quer que seja (até mesmo com a extrema direita), a direita não estará em vias de cometer suicídio? Que será da política francesa amanhã, na sua opinião?

As eleições regionais e cantonais de 1998 se desenrolaram numa atmosfera de armadilhas e de chantagem. A esquerda chegou a intimidar a direita e a lhe ditar seu comportamento face aos eleitores. Ela pretendeu dar lições de republicanismo brandindo o FN como um espantalho (ela, que sempre traficou o modo de escrutínio para dividir a direita, favorecendo o FN). É urgente sair dessa lógica das alianças e dos casamentos de ocasião, desses anátemas republicanos e dessas excomunhões.

As direitas podem e devem se reunir. Elas são majoritárias no país. Elas devem reconquistar para um programa de direita toda a sua base eleitoral, incluindo os eleitores do FN, que não pertencem nem à esquerda que se serve deles para desacreditar a direita, nem à direita clássica que precisa de seus votos. Os eleitores que votaram no FN só pertencem a si mesmos. Se eles sucumbem às sereias do racismo e da xenofobia, não queremos o seu apoio. Se eles aceitam uma política de direita que respeite os direitos humanos, devemos propô-la. A exasperação deles é tão respeitável quanto a cólera dos partidários da Liga Comunista Revolucionária. A única saída para a política francesa é suspender o anátema que pesa sobre os eleitores do FN e apresentar-lhes uma verdadeira política de direita, sem ódio nem vingança, uma política de exigência, de respeito, de solidariedade e de empreendimento, em suma: uma sociedade de confiança.

COMUNISMO E NAZISMO
EXPLORARAM O RESSENTIMENTO
DAS MINORIAS ÉTNICAS

– A confiança não terá entre seus pressupostos indispensáveis a unidade ou a coerência da cultura, isto é, dos sentimentos e valores? Como você enfoca uma política de confiança nas condições do “multiculturalismo”?

A confiança é ao mesmo tempo causa e efeito da coesão cultural. Sem língua comum, sem valores compartilhados, sem pontos de referência coletivos, nada de confiança. Mas, sem confiança, os pontos de referência desabam, os valores divergem em função de interesses particulares. A língua mesma cessa de ser um instrumento de transmissão e de coesão, para se tornar um critério de segregação, talvez de exclusão. Ela era uma via de comunicação: torna-se uma barreira. Nossos sociólogos descreveram esse fenômeno de esclerose, ao qual eles próprios cederam. Em Ce Que Parler Veut Dire ou em La Réproduction, Pierre Bourdieu pôs em evidência o papel discriminante dos usos lingüísticos, mas o fez numa língua que, ela mesma, raramente é acessível ao comum dos mortais…

Ele deveria ter tirado daí a conclusão que se impõe: a perda, num povo, de sua identidade nacional, constitui uma ameaça à indispensável confiança social. As experiências de bilingüismo oficial mostraram que não se troca de cultura como se troca de camisa.

Goethe dizia que quem não conhece língua estrangeira não conhece verdadeiramente a língua materna. Creio nisso também. Mas o contato e o intercâmbio com o outro não implicam a fusão, a intercambiabilidade, a indiferenciação. Aliás, o universalismo forçado prepara o leito dos separatismos, das reivindicações agressivas, como o mostraram as ex-federações das Repúblicas socialistas.

Não esqueçamos que Stalin começou sua funesta carreira como comissário das nacionalidades, nem que o regime nazi explorou sistematicamente as frustrações das minorias étnicas.

As etnias são como o Etna. Parecem ter perdido todo caráter vital, e sua atividade parece reduzir-se a alguns números folclóricos, sobrevivências de um longínquo passado de erupções e de conflitos. Mas, tente-se extinguir essas manifestações de superfície, e elas voltam com toda a força, vomitando lavas ardentes. O cosmopolitismo, quando perde o respeito pela alma dos povos, parece-se com um edifício construído sobre a boca de um vulcão. O concerto das nações deve permanecer uma polifonia, onde muitas vozes, de timbres variados, se juntam e se superpõem em ritmos diferentes mas harmonizados, onde os refrões e as coplas se respondem de parte a outra. Uma monotonia forçada engendraria a dissonância e a discórdia. O uníssono forçado produz a desunião.

É preciso portanto levar a sério o multiculturalismo. Longe de ser um obstáculo que se deve pulverizar, ele poderia bem constituir um ponto de apoio necessário à Organização das Nações Unidas, como o pressentiu Claude Lévi-Strauss. Unidas não quer dizer uniformes, nem reduzidas ao idêntico. O mito de uma identidade universal revela-se tão perigoso quanto a cultura sistemática dos particularismos locais.

Ninguém detém o monopólio do humano, e sobretudo não a detém nenhuma instituição que pretenda representar as aspirações de todos os homens, sem pedir a opinião deles.

A NOVA ORDEM MUNDIAL:
BUROCRACIA EM CIMA,
CAOS E BANDITISMO EM BAIXO

– Num mundo em que as organizações criminosas como a máfia russa expandem por toda parte uma atmosfera de segredo e de conspiração, enquanto por outro lado vai se constituindo algo como um Estado mundial, ou ao menos uma polícia global para enfrentá-las, os fatores de desconfiança não tendem a se tornar incomparavelmente mais fortes que os fatores de confiança? Como você enfoca uma sociedade de confiança em escala mundial?

A nova ordem mundial arrisca muito parecer-se a um edifício muito instável. Na superfície e em altura, uma burocracia universalista segura da exatidão de seus planos. Mas, nos porões do edifício, uma rede subterrânea de lutas de influências, de mercados clandestinos.

A única alternativa ao desenvolvimento do banditismo é a aplicação vigilante do princípio de subsidiariedade; a recusa de concentrar a organização da sociedade, das trocas, dos preços agrícolas, a um nível muito elevado. A confiança é vivida na relação bilateral de troca de bens e de serviços, no respeito das especificidades locais. Ela não se decreta pelo alto, pois a confiança não se ordena. É ela que ordena tudo.

É a partir de micro-sociedades de confiança – empresas, associações culturais, grupamentos de interesses econômicos, que se edifica uma sociedade de confiança em escala mundial – e não ao inverso.

 

O africanismo de Pierre Verger: uma polêmica

De Marília Tavares para Olavo de Carvalho

9 de julho de 1998

Acabei de enviar essa mensagem a uma lista que freqüento. A questão é que há uma antropóloga com doutorado em religião afro. Chamou minha atenção ela “vender” a idéia dos mitos afro serem lindíssimos, das religiões afro todas serem algo muito rico, ademais ela se preocupa com a possibilidade de essas culturas acabarem, ela computa todos os ganhos e propõe soluções para os impasses, ela coloca na lista textos sobre rituais ou mitos do candomblé e umbanda… Mas quando perguntei o porquê de ainda se sacrificarem animais no ritual de sacralização dos búzios, entre outros, quando quase todas as religiões já colocaram muitos desses sacrifícios em versões mais “light”, recebi uma resposta ofendida, como se eu tivesse dito o maior absurdo, como se a tivesse ofendido em suas crenças… Apesar de que diz que só fala sobre isso como antropóloga. Essa resposta que segue abaixo é em resposta a uma outra pessoa (…) que pega meu gancho (…) e insiste na pergunta mas sob outro prisma, sobre sacrifícios e as tradições, etc. Não coloco a pergunta (…) que está implícita, só a resposta dada pela antropóloga. Achei que o texto que coloquei em resposta se aplica em parte nesse caso de ambigüidade de postura, mesmo não sendo ela uma mãe de santo e, talvez, nem praticante da religião.

De Rita para Marília

Bom, pra não ficar falando antropologuês, lembro só que não podemos avaliar as práticas de uma religião estando fora dela ou comparando com outras, pois não dominamos todos os significados nem os sentidos e qualquer coisa pode nos parecer exótica, aberrante, primitiva, ridícula. Sistemas religiosos são como linguagens. Se eu disser smiaeb e reclamar que você não compreende, o que você me diria?

É complicado, mesmo. 🙂

De Marília para Rita

Essas palavras me fizeram lembrar um artigo que li hoje de manhã:

“(…) No Brasil, que é de fato o único pais do mundo onde as religiões africanas se expandem, a maior parte de seus seguidores já não é constituída de negros e sim de mestiços, e a maior celebridade religiosa que os representa é um branco francês: Pierre Verger. (…) A propósito do sr. Verger, é preciso lembrar que a ambigüidade do seu personagem vai além do simples fato de ser um branco a suprema autoridade da religião negra: o sr. Verger é um ser bifronte, misto de antropólogo e pai-de-santo – uma posição que lhe permite mudar a clave de seu discurso conforme as demandas do momento, ora falando do culto africano com a liberdade de um espectador científico livre e descomprometido, ora com a autoridade de um porta-voz oficial. Essa duplicidade de papéis por sua vez permite que ele desfrute do prestígio da autoridade religiosa sem ter de arcar com a concomitante responsabilidade. Os hierarcas das demais religiões, se recebem a veneração e obediência de seus fiéis, por outro lado têm de responder, perante a sociedade, pelos pontos de sua doutrina que pareçam duvidosos ou extravagantes aos olhos dos não-crentes. (…) Nenhum desses sacerdotes está em posição de furtar-se às cobranças que os de fora possam fazer à sua religião. É precisamente essa a posição que o sr. Verger ocupa na sociedade brasileira. (…) Assim, por exemplo, no seu recente livro Ewé. O Uso das Plantas na Sociedade Yoruba (Salvador, Odebrecht, 1995) ele nos dá várias receitas de mandingas usadas no candomblé para matar pessoas, sem que a ninguém ocorra acusá-lo de pregar uma religião homicida – pois afinal ele está falando como observador científico e não como porta-voz responsável pela crença que prega. É um privilégio que nenhuma autoridade religiosa deste mundo pode invocar. (…) Para piorar as coisas, a nenhuma autoridade religiosa deste mundo é moralmente permitido ensinar a prática de ritos sem que esteja persuadida da eficácia desses ritos. Um rabino não submeterá meninos ao bar-mitzvah, ou um padre os submeterá ao batismo, dizendo-lhes ao mesmo tempo que se trata provavelmente de ritos inócuos, sem eficácia neste mundo ou no outro. Mas o caráter peculiar de sua religião e a posição ainda mais peculiar que dentro dela ocupa permitem que o sr. Verger ensine os ritos homicidas ao mesmo tempo que deixa numa conveniente ambigüidade as questões que uma consciência religiosa sã jamais deixaria de buscar esclarecer: Esses ritos funcionam ou não? São praticados ou não? Pois, se declaradamente não funcionam, sua religião é uma farsa. Se funcionam, é intrinsecamente homicida. Se funcionam e são correntemente praticados, já não se trata somente de uma doutrina homicida, mas de um costume homicida generalizado e legitimado pela religião. Convenhamos que são questões incômodas. Mas por que conceder ao sr. Verger o privilégio de permanecer na indefinição ante essas perguntas, quando as demais autoridades religiosas são constantemente cobradas até mesmo por violências indevidas e sem relação com o dogma – ou mesmo contrárias a ele – que seus correligionários tenham cometido no passado?”

(Olavo de Carvalho, em “A divida dos faraós”, em O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras, Rio de Janeiro: Ed. da Faculdade da Cidade, 1996.)

Ehh…acho complicado mesmo!

Não é?

Abraços

Marília

De Aluizio para Marília

Qual jornal publicou o artigo que está citado na mensagem? Gostaria de lê-lo por inteiro, pois a afirmativa de que Fatumi Verger “e a maior celebridade religiosa que os representa é um branco” no próprio texto apresentado fica esclarecida a impropriedade da afirmação. Conheci Fatumi. Estive duas vezes por bastante número de horas em cada vez o suficiente para tirar minha conclusão: Fatumi era um estudioso sério na forma como estudava todavia enquanto crente ou praticante o fazia com reservas. Aquelas reservas que sua cultura, origem européia e educação igual impunham. Creio que acreditava nos preceitos e fundamentos do candomblé, mas, não creio que tivesse se envolvido com o mesmo ímpeto com que muitos outros indivíduos se envolveram. Notadamente aqueles de origem e cultura diferentes.

Bom final de domingo

Aluizio

De Marília para Rita

Seria possível você comentar os pontos que são equívocos de dados e de análise para nos esclarecer?

Grata,

Marília.

De Rita para Marília

Marília

Warning: é uma lonnnga resposta:Como você pediu, aqui vão meus comentários sobre o texto que você enviou. Não pude mandar ontem porque estava trabalhando no paralelo em outras coisas.

[Segue-se a mensagem, reproduzida abaixo em itálico, com as respostas de Olavo de Carvalho]

Respostas de Olavo de Carvalho

1.

Diz o autor Olavo de Carvalho: “(…) No Brasil, que é de fato o único pais do mundo onde as religiões africanas se expandem…”

Isto não é absolutamente verdade. As religiões africanas vêm se expandindo por todo o mundo, especialmente para Estados Unidos (levadas pelos caribenhos e sul americanos, especialmente brasileiros) e Europa. Já existem terreiros de candomblé e umbanda em Milão, Paris, Frankfurt, Genebra, e em vários estados americanos. Também na América do Sul elas vêm crescendo amplamente. Para confirmar estas informações, vejam-se as pesquisas de Maria Júlia Carozzi, Rita Segato, Reginaldo Prandi, e outros (vou colocar uma bibliografia especializada no meu site e todos poderão pegar lá, pois é extensa). (Olavo, não chama a atenção que todos são brasileiros? O que vejo em enciclopédias internacionais é sobre o crescimento do islamismo) a maior parte de seus seguidores já não é constituída por negros e sim de mestiços,

O problema de se definir quem é negro ou mestiço é clássico. Não se pode dizer que os mulatos e caboclos não são negros ou que são. O fato é que 60% da população brasileira tem ascendência negra. As estatísticas dizem que a maior parte dos adeptos das religiões afro-brasileiras são mulheres, mulatas e negras, de extração social baixa e escolaridade básica. Ver os trabalhos de Prandi, Amaral & Silva, Amaral.

Resposta: D. Rita joga com um duplo sentido da palavra “expansão” e, mais que me confundir, confunde a si mesma. Os caribenhos e sul-americanos que foram para os EUA e a Europa já praticavam os cultos afro nos seus países de origem e simplesmente continuaram a praticá-los, transmitindo-os a seus filhos, nos países aonde foram viver. Isso não é expansão do culto, é simples crescimento demográfico de uma etnia e aumento vertiginoso das taxas de imigração. Nos EUA e na Europa esses cultos continuam, no essencial, limitados a suas comunidades étnicas de origem (elas sim, crescentes) e não conquistam adeptos fora delas num ritmo nem de longe comparável ao que sucede no Brasil, onde amplos setores da classe média e alta sem a mais remota ancestralidade africana (incluindo parcela significativa da intelectualidade acadêmica e da classe governante) se põem cada vez mais sob o guiamento de pais-de-santo. Isto é fenômeno exclusivamente brasileiro (com a possível exceção de Cuba, onde o governo durante algum tempo apoiou discretamente esses cultos para boicotar a Igreja; mas não tenho dados sobre os resultados efetivos dessa política).

O crescimento das religiões afro fora do Brasil é, por assim dizer, “vegetativo”, condicionado ao aumento de populações imigrantes, ao passo que no Brasil é crescimento ativo, tal qual o é, no mundo, o crescimento do Islam, que se expande entre europeus e norte-americanos brancos sem ancestrais muçulmanos.

D. Rita estuda muito, mas não adianta estudar sem inteligência.

2.

“e a maior celebridade religiosa que os representa é um branco francês: Pierre Verger.”

Pierre Verger não é e nem nunca foi considerado uma celebridade religiosa. Sempre foi considerado um pesquisador que respeitava e amava a cultura religiosa afro-brasileira, que o recebeu de braços abertos e lhe deu um cargo honorífico. O fato de ele representar um importante papel na recuperação de informações, na tradução e registro dos elementos culturais e se dispor a discuti-los com pessoas fora da academia terminou por dar a ele um caráter marginal: mal visto pela academia por sua excessiva aproximação com o que era seu objeto de estudo (a religiosidade), e visto com muita desconfiança pelos religiosos, que apesar de reconhecerem o valor do seu trabalho e receberem-no muitas vezes, ressentiam-se de suas entrevistas dizendo que não era um crente, mas um admirador. O Aluízio apontou com clareza o espírito de Verger, a quem também conheci pessoalmente e de quem sei claramente que tinha uma posição de imenso respeito pelo sentimento de Fé, que ele não possuía, mas compreendia e admirava como quem admira uma obra de arte do sentimento humano. Mas ele jamais foi uma celebridade religiosa. Celebridade religiosa foram Mãe Menininha do Gantois, Mãe Senhora, João da Goméia e atualmente, em menor grau, mãe Stela do Opô Afonjá.

Resposta: Novamente, uma confusão do sentido das palavras. Verger é ou não é “uma celebridade religiosa”? Sim e não. É óbvio que no meu texto essa expressão tem um sentido irônico, para refletir a ambigüidade mesma do personagem, que por um lado era uma tremenda força legitimadora a serviço dos cultos afro perante o mundo acadêmico (nesse sentido, uma “celebridade” e não uma “autoridade”, embora na África fosse recebido em muitas tribos quase com honras de chefe de Estado) e, por outro, não podia mesmo ser uma autoridade religiosa “oficial” num culto que não tem hierarquia oficial nenhuma e onde tudo é uma questão de prestígio informal, escorregadia a mais não poder. A própria D. Rita reconhece essa ambigüidade, mas apenas nos seus reflexos exteriores entre os acadêmicos, de um lado, e os religiosos, de outro, como se esse duplo reflexo fosse o fruto de um engano geral e não emanasse da duplicidade de papéis do próprio Verger. Se Verger tinha ou não tinha “fé”, se a tinha às terças, quintas e sábados e não tinha às segundas, quartas e sextas (descansando no domingo como o bom Deus), isso é perfeitamente irrelevante, pois a tentativa de introduzir o conceito de “fé” num culto mágico (onde o que conta, ao menos supostamente, é a atuação objetiva das forças em jogo e não a subjetividade do “crente”, que nesse caso se diria antes um “cliente”) é uma cristianização artificial e ex post facto, sem o menor sentido e, aliás, sem a menor respeitabilidade científica. O que importa é que, perante a academia, Verger era um representante dos cultos afro e, no meio afro (pelo menos quando havia algum acadêmico olhando), era apenas um observador antropológico simpático. É o próprio Monsieur Ouine (de Oui+Non) do romance de Bernanos.

3.

“A propósito do sr. Verger, é preciso lembrar que a ambigüidade do seu personagem vai além do simples fato de ser um branco a suprema autoridade da religião negra: o sr. Verger é um ser bifronte, misto de antropólogo e pai-de-santo – uma posição que lhe permite mudar a clave de seu discurso conforme as demandas do momento, ora falando do culto africano com a liberdade de um espectador científico livre e descomprometido, ora com a autoridade de um porta-voz oficial. Essa duplicidade de papéis por sua vez permite que ele desfrute do prestígio da autoridade religiosa sem ter de arcar com a concomitante responsabilidade.”

Jamais Pierre Verger falou como pai-de-santo. ALGUNS religiosos, ou por menor tradição ou intelectualizados é que tomaram seus trabalhos como “bíblia” do candomblé, coisa que ele jamais se propôs como objetivo. Para se certificar disso, leiam-se todos os trabalhos de Pierre Verger e os comentaristas deste trabalho, entre eles Silva, Prandi, Ferretti, Braga e outros.

Resposta: Santa Misericórdia! Se D. Rita admite que os trabalhos de Verger chegaram a ser tomados como bíblia por “alguns” crentes (quantos? dois? três? dez mil?), isto resulta precisamente em admitir que ele foi aceito como autoridade religiosa dentro dos próprios meios afro, ainda que por ignorantes. E aliás quem julgará a ignorância ou sapiência deles: a acadêmica D. Rita ou o próprio meio religioso que os aceitou como membros, aceitando, por tabela, que seguissem a autoridade de Verger? D. Rita argumenta como um cardeal que dissesse que o bispo Macedo não é autoridade religiosa porque não foi ordenado padre e só é seguido por ignorantes. Ora, autoridade religiosa, por definição, é quem como tal é aceito por uma roda de crentes, grande ou pequena, culta ou inculta. O próprio Jesus Cristo só foi aceito, no início, por uns poucos homens incultos, e certamente não teve de aguardar o beneplácito de cultíssimos cardeais para se tornar autoridade.

4.

“Os hierarcas das demais religiões, se recebem a veneração e obediência de seus fiéis, por outro lado têm de responder, perante a sociedade, pelos pontos de sua doutrina que pareçam duvidosos ou extravagantes aos olhos dos não-crentes. (…) Nenhum desses sacerdotes está em posição de furtar-se às cobranças que os de fora possam fazer à sua religião. É precisamente essa a posição que o sr. Verger ocupa na sociedade brasileira.”

Como Verger não era um hierarca da religião, e sim um etnógrafo que convivia com o grupo estudado, grupo este que bem sabia sobre sua posição, jamais alguém pretendeu cobrar de Verger algo que ele não se propunha como objetivo de vida ou científico. Conseqüentemente, nada poderia lhe ser cobrado senão do ponto de vista acadêmico, e isto sempre foi feito e cobrado muito caro o fato de ele não analisar seus dados e tomar uma posição sobre o papel destes cultos na sociedade brasileira.

Resposta: Conversa mole. Se os livros dele circulavam como “bíblias”, influenciavam religiosamente seus leitores. Por outro lado, os mesmos livros não apareciam ante o mundo acadêmico como meros estudos neutros, mas como apologia e – por que não dizê-lo – como propaganda dos cultos afro, e não deixaram de ser eficazes nesse sentido, como se vê pela ampla adesão de intelectuais e acadêmicos a esses cultos.

Assim, Verger, pela sua atuação prática, tinha força de autoridade, prestígio de autoridade, mas, como essa autoridade ficava implícita, ele podia a qualquer momento isentar-se da correspondente responsabilidade (ou ser dela isentado por solícitos admiradores como D. Rita).

5.

Também não é verdade que os sacerdotes de várias religiões não se furtem a responder sobre dogmas religiosos. TODOS fazem isto quando sabem que as questões são polemicas.

Resposta: No cristianismo e no judaísmo a apologética, com sua componente polêmica essencial, é uma das partes mais importantes da formação do sacerdote, e no Islam (onde não há sacerdócio formal), ela é obrigação estrita de todo crente. A polêmica com os descrentes e com os fiéis de outras religiões constitui – para nos atermos só aos textos clássicos do cristianismo – pelo menos uma quarta parte dos trezentos volumes (de mil páginas cada) da Patrística Latina e dos quatrocentos da Grega. Todas as Sumas católicas nada fazem senão reproduzir polêmicas correntes da época, e todo o imenso desenvolvimento da dialética como arte da discussão, entre Aristóteles e Hegel, foi devido exclusivamente ao clero católico, o que seria realmente um esforço inexplicável se tudo fosse para fugir das polêmicas. Mais modernamente, os jesuítas se tornaram célebres por sua habilidade argumentativa, e não há uma só objeção ao dogma católico que não tenha produzido centenas de livros e folhetos jesuíticos em resposta. Compreendo que D. Rita, com a cabeça cheia de antropologia, não tenha tido tempo para conhecer as religiões que ela julga provavelmente serem “de brancos” (talvez também de imperialistas), e se limite a projetar sobre elas os preconceitos do meio mais cretino, inculto e provinciano que existe, que é o da ciência social acadêmica (sobretudo brasileira).

Não é curioso que uma acadêmica ocidental, sem raízes africanas, saiba tanto sobre os cultos afro e ignore a sua tradição própria tradição de origem ao ponto de imaginar que os padres fogem de polêmicas, quando na verdade não fizeram senão polemizar por dois mil anos?

E não é curioso que esses antropólogos estudem tão profundamente uma só religião – justamente uma das mais estranhas ao seu meio de origem –, e ignorem tão profundamente todas as demais (exceto, eventualmente, as que foram postas na moda pela New Age)? Não é inevitável que, por falta de pontos de comparação, percam totalmente o senso das proporções e acabem recorrendo a conceitos inadequados a seu objeto, como por exemplo o conceito de “fé” aplicado a um culto mágico?

6.

E dizer que Pierre Verger ocupa uma posição na sociedade brasileira é um exagero, dado que a imensa maioria dos brasileiros desconhece quem ele seja. Talvez ele tenha um papel importante para o candomblé, e em muito menor grau a umbanda, por seu trabalho etnográfico.

Resposta: D. Rita viu quantas páginas inteiras de jornais e revistas prantearam a morte desse ilustre desconhecido? Viu quantos livros de arte ele, em vida, publicou em edições caríssimas financiadas por empresas milionárias? Viu quantas celebridades estrangeiras foram render-lhe homenagens em vida e no funeral? E note: todos os que falaram sobre ele jamais o apresentaram como um puro cientista, mas sempre como alguém que personificava o espírito mesmo da cultura afro.

Negar que Verger fosse uma celebridade e que essa celebridade fosse um emblema (ao menos publicitário e legitimador) do africanismo no Brasil é mais que um erro: é uma mentira tola.

7.

“Assim, por exemplo, no seu recente livro Ewé. O Uso das Plantas na Sociedade Yoruba (Salvador, Odebrecht, 1995) ele nos dá várias receitas de mandingas usadas no candomblé para matar pessoas, sem que a ninguém ocorra acusá-lo de pregar uma religião homicida – pois afinal ele está falando como observador científico e não como porta-voz responsável pela crença que prega. É um privilégio que nenhuma autoridade religiosa deste mundo pode invocar.”

Do ponto de vista da antropologia, ciência que Pierre Verger pretendia praticar (os antropólogos nem sempre aceitam o trabalho de Verger como antropologia e sim como etnografia (descrição detalhada e sem valores pré-estabelecidos de uma prática ou um fenômeno cultural), porque ele não faz a tal análise a que me referi acima, ele certamente não está fazendo proselitismo do assassinato apenas porque mostra em seus livros que existe em magia uma receita para matar pessoas. Do ponto de vista científico, que é o ponto de vista de Verger, nenhuma fórmula mágica será capaz de matar uma pessoa. As pessoas morrem de doenças (físicas ou psicossomáticas) e acidentes, e jamais pela interferência de qualquer elemento sobrenatural ou vontade divina. E como ele não escrevia para religiosos e sim para a academia, este problema não deveria existir.

Resposta: Se um apologista diz que numa determinada religião há ritos e receitas para matar pessoas e que essa religião é uma coisa linda, que é que se pode concluir senão que, do ponto de vista dessa linda religião e desse lindo apologista matar pessoas por meio de ritos e receitas é coisa normal e louvável? Não há como fugir disso, por mais piruetas verbais que se dêem.

8.

Apenas, Pierre Verger esqueceu que numa sociedade urbana, pluricultural, cosmopolita, seus trabalhos estariam em livrarias, e tanto acadêmicos como não acadêmicos teriam acesso a seus trabalhos, lendo-os e interpretando-os como bem quisessem. (…) Mas como Verger era um fotógrafo, mesmo seus textos têm esta preocupação com o detalhe, com a minúcia, muitas vezes vistas pelos pais e mães de santo como uma traição de Verger…

Resposta: Ou seja: o único erro do Sr. Verger foi dar com a língua nos dentes, revelando aos profanos um segredo homicida que deveria ficar restrito ao círculo de iniciados.

9.

“Para piorar as coisas, a nenhuma autoridade religiosa deste mundo é moralmente permitido ensinar a prática de ritos sem que esteja persuadida da eficácia desses ritos.”

Mas Verger não acreditava que estava ensinando ritos. Estava descrevendo. Quem vai aprender nos livros dele é porque não sabe nada e deveria ter aprendido com seus mais velhos.

Resposta: Mas esses “mais velhos” teriam de ser tremendamente hipócritas para, em público, dar um cargo honorífico ao sr. Verger e, em particular, advertir a seus filhos para que não acreditassem numa palavra do ensinamento dele, não é verdade? De modo que, das duas uma: ou reconheceram sinceramente que o Sr. Verger tinha alguma autoridade para falar em nome da sua religião ou eram todos uns embrulhões como ele. Tertium non datur.

10.

“Um rabino não submeterá meninos ao bar-mitzvah, ou um padre os submeterá ao batismo, dizendo-lhes ao mesmo tempo que se trata provavelmente de ritos inócuos, sem eficácia neste mundo ou no outro.”

Certamente. Mas Verger, não era um sacerdote. O Sr. Olavo se equivoca novamente, tomando como premissa, penso, o fato de Pierre Verger ter recebido o oye (cargo) de Oju Obá depois que estudou o jogo de búzios. Esta foi a maneira que o candomblé encontrou para submeter Verger ao duplo código, exigindo de modo sutil, que ele se comprometesse minimamente com a religião. O que ele se recusou a fazer, deixando bastante claro seu respeito e admiração, mas sua posição observador e não de adepto.

Resposta: O motivo político, oportunista ou maquiavélico que levou os candomblezeiros a dar o cargo ao Sr. Pierre Verger é absolutamente irrelevante, tal como é irrelevante, para a legitimidade do cargo, que um sujeito seja nomeado cardeal por ser um santo ou por ser sobrinho do prefeito. Se ao mesmo tempo Verger, continuando a fazer propaganda do candomblé, se recusava a assumir uma responsabilidade explícita, isto só confirma o que eu disse: era um homem de dupla face, o bilinguis maledictus de que fala o Evangelho.

11.

“Mas o caráter peculiar de sua religião e a posição ainda mais peculiar que dentro dela ocupa permitem que o sr. Verger ensine os ritos homicidas ao mesmo tempo que deixa numa conveniente ambigüidade as questões que uma consciência religiosa sã jamais deixaria de buscar esclarecer: Esses ritos funcionam ou não? São praticados ou não?

Novo equívoco. Estas perguntas não se colocam pra um cientista. Se funcionam ou não funcionam a partir da fórmula não é importante, pois se tem como premissa de que são meras abstrações rituais, onde o desejo de morte do outro é mais importante que a fórmula.. O importante é que se acredite que funcione. Todo o sistema de relações vai mudar a partir da idéia que se tenha de que é possível matar de longe. O mesmo para se são praticados ou não.

RespostaBem sei que os antropólogos pensam assim, mas o fato de pensarem assim torna ilegítimo o ponto-de-vista antropológico e reduz a antropologia à pseudo-ciência que ela jamais deixou de ser. Dizer que a eficácia mortífera de um instrumento qualquer é irrelevante para o seu estudo, que o que importa é a “função social” da crença nessa eficácia, eis um pressuposto absurdo e pueril que os antropólogos aceitam como um dogma, sem nem pensar na enormidade do que estão dizendo. Pois, se a eficácia do instrumento é objetivamente comprovada, o motivo de crer na sua eficácia é um; e, se não é jamais comprovada, o motivo é outro completamente diverso. Acreditar que essas duas “crenças” possam ter numa cultura um papel idêntico é tapar o sol com a peneira.

Curiosamente, os mesmos antropólogos que proclamam a identidade funcional do homicídio e do mero desejo de matar são os primeiros a denunciar como violência repressiva injusta os processos contra as bruxas na Idade Média, alegando que a intenção mortífera das bruxarias era apenas uma ilusão inofensiva.

De um ponto de vista mais geral, tive recentemente, no New Europe College de Bucareste, uma troca de idéias com o Prof. Jacques Julliard, um estudioso de religiões da Universidade de Paris, o qual não teve remédio senão concordar com as minhas observações, que transcrevo a seguir:

Pour plus kantien qu’on se veuille, les réligions ne sont pas que des expressions du désir et du sentiment. Elles ont des doctrines qui portent sur la réalité et qui font des jugements sur le vrai et le faux. Quelques uns de ces jugements concernent des realités d’ordre supra-sensible que la tradition kantienne jamais reniée par l’establishmentuniversitaire a quelque raison de mettre au-delà de nos moyens de vérification, mais quelques autres concernent des faits – ou supposés tels –, par exemple que les armées du Pharaoh ont eté englouties par la mer, que Jésus-Christ a guéri des lépreux ou qu’il a multiplié des pains, que tel saint a fait tel miracle à tel endroit ou qu’un homme illettré a écrit en langue très cultivée le plus beau livre de la littérature arabe. La verité des jugements de ce dernier tipe, qu’il n’est pas impossible d’établir du moins en théorie par des moyens purement humains, est censée valoir comme indice, si ce n’est pas comme preuve, des jugements du premier type, c’est à dire, comme des renforcéments apportés à la foi par la miséricorde divine. La connexion inséparable de ces deux types de verités est même quelque chose d’essentiel et d’omniprésent en toutes les grandes réligions. Depouillées de leur prétention à dire la vérité, et surtout de cette solidarité mutuelle des verités visibles et invisibles, les réligions ne deviennent que des écritures indéchifrables, des esthétismes muets que chacun est libre d’interpreter à son aise, c’est à dire, elles n’ont plus de sens que projéctif et, à vrai dire, hallucinatoire. C’est comme si on avait la prétention d’expliquer scientifiquement la symptomatologie paranoïaque d’un homme qui s’affirme persecuté pour un chien sans nous demander le moins du monde s’il-y-a où s’il-n’y-a pas un chien quelconque derrière lui.

Cependant, il est un fait incontestable que tout l’approche moderne et soi disant scientifique des réligions, quand il ne nie pas tout d’emblée et sans la moindre discussion la verité de leurs doctrines, commence du moins pour faire abstraction de leur vérité ou fausseté et pour ne les étudier “qu’en tant que phénomènes sociaux” (où historiques, anthropologiques, sémiotiques, etc.), comme si leur phenomenalité même n’était pas celle d’une doctrine qui se présente comme vraie; comme si des affirmations coupées de toute rélation avec leur objet pouvaient encore être “comprises” si ce n’est que comme des pures formes vides. On parle donc de croyance réligieuse, de rites réligieux, de code moral réligieux, de symbolisme réligieux, comme si tout cela était inventé à propos de rien et d’une façon complètement indifférente aux objets spirituels et matériels qui en sont le contenu intentionnel. Il est presque inévitable qu’une telle façon d’envisager la réligion finisse pour en faire un schème vide qui peut être transposé et utilisé en profit de quelque doctrine que ce soit. Sous cet aspect, l’étude prétendument scientifique des réligions est, par un côté, une succession d’éssais pour fuir le noyau de son sujet, et, d’un autre côté, il est un instrument d’adaptation des extériorités de la réligion aux bésoins de doctrines non-réligieuses, c’est à dire, il est une machine à produire des “réligions de substitution”. La question que je vous pose est partant celle-ci: Comment des sciences tellement conçues peuvent expliquer le phénomène des réligions de substitution? Est-ce que l’intélligence de nos contemporains a réussi à produire ce prodige de petitio principii qui sérait une science capable de déduire de sa propre existence la nature de son objet?

12.

“Pois, se declaradamente não funcionam, sua religião é uma farsa. Se funcionam, é intrinsecamente homicida. Se funcionam e são correntemente praticados, já não se trata somente de uma doutrina homicida, mas de um costume homicida generalizado e legitimado pela religião.”

Você nota que todo o problema dele é que ele ACREDITA que se a fórmula funcionar os que lêem os livros vão sair matando todo mundo e a culpa é do Verger?

Resposta: Se eu acreditasse estritamente nessa hipótese ela não seria hipótese e não teria sido escrita com a conjunção condicional “se”. E uso a mesma conjunção para dizer: Se D. Rita não fosse uma pessoa tremendamente confusa – como em geral o são os cientistas sociais –, ela se absteria de buscar compensação para a fragilidade de seus argumentos ocultando-se por trás de diagnósticos conjeturais sobre as pretensas intenções ocultas de seu adversário.

13.

Que se ele conhecesse o candomblé, jamais poderia supor que é uma religião homicida, senão com o malicioso intuito de ver nela algo demoníaco, como a igreja católica sempre fez, os protestantes e etc. por não compreenderem e não se darem o trabalho de compreender o pensamento destas religiões? Elas, pelo contrário, são religiões de vida. No candomblé não existe pecado e não é necessário morrer pra ser feliz.”

Resposta: Precisamente: as religiões “da vida” são precisamente aquelas onde a violência ritual contra seres humanos é um costume estabelecido. Sugiro a D. Rita que, em vez de ficar lendo dezenas de antropologuinhos de vigésimo time, leia logo René Girard e tire essa dúvida para sempre. A bibliografia não é extensa: bastam La Violence et le Sacré, Le Bouc Emissaire Choses Cachées depuis la Fondation du Monde.

14.

“Convenhamos que são questões incômodas. Mas por que conceder ao sr. Verger o privilégio de permanecer na indefinição ante essas perguntas, quando as demais autoridades religiosas são constantemente cobradas até mesmo por violências indevidas e sem relação com o dogma – ou mesmo contrárias a ele – que seus correligionários tenham cometido no passado?” (Olavo de Carvalho, em “A divida dos faraós”, em O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras)

Pois então. Verger nunca foi uma autoridade religiosa. Talvez apenas do ponto de vista de algumas pessoas como o Sr. Olavo. Logo, todo o texto é um grande equívoco ao pedir explicações que Verger não deve e nunca deveu e que agora, depois de morto, jamais dará. Gostaria apenas de entender por que o texto se chama “A dívida dos faraós”, pois nada vi nele que justificasse tal título.

Resposta: O texto chama-se “A dívida dos faraós” porque diz logo de cara o seguinte: “Movidos pela oratória de intelectuais esquizofrênicos, os negros agora exigem uma indenização dos bisnetos de seus antigos senhores, mas ao mesmo tempo gabam-se de ser descendentes dos faraós, que escravizaram dezenas de povos durante quinze séculos. Não vejo como poderão escapar da pergunta: — Por que vocês não pagam primeiro o que devem aos judeus?” Não vejo como explicar isso mais claro, mas talvez D. Rita, de tanto estudar antropologia, não tivesse tempo de ler a Bíblia para saber que os judeus foram escravos dos egípcios.