O texto sem mundo

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 3 de setembro de 1998

Um homem que decidisse dilapidar sua fortuna em champagne, cruzeiros marítimos e corridas de cavalos estaria fazendo alguma coisa inequivocamente estúpida por meios inequivocamente elegantes. Esse exemplo ilustra a idéia de que a elegância dos meios nada tem a ver com o valor dos fins. Aplicada às teorias hermenêuticas em voga no nosso meio universitário, ela nos ensina que uma teoria perfeitamente idiota pode ser exposta por meio de raciocínios sumamente elegantes que lhe dêem ares de alta sabedoria.

Muitas dessas teorias, aquelas que vão do estruturalismo ao desconstrucionismo, baseiam-se no pressuposto de que o conhecimento objetivo de um texto consiste em enfocá-lo “em si mesmo”, como objeto a ser descrito e analisado, sem nenhuma referência a significados exteriores.

Mas, para provar que é possível explicar um texto “em si mesmo” e sem referência a nenhum objeto exterior, seria preciso, primeiro, demonstrar que esse texto efetivamente não remete a um objeto exterior, que ele é efetivamente um universo fechado, completo e auto-explicável. Caso contrário, a hipótese da clausura textual seria ela mesma um texto cerrado que não se referiria a objeto algum, isto é, que nem de longe poderia ter algo a ver com o texto que diz analisar.

Seria preciso esclarecer, em seguida, se o autor do texto percebeu ou não estar escrevendo a respeito de nada ou se ele, ao contrário, tinha a ilusão de estar se referindo a alguma coisa, isto é, estava radicalmente enganado quanto à índole do seu próprio escrito, a qual só será revelada por nós. Nesta última hipótese, seria preciso dar algum fundamento razoável à nossa pretensão de conhecer o nexo interior de um texto mais do que foi preciso para produzi-lo.

Seria preciso, ademais, demonstrar como veio a ser possível que nossa explicação, por sua vez, não constituísse um todo fechado, que ela, na medida em que tem por objeto um outro texto, escapasse miraculosamente à lei da clausura textual que ela mesma proclama.

Como essas condições jamais se realizam nem mesmo hipoteticamente, por impossibilidade absoluta de concebê-las de modo simultâneo sem autocontradição lógica, os adeptos da teoria do texto fechado recorreram ao expediente de alegar que um texto se refere a outro texto que se refere a outro texto e assim por diante indefinidamente, de modo que o conjunto dos textos só fala de si mesmo sem jamais chegar a se referir a um objeto verdadeiramente exterior. Concedendo que o texto não é um todo fechado, asseguram que o mundo textual no seu conjunto o é.

Mas isso não melhora em nada a situação, porque um texto não é outro texto, e restaria explicar como um texto pode ter por objeto outro texto sem a mediação de algo que não é texto, como por exemplo os olhos do leitor, o papel ou, no caso da leitura em voz alta, o ar. Afinal, textos não lêem textos.

Evidentemente o clausurista fanático poderia objetar que essa mediação é apenas a condição exterior da existência dos textos e nada tem a ver com o seu significado, mas, esta afirmação por sua vez, distinguindo entre o que é texto e o que não é, fala de algo que não é texto. Ela escapa, portanto, à regra que proclama. Então, ou admitimos que essa afirmação não é texto, embora possa ser feita por escrito, ou admitimos que pelo menos um texto, isto é, aquele mesmo que o nosso clausurista acaba de escrever, escapa à lei universal da clausura textual – o que nos coloca na desagradável contingência de ter de justificar teoreticamente essa mágica exceção.

Não resta, enfim, para explicar o prestígio hipnótico dessas teorias, senão a hipótese de que a impossibilidade mesma de perceber aí algum sentido razoável contribua para fixar nelas, como num quebra-cabeças indefinidamente auto-renovável, a atenção do leitor. Como a busca de solução ao que não tem solução é um movimento masturbatório que excita o desejo e a fantasia em progressão geométrica à medida que aumenta a intensidade da dedicação, e vice-versa, logo o leitor entra num estado alterado que, com um pouco de boa vontade, será tomado por sinal de inteligência. E como, enfim, esse estado é compartilhado por milhares de pessoas dedicadas por ofício universitário a esse gênero de práticas, acaba por se formar entre elas algo como um campo semântico especial, semelhante ao dos drogados ou ao dos aficionados de UFOs, que pela interconfirmação de cacoetes verbais lhes dá o sentimento de saber do que estão falando – como se fosse possível, na sua teoria, falar de alguma coisa.

Uma boa parte da nossa atividade universitária no domínio das ciências humanas consiste precisamente disso e de nada mais.

Ciência e demência

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 20 de agosto de 1998

Vocês já tiveram a ingrata ocasião de tentar aplacar os temores de um paranóico quanto à conspiração urdida pelo universo para destruí-lo?

Quem tentou conhece a dificuldade do empreendimento. Toda argumentação é impotente no caso. Um doente de paranóia raciocina tão bem quanto qualquer outra pessoa, às vezes até um pouco melhor: o medo acende todos os seus bytes de uma vez e ele nos prova , por a + b, que as rotas dos aviões foram propositadamente desviadas para bombardear sua casa, que seu vizinho instalou no porão uma máquina para ler seus pensamentos, etc., etc. Logo percebemos que o erro dele não está no raciocínio, mas nas premissas. Ele parte de informações erradas, porque lhe faltam certas percepções intuitivas e o senso das proporções. Como estas coisas só se adquirem por experiência direta, e as palavras só podem transmitir signos e não os fatos mesmos, é inútil tentar reconduzir o infeliz à realidade comum: nosso discurso cai e se perde no fosso intransponível entre dois mundos eternamente separados.

É desesperador.

Pois bem: de uns anos para cá, discutir com certos intelectuais – chamemô-los assim – tornou-se uma experiência desse tipo. Eles falam, raciocinam, argumentam como se fossem pessoas normais, porém, depois de uns minutos de conversa, percebemos que eles simplesmente não sabem do que estamos falando. Provavelmente a dose de informações eruditas desencontradas ou falsas que receberam na universidade os desarticulou de tal modo que se tornaram incapazes de confiar em suas próprias percepções. Não crendo mais no que enxergam individualmente, apegam-se com desespero ao que imaginam coletivamente. É o primeiro grau da maluquice: a histeria. Mas o histérico, se toma o imaginado como percebido, ao menos só faz isto em estado de excitação. Aos poucos, porém, a quantidade de estímulo necessária para produzir o equívoco vai diminuindo, como num experimento de hipnose, em que a força do hábito faz com que sinais cada vez mais brandos emitidos pelo hipnotizador bastem para produzir o transe. O sujeito que começara por confundir intensidade e realidade termina por afirmar, com toda a calma e frieza, que realmente não sabe se um feto humano é humano, que não enxerga diferença moral entre fazer sexo com uma mulher adulta e com um bebê de 2 anos, que não vê distinção de qualidade entre a Catedral de Chartres e as obras de Basquiat, que entre o carinho físico e uma facada no estômago a diferença é apenas de grau, que a consciência humana não existe, que o amor de uma mãe por seus filhos é efeito da exploração capitalista do proletariado, etc., etc. Aí ele está totalmente esquizofrênico e provou, portanto, sua habilitação a uma cátedra universitária.

Um psicastênico não percebe coisas por trás das palavras, e o enviamos ao médico; um desconstrucionista também não, e lhe confiamos a educação de nossos filhos.

O chamado progresso do conhecimento obriga-nos a discutir, fingindo seriedade, assuntos que um pythecantropus erectus desprezaria como indignos de sua inteligência. Sempre que me vejo na contingência de ter de fazer isso, tenho de me imbuir daquele espírito de mentira piedosa que se sobrecarrega de precauções para não contrariar o louco de frente. Tenho medo de terminar como os empregados do Henrique IV de Pirandello, os quais, à força de fingir que são cortesãos de Henrique IV para não contrariar o patrão maluco que imagina que é Henrique IV, terminam acreditando que são mesmo cortesãos de Henrique IV. Quando não agüento mais e parto para a gozação ostensiva, creiam: faço-o somente em legítima defesa da minha saúde.

Uma das mais trágicas ironias da História é que o prestígio social da ciência tenha contribuído para reduzir multidões inteiras de intelectuais a um estado de idiotice mal disfarçado pela linguagem pedante em que se expressa. Pois a ciência é apenas uma das formas derivadas da razão, e cultuada fora de um senso global da racionalidade se torna um fetiche hipnótico. Quando um sujeito, sob a pressão da vida moderna, vai perdendo a capacidade de perceber certas coisas, certas qualidades, certas diferenças, ele pressente, num primeiro momento, que está ficando maluco. Mas, em seguida, quando lê que “não há provas científicas” de que essas coisas existam, sente um alívio tremendo e, escorado na autoridade da ciência, proclama que cego é quem as vê. Raramente ou nunca um sujeito imbuído dessa ilusão encontrará um professor honesto para lhe ensinar que a ausência atual de provas científicas é, na rigorosa acepção do método, fraquíssimo argumento contra a existência do que quer que seja, principalmente daquilo que se conhece de longa data por percepção direta. Mas, para ensinar isto, é preciso algo mais que conhecimento científico: é preciso saber o que é ciência e o que não é – e isto, em pleno apogeu da autoridade científica, se tornou para a quase totalidade das classes falantes algo como um mysterium tremendum.

O Jardim das Aflições: Epicuro e Marx

O Jardim das Aflições, Cap. VI, § 16-17

  • 16. Epicuro e Marx

Epicuro inverte, como se viu no § 10, a relação lógica entre a prática e a teoria. Se normalmente a teoria é o fundamento lógico da prática e esta é a exemplificação daquela no campo dos fatos, no epicurismo a prática é que produz artificialmente a condição psicológica que tornará crível a teoria, e o discurso teórico não será nada mais do que o elemento discursivo da prática, a tradução verbal da crença produzida pelo hábito. A teoria epicúrea não descreve o mundo percebido, mas sua prática altera, mediante exercícios, a percepção do mundo, para que se torne semelhante à teoria. Não se trata de compreender o mundo, mas de transformá-lo.

O leitor deve ter reconhecido a sentença anterior: é a 11ª Tese sobre Feuerbach de Karl Marx. Tudo leva a crer que a convivência do jovem Marx com a filosofia de Epicuro — matéria de sua tese de docência — deixou no marxismo acabado marcas mais profundas do que os estudiosos geralmente supõem e do que ao próprio Marx adulto interessou declarar.  A simbiose marxista da teoria com a prática não vem de Hegel, mas é uma herança epicúrea. Acontece, no entanto, que essa simbiose, abolindo a distância normal entre a esfera da ação e a da especulação, suprime, em Marx como em Epicuro, a diferença entre o efetivo e o possível, e nos precipita numa crise alucinatória onde já não há lugar para o recuo teorético que fundamenta a noção mesma de verdade objetiva1. O desejo, o ímpeto, a ambição — da alma individual ou das massas revolucionárias — torna-se o fundamento único de uma cosmovisão onde a teoria já não serve senão para estimular retoricamente a ação prática ou para, uma vez realizada a ação, legitimar como satisfatório o que quer que tenha dela resultado na prática. Mesmo que a ação produza efeitos totalmente diversos dos esperados, já não haverá distanciamento crítico suficiente para julgá-los, e eles serão não somente aceitos, mas celebrados pela teoria como normais e desejáveis: a teoria não tem aí nenhum valor autônomo, está reduzida ao papel de uma racionalização a posteriori, de uma apologia do fato consumado. A capacidade das esquerdas mundiais para justificar em nome de uma utopia humanitária as piores atrocidades do regime comunista — e, exterminado o comunismo na URSS, para continuar a pregar com a maior inocência os ideais socialistas como se não houvesse nenhuma relação intrínseca entre eles e o que aconteceu no inferno soviético —, é uma herança mórbida que, através de Marx, veio do epicurismo. Não é de estranhar que a evolução de um século do pensamento marxista tenha desembocado em Antonio Gramsci, o teórico do “historicismo absoluto”, que assume declaradamente aquilo que em Marx estava apenas insinuado e implícito: a abolição do conceito de verdade objetiva e a submissão de toda atividade cognitiva às metas e critérios da praxis revolucionária; a absorção da lógica na retórica, da ciência na propaganda ideológica2. Também é compreensível que, numa outra e paralela linha dessa evolução, que leva a Reich e a Marcuse, o desejo erótico, e já não a força das causas econômicas objetivas, seja a mola mestra que move o progresso e dispara a revolução. Estes desenvolvimentos manifestam à plena luz do dia tendências que em Marx já estavam latentes como heranças do seu epicurianismo de origem. O fato de que tenham ressurgido ao longo da evolução do marxismo mostra que Marx soube recalcá-las, mas não superá-las. Em vão pensadores marxistas como Lukács ou Horkheimer, mais afinados com as tradições clássicas do Ocidente e ansiosos de filiar Marx a elas, protestaram contra a invasão do irracionalismo que, sobretudo a partir da década de 60, terminou por contaminar toda a esquerda mundial: como dizia o dr. Freud, o passado rejeitado volta com redobrada força3.

Marxismo e epicurismo parecem ir em direções opostas: este, fugindo do mundo, para fechar-se no jardim com a comunidade dos eleitos; aquele, para fora, para a ação coletiva que vai transformar o mundo. Mas é uma diferença de escala antes que de natureza: nos dois casos, trata-se de envolver seres humanos numa praxis absorvente e hipnótica, que os afastará para sempre da tentação da objetividade, não deixando margem para o recuo teorético e aprisionando todas as suas energias intelectuais num circuito fechado de autopersuasão retórica. Trata-se de neutralizar a inteligência humana, colocando-a no encalço de metas utópicas que, pela dialética infernal que transfigura cada derrota em sinal da vitória próxima, a absorverão tanto mais completamente quanto mais os resultados obtidos no esforço forem cair longe das finalidades sonhadas. É somente isto que explica o fenômeno de milhares de intelectuais se recusarem, durante quase um século, a enxergar os males do comunismo, ou, depois da queda do Muro de Berlim, a reconhecer qualquer conexão entre esses males e o ideal socialista. Não é realmente o efeito de um singular escotoma que a intelectualidade esquerdista veja em todo movimento de direita, mesmo tímido, a marca de um ressurgimento nazifascista, e de outro lado possa crer que o ideal socialista emergiu do Gulag isento de toda mácula? Não é uma estranha morbidade que a ideologia que reduz a ação dos indivíduos a mera expressão das correntes ideológicas profundas explique as sessenta milhões de vítimas de Stálin como resultado da maldade fortuita de um só homem, sem qualquer raiz na ideologia por ele professada? Que os defensores intransigentes do conceito da sociedade como um todo substancial, como bloco orgânico onde se fundem inseparadamente ideologia e prática, expliquem os crimes do governo soviético como desvios acidentais totalmente alheios à ideologia marxista? Não é mesmo demente a obstinação de manter a imagem de Karl Marx — ou mesmo a de Lênin — limpa de todo contágio com os crimes da ditadura soviética, quando nem mesmo Jesus Cristo deixou de ser responsabilizado pelas crueldades da Inquisição? Não é estranho que após tudo o que se revelou sobre a tirania comunista o socialismo ainda continue a ser um ideal respeitável, quando crimes de muito menor escala bastaram para manchar de sangue para sempre a imagem do fascismo italiano, do franquismo ou das ditaduras latino-americanas? Não é enfim uma anomalia intelectual que aquela filosofia que mais enfatizou o arraigamento histórico-social dos conceitos abstratos — condenando como “metafísica” toda admissão de essências a-históricas ou supra-históricas — apresente agora o socialismo como essência pura incontaminada por um século de experiência comunista? Como explicar a cegueira obstinada de filósofos, de intelectuais, de artistas, entre os mais notáveis do século, se não pela formidável potência ilusionista inerente à raiz mesma do marxismo, pela sua capacidade quase diabólica de transfigurar o quadro das aparências e levar as pessoas a verem as coisas diferentes do que são?

Que Marx tivesse, pessoalmente, um tremendo senso do teatro, do fingimento, da prestidigitação, é coisa que os biógrafos já estabeleceram com certeza suficiente4. Mas isto não bastaria para dar à sua filosofia tamanho poder de ludibriar as consciências. Quando, no entanto, notamos que o primeiro interesse acadêmico do jovem Marx foi devotado ao estudo do príncipe dos ilusionistas filosóficos, e em seguida constatamos ser idêntica, em Epicuro e nele, a mixórdia proposital e alucinógena da teoria na prática e da prática na teoria, então compreendemos a virulência inesgotável da herança epicurista, capaz de atravessar os milênios e ressurgir a cada novo empenho cíclico de instaurar em alguma parte do mundo o reinado da impostura.

 

  • 17.Comentários à 11ª “Tese sobre Feuerbach”

        Antes que te derribe, olmo del Duero,
con su hacha el leñador, y el carpintero
te convierta en melena de campaña,
lanza de carro o yugo de carreta;
antes que rojo en el hogar, mañana,
ardas de alguna mísera caseta,
al borde de un camino;
antes que te descuaje un torbellino
y tronche el soplo de las sierras blancas;
antes que el río hasta la mar te empuje
por valles y barrancas,
olmo, quiero anotar en mi cartera
la gracia de tu rama verdecida.
Mi corazón espera
también, hacia la luz y hacia la vida,
otro milagro de la primavera.

ANTONIO MACHADO, “A un olmo seco”
Posso explicar melhor e dar um fundamento mais “técnico” ao que foi dito no parágrafo anterior. O leitor que preferir saltar direto para o § 18 não perderá o fio do argumento, apenas se privará de uma demonstração mais rigorosa — e mais entediante.

“Até agora — diz a 11ª Tese5 — os filósofos se limitaram a interpretar o mundo. Cabe-lhes agora transformá-lo.”

  1. A quem se dirige a convocação? Se Marx se reporta, nesta tese, aos conceitos tradicionais de theoriae de praxis, temos de admitir que de fato os filósofos, desde sempre, se ocuparam de interpretar o mundo, de fazer teoria, porque julgavam que esta era a sua tarefa específica, que os distinguia dos outros homens, ocupados por seu turno com a praxis. Os filósofos interpretavam o mundo, enquanto os demais homens o transformavam. A maioria dos homens esteve sempre envolvida com a praxis, e desinteressada da theoria, da contemplação da verdade. Ao adotarem a atitude inversa à da maioria, os filósofos faziam um contrapeso dialético à praxis: a vida contemplativa opunha-se à vida ativa. Ora, se os homens não-filósofos estiveram desde sempre ocupados em transformar o mundo enquanto o filósofo o contemplava e interpretava, que sentido teria convocá-los a uma praxisna qual já estão envolvidos por hábito imemorial, e da qual jamais pensaram em sair? Não pode ser este o sentido da tese de Marx. Sua convocação não se dirige aos homens em geral, tomados indistintamente, nem muito menos aos homens da praxis, mas especificamente aos filósofos. São eles que estiveram ocupados somente em interpretar o mundo. Portanto, é a eles que cabe convocar a uma mudança de atitude. A 11ª Tese sobre Feuerbach propõe, essencialmente, uma mudança básica na atividade do filósofo enquanto tal. Não se trata de inaugurar só uma nova praxis, mas um novo tipo de theoria, que por sua vez consistirá em praxis.
  2. Para saber em que consiste essa mudança, precisamos entender qual a atitude que a antecedeu. Em que consiste a atitude interpretativa, que Marx opõe à atitude transformante? Sendo theoriapraxis conceitos clássicos da filosofia grega, é a esta última que devemos reportar-nos. (É verdade que o termopraxistem em Marx, ou pretende ter, uma acepção própria e diferente, mas isto não vem ao caso, pois, se os filósofos antigos a que Marx visa faziam theoria em oposição à praxis, não podemos supor que tivessem em mente o sentido marxista da palavra praxis, e sim o sentido grego).

Na filosofia grega, a palavra theoria tinha uma acepção precisa. Era correlata das noções de logos (“razão” ou “linguagem”), de eidos (“idéia” ou “essência”), de ón (“ser”, “ente”) e de aletheia(“patência”, “desvelamento”, revelação da verdade oculta).

O homem teorético, o filósofo, não se ocupava genericamente de contemplar, de olhar, num sentido em que os demais homens também podiam contemplar e olhar. Por exemplo, todos os homens contemplavam os espetáculos de teatro, a beleza dos seres humanos e da paisagem etc. A contemplação do homem comum podia ser lúdica, estética, utilitária ou o que quer que fosse. A do filósofo, não. Era um tipo muito determinado de contemplação, com um motivo específico e um objetivo específico, que faziam dela, propriamente, uma contemplação filosófica e não outra qualquer. O filósofo contemplava as coisas para captar a sua essência (eidos), patenteando (aletheia) o seu verdadeiro ser (ón); em seguida o filósofo dizia (logos) o que era essa coisa, patenteando em palavras (aletheia) o verdadeiro ser (ón) que estava oculto.

Dito de outro modo, as coisas, os fenômenos, eram para o filósofo signos, que ele decifrava em busca do significado ou essência. Entre o signo e o significado, a chave interpretativa era a razão ou logos. Pela razão, o homem filósofo saltava de um plano para o outro: do plano da fenomenalidade instável, movediça, enganosa, para o plano das essências, do ser verdadeiro. Este plano era considerado superior, por abranger e ultrapassar o mundo dos fenômenos (ele contém todos os fenômenos manifestos, e mais um sem-número de essências não manifestadas ou possibilidades), e também por ser estável, imutável, eterno. Esta postura se tornou mais clara e autoconsciente a partir do platonismo, porém já era a dos eleáticos. Em suma, ela se baseia na crença de que todos fatos e todos os entes são fenômenos — “aparecimentos” — de alguma coisa: são exteriorizações ou exemplificações das essências ou possibilidades, contidas eternamente na Inteligência Divina. O filósofo grego contemplava as coisas, portanto, sub specie æternitatis, isto é, na categoria da eternidade, à luz da eternidade; buscava nelas a sua significação eterna, superior à aparência fenomênica e transitória. Esta contemplação conferia a essas coisas, portanto, uma dignidade e uma realidade superiores, uma consistência ontológica superior. Pouco importa, para os fins desta análise, a diferença entre platonismo e aristotelismo. Para Platão, as essências constituíam um mundo separado, transcendente; para Aristóteles, o núcleo inteligível era imanente ao mundo sensível; mas em ambos os casos tratava-se de passar da fenomenalidade imediata a um estrato mais profundo e permanente.

A interpretação (hermeneia) das aparências consistia nessa subida de nível ontológico, desde o ente fenomênico até o ser essencial. O termo hermeneia deriva do nome do deus Hermes, ou Mercúrio, o deus psicopompo, isto é, “guia das almas”, encarregado de levá-las na escalada e descida através dos mundos ou planos de realidade, do sensível ao inteligível, do particular, transitório e aparente ao universal e estável. Nisto consistia, basicamente, a postura interpretativa do filósofo grego.

  1. Qual a diferença essencial entre a atitude contemplativa — ou interpretativa — e a atitude transformante, isto é, entre a theoriae a praxis?

3.1. A theoria, ao elevar o objeto até o nível da sua idéia, essência ou arquétipo, capta o esquema de possibilidades do qual esse objeto é a manifestação particular e concreta. Por exemplo, o arquétipo de “cavalo”, a possibilidade “cavalo”, pode manifestar-se em cavalos pretos ou malhados, árabes, percherões ou mangalargas, de sela ou de trabalho etc. Pode manifestar-se em prosaicos cavalos de carroças ou em cavalos célebres e quase personalizados como o cavalo de Alexandre . Pode manifestar-se em seres míticos que “participam da cavalidade”, como o pégaso ou o unicórnio, cada qual, por sua vez, contendo um feixe de significações e intenções simbólicas. Enfim, a razão, ao investigar o ser do objeto, eleva este último até o seu núcleo superior de possibilidades, resgatando-o da sua acidentalidade empírica e restituindo, por assim dizer, seu sentido “eterno”. A conseqüência “prática” disto é portentosa. Ao conhecer um arquétipo, sei não apenas o que a coisa é atualmente e empiricamente, mas tudo o que ela poderia ser, toda a latência de possibilidades que ela pode manifestar e que se insinua por trás da sua manifestação singular, localizada no espaço e no tempo.

praxis, ao contrário, transforma a coisa, isto é, atualiza uma dessas possibilidades, excluindo imediatamente todas as demais. Por exemplo, uma árvore. Se investigo o objeto “árvore” para captar o seu arquétipo, tomo consciência do que ela é, do que poderia ser, do que ela pode significar para mim, para outros, em outros planos de realidade etc. Porém, se a transformo em cadeira, ela já não pode transformar-se em mesa ou estante, e muito menos em árvore. De cadeira, ela só pode agora transformar-se em cadeira velha, e depois em lixo.

3.2. Para o filósofo, portanto, o fenômeno, a aparência sensível imediata é sobretudo um signo ou símbolo de um ser. Para o homem da praxis, a aparência é sempre matéria-prima das transformações desejadas. A investigação teórica insere o ser no corpo da possibilidade que o contém, e o explica e integra no sentido total da realidade. A praxis, ao contrário, limita suas possibilidades, realizando uma delas, sem via de retorno. Para a theoria, o ente é sobretudo a sua forma, no sentido aristotélico, isto é, aquilo que faz com que ele seja o que é; para a praxis, o ente é sobretudo matéria, isto é, aquilo que faz com que ele possa tornar-se outra coisa que não aquilo que é. Não se deve confundir esta oposição com a do “estático” e a do “dinâmico”, porque o dinamismo interno faz parte da forma (por exemplo, a forma da semente é a planta completa em que ela tem o dom de se transformar). Mais certo é dizer que a theoria se interessa pelo que um ente é em si e por si, e a praxis se interessa pelo que ele não é, pelo ser secundário, às vezes pelo falso ser ou arremedo de ser que podemos fabricar com ele. Era neste sentido que as escrituras hindus negavam que a ação pudesse trazer conhecimento, de qualquer espécie que fosse. A ação produz apenas transformação, fluxo de impressões, ilusão, da qual saímos apenas pelo recuo reflexivo posterior, pela “negação” teorética e crítica da ação consumada: o espírito filosófico, potência latente no homo sapiens, só se atualiza como reflexão sobre as desilusões do homo faber6.

3.3. Se a praxis requer alguma teoria, esta teoria já não versará sobre a natureza do ser, não tentará investigar o que o ser é no corpo da realidade total, mas apenas aquilo em que ele pode se transformar no instante seguinte, não por seu dinamismo próprio e interno, mas por força da intervenção humana. Já não será uma teoria do objeto, mas uma teoria da ação que ele pode sofrer. Não é uma teoria do ser, mas uma teoria da praxis. Como a praxis é sempre ação humana, então todo objeto será sempre e unicamente enfocado sob a categoria da paixão, isto é, das ações transformadoras que pode sofrer. Já não interessa o que é o cavalo ou a árvore no sistema total da realidade, mas sim o que, dentro do círculo de meus interesses imediatos, posso fazer com o cavalo ou com a árvore, independentemente do que eles sejam. Por exemplo, posso queimar a árvore ou comer a carne do cavalo: se a teoria respeitava sobretudo a integridade ontológica e mesmo física do objeto, a praxis começa por negá-la, isto é, por não admitir que o objeto seja o que é e por exigir que ele se transforme em outra coisa: não interpreta, mas transforma.

3.4. Não se trata aqui, evidentemente, de condenar a praxis em nome de uma utópica vida contemplativa, mas somente de restaurar o senso de uma hierarquia de valores que parece ser inerente à estrutura do indivíduo humano são. A prática, que transforma, se dirige essencialmente aos meios: como toda transformação visa a um resultado ou fim, o objeto sobre o qual incide é sempre e necessariamente um meio, apenas um meio. É um meio ou instrumento a terra que o homem lavra, é um meio ou instrumento o carneiro que ele engorda e mata, é um meio ou instrumento a árvore que ele abate. É meio ou instrumento o trabalho, como também o capital. Aquilo que é meio ou instrumento nada importa nem vale por si, mas por alguma outra coisa: o meio ou instrumento é um intermediário, uma transição ou passagem, aquilo que num certo ponto do caminho será abandonado para ceder lugar aos fins. A tendência universal do homem à economia de esforço mostra a sujeição dos meios aos fins.

Inversamente, aquilo que é finalidade ou valor em si não é objeto de praxis transformadora, mas de contemplação, de amor. Como dizia Miguel de Unamuno, “o bonde é útil porque me serve para levar-me à casa da minha amada; mas esta para que me serve?”. Posso, é claro, rebaixá-la a um meio ou instrumento do meu prazer, mas neste caso já não tenho amor por ela, e sim pelo prazer como tal7. O objeto amado, se o é de verdade, não é meio, mas fim. Não desejamos mudá-lo, transformá-lo, utilizá-lo para alguma outra coisa, e sim desfrutar de sua presença sem alterá-la, sem mudá-la no que quer que seja8. Ao contrário, ao contemplar e amar somos nós que nos transformamos: “Transforma-se o amador na coisa amada.”

Há, portanto, aspectos da realidade que só podem ser conhecidos pela praxis, outros que só o podem pela theoria. Mas a praxis procede necessariamente pela negação do objeto, pela sua redução a meio e instrumento, e a theoria pela afirmação da sua plenitude e do seu valor como fim. É evidente, então, que:

3.4.1. Há uma diferente dosagem na combinação do teórico e do prático para o conhecimento dos vários tipos de seres: aquilo que para mim é meio e instrumento, só posso conhecê-lo ao usá-lo; aquilo que para mim é finalidade e valor em si, conheço-o na medida em que o contemplo, em que o amo, em que defendo a sua integridade ontológica contra qualquer tentativa de transformá-lo em outra coisa. Van Gogh conheceu pincéis e tintas na medida em que os usou e, usando, gastou. Mas conheço os quadros de Van Gogh na medida em que sejam conservados intactos para minha contemplação.

3.4.2. Não existe, no mundo dos seres físicos, nem praxis pura nem pura contemplação. Há apenas dosagens, segundo a escalaridade do valor dos fins e da oportunidade dos meios. Só a finalidade suprema pode ser objeto de pura contemplação. Somente o objeto totalmente desprezível, sem consistência ontológica própria nem qualquer valor em si pode ser alvo de pura praxis. Ambos esses limites são metafísicos, e jamais alcançados no mundo da experiência real.

3.4.3. No entanto, há uma nítida distinção hierárquica: a contemplação, como objetivo e finalidade, tem primazia sobre a prática, que no fim das contas não serve senão para afastar os obstáculos que nos separam do gozo contemplativo. O homem não transforma o que lhe agrada, mas o que lhe desagrada: ele entrega-se à contemplação por gosto, à prática por necessidade (sem contar, é claro, que na prática mesma há um elemento lúdico e contemplativo, que torna o trabalho agradável em si e lhe dá um valor independente do seu proveito prático).

3.4.4. De tudo isso, conclui-se que estatuir a prática como fundamento e valor supremo do conhecimento é instaurar o reinado dos meios, desprezando os fins; é inverter o sentido de toda ação humana e negar a consistência ontológica da realidade. É encarar o real no seu todo — nele incluídos o homem e sua História, bem como o conjunto das ações individuais praticadas pelos seres humanos — como um vasto instrumento sem qualquer finalidade. É transformar o universo numa imensa máquina-de-desentortar-bananas.

Eis aí, já em Marx, a raiz da nietzscheização da esquerda, em que muitos teóricos, escandalizados, verão uma traição ao marxismo. A filosofia da praxis contém em seu bojo, oculta mas nem por isto menos potente, a negação do sentido da realidade, a apologia do absurdo. É óbvio que se trata de uma herança epicurista inconsciente, que veio a ser resgatada quando, após a crise mundial do marxismo, a intelectualidade de esquerda se entregou maciçamente a uma espécie de pseudo-heroismo dononsense, orgulhando-se de continuar a defender ideais sociais que, num mundo sem sentido, só podem consistir numa afirmação nietzscheana da vontade de poder, num clinamengratuito e arbitrário que o homem, por pedantismo ou desenfado, opõe ao arbitrário e gratuito clinamen dos átomos9. O materialista durão pretende ser um Clint Eastwood da filosofia, impávido no alto da sela, olhando com a maior indiferença os movimentos randômicos dos átomos na planície e desprezando o choro dos fracotes que necessitam de um sentido para a vida. O cavaleiro solitário no deserto do absurdo sintetiza Marx, Nietzsche e Epicuro.

3.5. Há um curioso paralelismo entre as noções de objeto-da-teoria e objeto-da-práxis, por um lado, e, por outro, valor-de-uso e valor-de-troca. O valor de uso é, de certo modo, uma propriedade, uma qualidade qualquer inerente ao objeto, faz parte da sua consistência ontológica; ao passo que o valor de troca é acidental, como o afirma o próprio Marx: depende de circunstâncias históricas que nada têm a ver com a natureza do objeto. Uma das censuras morais que o marxismo dirige ao capitalismo é que nele o valor de troca acaba por devorar o valor de uso até fazê-lo desaparecer, até fazer com que todos os objetos já não existam senão como “mercadorias”, segundo a boutade célebre de Bertolt Brecht: “Não sei o que é. Só sei quanto custa. ” É o mesmo que dizer que o capitalismo absorve a categoria da substância na categoria da paixão. Se o capitalismo faz realmente isto ou se se trata apenas de uma figura de retórica, de uma hipérbole, é algo que cabe investigar. Mas que na filosofia de Karl Marx essa inversão ocorre, é coisa óbvia. Só neste caso a censura lançada por Marx ao capitalismo perde valor objetivo, reduzindo-se a mera projeção: Marx censura no capitalismo um defeito que não está necessariamente no capitalismo, mas que está nos esquemas mentais subconscientes ou inconscientes do próprio Karl Marx.

3.6. Sendo teoria da ação, e não do objeto, a praxis não reconhecerá, no objeto, outro aspecto senão o da sua transformabilidade imediata. Sem saber o que é árvore, posso no entanto utilizar a madeira para fazer uma mesa ou estante. A praxis, enfim, recusará ao mundo, aos fenômenos, uma consistência ontológica própria, conhecível pelo homem: ela fluidificará todas as essências individuais em matéria-prima da praxis e resultará, enfim, num novo e mais radical tipo de idealismo subjetivo: o mundo objetivo nada é senão o cenário da praxis. A teoria nada dirá sobre os objetos tais e quais são, mas apenas tais e quais podem vir a ser sob a ação do martelo e da forja. Seria interessante averiguar como é possível conciliar isto com o alegado “materialismo” marxista; pois o marxismo se revela antes um idealismo subjetivista, no sentido estrito e quase fichteano, com a única diferença de que tem como sujeito não o indivíduo, mas a humanidade histórica, diante de cujapraxis o universo natural — a “matéria” — perde toda substancialidade para se reduzir a mera matéria-prima da ação humana, rebaixando-se a natureza ao estatuto de ancilla industriae. É este seu caráter de idealismo subjetivista coletivo que dá ao marxismo o seu tremendo poder ilusionista que embriaga e perverte, e da qual mesmo homens de elevada inteligência às vezes se deixam contaminar.

Quando, porém, considero como é estreita a faixa do universo material alcançada pela ação humana (apenas a superfície da Terra, e mesmo assim não inteira), e ilimitada a extensão de mundos celestes que não podemos transformar e só podemos contemplar, então pergunto se a teoria da praxis não é uma monstruosa ampliação universalizante de um fenômeno local e terrestre — coletivamente subjetivo —, e se ante a imensidão do cosmos a atitude “teórica” não é a mais sensata.

Da teoria da praxis provém ainda a idéia — hoje quase um dogma — de que a ciência surge a posteriori de uma racionalização da técnica, isto é, da ação: o homem não cria a ciência mediante a contemplação, mas mediante a manipulação dos objetos e sua transformação em outra coisa. Restaria então explicar como, em quase todas as civilizações, uma das ciências que primeiro se desenvolve e alcança rapidamente a perfeição é sempre justamente a astronomia, cujos objetos estão a uma distância demasiado grande para poderem ser “transformados”, e que por isto o homem pode somente contemplar. (Um praticista fanático poderia objetar que a astronomia se desenvolveu com fins de navegação, mas é bobagem pura, porque uma astronomia requintada já se encontra entre povos que de navegantes não tinham nada, como por exemplo os maias.) Esta prioridade cronológica e estrutural da astronomia é ressaltada por Platão10, que vê a explicação para a origem de todas as ciências na contemplação da regularidade e racionalidade dos movimentos dos astros. A explicação marxista, por seu lado, só se mantém de pé mediante uma brutal falsificação da ordem cronológica. Para que ela adquirisse alguma verossimilhança aos olhos dos homens foi preciso que primeiro a sociedade burguesa reduzisse a serva da técnica e da utilidade prática uma atividade intelectual na qual por milênios seus praticantes tinham visto uma finalidade em si mesma. A interpretação praticista da origem e significado da ciência é uma grosseira projeção que o burguês faz dos seus próprios critérios e valores sobre a mentalidade das épocas anteriores, que para ele se tornaram incompreensíveis11.

NOTAS

  1. A supressão do conhecimento objetivo não é, em Marx, um objetivo declarado, mas uma conseqüência inevitável do conceito marxista da natureza. A natureza para Marx só tem existência como cenário da história ou como matéria branda e plástica a ser moldada pela ação humana. , adiante, § 17.
  2. meus livros A Nova Era e a Revolução Cultural. Fritjof Capra & Antônio Gramsci, Caps. II e III, e O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras, Caps. 2-5.
  3. Sobre a contaminação irracionalista do marxismo no curso da sua evolução (não na sua raiz, como a de falo aqui), v. José Guilherme Merquior, O Marxismo Ocidental, trad. Raul de Sá Barbosa, Rio, Nova Fronteira, 1987, e também Allan Bloom, O Declínio da Cultura Ocidental. Da Crise da Universidade à Crise da Sociedade, trad. brasileira, São Paulo, Best Seller, 1989. Merquior mostra que os elementos românticos e irracionais eram fortes no pensamento do próprio Lukács. No mesmo sentido, mas com ênfase positiva, argumenta Michel Löwy, Romantismo e Messianismo. Ensaios sobre Lukács e Benjamin, trad. Myrian Veras Baptista e Magdalena Pizante Baptista, São Paulo, Edusp/Perspectiva, 1990.
  4. Edmund Wilson, Rumo à Estação Finlândia, e Paul Johnson, Os Intelectuais.
  5. Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert, es kommt darauf an sie zu verändern” — frase do manuscrito reproduzido em fac-símile em The German Ideology, trad. Ryazanskaya, Moscow, Progress Publishers, 1964. O verbo verändernvem da raiz ander = “outro”, de modo que a tradução mais exata seria “alterá-lo”. Mas a alteração, na medida em que deixa de ser uma simples propriedade ou um acidente da substância, é na verdade uma substituição; e, na medida em que o mundo real não pode realmente ser substituído por outro, a substituição se dá apenas dentro da esfera do imaginário coletivo, mediante uma súbita mutação ou rotação do quadro perceptivo (um snapping, diriam Conway e Siegelman. Daí a invulnerabilidade do marxista convicto à argumentação racional. Ele não apenas pensa diferente do não-marxista: ele percebe o mundo sob categorias diferentes, como o doente histérico para o qual imaginar é sentir. V. A Nova Era e a Revolução Cultural, Cap. III, item 3. Mas isto também significa que abjurar expressamente do marxismo não é o mesmo que libertar-se instantaneamente de sua influência, assim como tomar consciência de uma neurose não é o mesmo que estar curado. Marxisme pas mort: ele subsiste como um complexo no subconsciente dos que o rejeitaram sem criticá-lo a fundo. No meu ensaio “A superioridade moral das esquerdas, ou: o rabo e o cachorro”, reproduzido em O Imbecil Coletivo, esboço uma psicanálise do marxismo residual de nossos intelectuais.
  6. Éric Weil, Logique de la Philosophie, Paris, Vrin, 2e éd., 1967, “Introduction”.
  7. Subjugação, manipulação e uso de seres humanos (ou de animais) com vistas ao prazer erótico — esta é a definição mesma do libertinismo (Sade, Choderlos de Laclos et caterva), no qual no entanto alguns profissionais da cegueira, como o sr. Adauto Novaes — herdeiro da flama apagada de Motta Pessanha — crêem enxergar um papel libertador. V. Adauto Novaes, “Por que tanta libertinagem?”, texto de abertura do simpósio Libertinos/Libertários, Rio, Funarte, 1995 — um exemplo edificante de como o culto pedantesco de autores menores pode coexistir num mesmo cérebro com uma profunda ignorância da História da Filosofia, bem como da História tout court.
  8. Olavo de Carvalho, Da Contemplação Amorosa. Capítulos de uma Autobiografia Interior(apostila), Rio, IAL, 1995.
  9. A elevada taxa de intelectuais pedantes e de ricaços esteticistas nas fileiras da esquerda — um fenômeno universalmente conhecido — não deve, portanto, ser mera coincidência, e muito menos uma contradição, mas sim a manifestação perfeita do espírito da coisa: lutar por “uma sociedade justa” é o diletantismo ético daqueles que não acreditam em ética nenhuma exceto como convenção arbitrária, mito ideológico ou expediente tático. Daí a vaidosa inversão que, desprezando a obediência a valores morais explícitos, louva quase como a um santo o homem que age bem segundo uma ética em que não crê, afirmando na prática o que nega na teoria: a bondade acidental e diletante do imoralista parece envolta no encanto de uma gratuidade divina, negado àqueles que simplesmente e humanamente fazem o que lhes parece certo conforme uma regra moral. Daí também a facilidade com que essa gente produz sucedâneos de justificação “ética” para os crimes e as perversidades cometidos em razão do seu “ideal”: pois este tem a perfeição estética de uma forma arbitrária concebida pela mente, e não se deixa contaminar pelas exigências da autoconsciência moral, atenta ao jogo dos pretextos e dos atos. Sobre o esteticismo como fonte das doutrinas políticas modernas, v. o ensaio magistral — e injustamente esquecido — de Otto Maria Carpeaux sobre Maquiavel em A Cinza do Purgatório, Rio, Casa do Estudante do Brasil, 1942; sobre o esteticismo como ideologia dominante nas classes letradas brasileiras, v. o não menos notável e não menos esquecido livro de Mário Vieira de Mello, Desenvolvimento e Cultura. O Problema do Esteticismo no Brasil, São Paulo, Nacional, 1958.
  10. Timeu, 47c.
  11. Sobre o sentido puramente contemplativo da atividade intelectual na Idade Média, v. a tese valiosíssima de Antônio Donato Paulo Rosa, A Educação segundo a Filosofia Perene, apresentada à Faculdade de Educação da USP em 1993 (tese datilografada). Sobre a incapacidade do burguês — liberal e socialista — de compreender isso, v. Kenneth Minogue, O Conceito de Universidade, trad. Jorge Eira Garcia Vieira, Brasília, UnB, 1981.